O Joio e O Trigo

A fantástica fábrica de carnes e a corrida pela produção do bife de laboratório

Tema abre a quarta temporada do Prato Cheio, que discute a ciência por trás do que chega à mesa dos brasileiros


*Este texto é uma adaptação do roteiro do episódio “A fantástica fábrica de carne”, do Prato Cheio. Escute no tocador acima ou em sua plataforma de áudio favorita.

A ideia não é lá muito nova, já que a primeira patente foi registrada em 1997, mas a carne cultivada em laboratório é defendida hoje como uma solução definitiva para a alimentação do futuro. E não se trata desses hambúrgueres que são feitos com ingredientes vegetais e que tentam imitar a carne. É carne, mesmo, feita de células animais de verdade.

O responsável por iniciar esse movimento foi o médico holandês Willem van Eelan. Ele tinha ouvido na universidade algumas discussões sobre a possibilidade de criar tecidos humanos em laboratório. Tipo órgãos ou pedaços de pele para usar em tratamentos médicos. 

Os pesquisadores estavam tentando manter vivos pedaços de tecido em placas de petri. E um dia, olhando aquela cena, Willem coçou a cabeça e pensou: “E se a gente reproduzir tecido animal desse jeito, será que dá pra comer?” 

Não só dá, como tem gente investindo pesado nessa nova tecnologia. Trezentos e vinte e cinco mil dólares foi o preço pago para produzir um disquinho de carne oferecido a convidados em um evento realizado em 2013 na cidade de Londres. A ocasião reuniu chefs de cozinha e o pai do hambúrguer de laboratório, o farmacologista holandês Mark Post. 

O hambúrguer foi caro porque a produção envolvia 20 mil filamentos de carne que cresceram fora do corpo de uma vaca, ou seja, sinteticamente. Aquela era a primeira aparição pública da novidade, que é chamada também de carne cultivada ou carne celular.

Hoje não há nada de muito novo a não ser promessas. O preço também não reduziu. Para experimentar a iguaria é preciso viajar a Cingapura e desembolsar nada menos que cinquenta dólares por um único nugget de frango cultivado. Mas, segundo estudiosos no assunto, o valor deve cair nos próximos anos e a oferta aumentar bastante. 

Para entender como acontece essa produção, a equipe do Prato Cheio conversou com a pesquisadora Carla Molento, médica veterinária e professora na Universidade Federal do Paraná, onde coordena o Laboratório de Bem-Estar Animal.

É justamente na universidade da Carla, a UFPR, que surgiu a primeira disciplina da América Latina sobre zootecnia celular. Esse é um dos termos usados para falar do cultivo de carne.

No Laboratório de Bem-Estar Animal, o trabalho dela é desenvolver métodos que amenizem o sofrimento dos animais que são criados para o abate. Para ela, a tecnologia da carne cultivada é incrível justamente porque pode colocar um fim em todo esse sofrimento. Carla é vegana há muitos anos e traz pra vida pessoal o que descobre na universidade.

“A gente faz uma biópsia que é a extração de uma pequena quantidade de tecido e leva essas células então para um ambiente onde a gente consegue mantê-las vivas com as condições de nutrição que a célula precisa de temperatura de oxigênio”, conta a pesquisadora, sobre o início de tudo, que é a coleta de algumas células que vão servir de base para a multiplicação. 

E esse ambiente que tem tudo o que a célula precisa é chamado de biorreator. É uma máquina enorme, que, além de manter todas essas condições ótimas de temperatura, pressão, pH etc, fica cheia de um líquido, um meio de cultura que oferece nutrição constante para as células.  

A ideia é que elas se multipliquem numa velocidade acelerada, já que a intenção é produzir toneladas de carne. Também é importante que as células se diferenciem e criem, por exemplo, fibras musculares e células de gordura.

Em linhas gerais, é assim que se cultiva carne em laboratório. Mas não é tão simples tirar um bife certinho de dentro do biorreator. Para que o produto tenha forma e a aparência de carne convencional é preciso apelar para a engenharia. 

Bem-estarismo

As pessoas que pesquisam a carne de laboratório e que a defendem como uma solução para muitos dos nossos problemas costumam usar quatro argumentos principais. O primeiro é o já citado bem-estar animal. E esse talvez seja o mais claro e mais fácil de entender. Afinal de contas, o bicho está morto ali no prato.  

Mas a criação convencional também é um problema nesse sentido. Os animais muitas vezes vivem confinados em espaços muito pequenos, com calor, frio, fome, com excesso ou com falta de luz, além de sofrerem mutilações e uma série de tratamentos violentos. 

“Há uma máquina que a gente criou que é uma máquina muito cruel pros animais e ela é motivada pela demanda por carne. Então se a gente conseguir suprir essa demanda de uma outra forma acho que todo mundo sai ganhando”, fala Carla, ainda que sejam os animais que forneçam as células que dão início ao processo. 

Customização

Um boi criado para corte pesa uns 500 quilos na hora do abate. Mas, em média, só 50% desse peso vira de fato a carne para consumo. A outra metade, que compreende os órgãos, os ossos, o couro do boi, vira resíduo.

Em alguns casos, os produtores conseguem dar outras destinações para essa carcaça. Mas, quando eles não conseguem, sobra uma quantidade enorme de lixo contaminado – um problema ainda não resolvido pela pecuária.

No mundo da carne cultivada, esses resíduos não seriam uma preocupação tão grande, já que praticamente 100% do que é produzido pode ser consumido. Por isso, a produção é considerada mais eficiente do que a convencional e, como o processo é todo controlado, os cientistas conseguem manipular a carne.

Mudando os processos e as configurações do biorreator, é possível mudar também o produto final. “A gente pode determinar: eu quero uma carne que tenha 10% de gordura, essa gordura eu quero marmorizada ou eu quero ela recobrindo. Essa gordura vou substituir… 10% de gordura mas vou usar 8% de gordura vegetal e só dois por cento de gordura animal”, explica Carla. 

Ela mencionou a gordura, mas daria pra mexer em praticamente qualquer coisa: adicionar alguns nutrientes, remover outros, criar sabores e texturas diferentes.

Redução de riscos biológicos

Já se sabe que a Covid-19 pulou de um animal para os seres humanos e que há diversos casos anteriores de doenças que surgiram assim, como a gripe aviária, a gripe suína e a Sars. 

Recentemente a ONU divulgou um relatório apontando que 70% das doenças contagiosas modernas têm origem animal. E estão crescendo as evidências científicas que relacionam o nosso modelo de produção de carne ao surgimento dessas doenças. Os ambientes fechados, com milhares de animais aglomerados, são perfeitos para isso porque são ideais para patógenos fluírem, o que, segundo Carla, faz com que o uso de antibióticos seja bem comum e gere resistência bacteriana. 

Já na produção da carne cultivada, segundo a visão de alguns pesquisadores, não seria necessário usar esses medicamentos. Isso reduziria não só o custo, mas garantiria um produto final mais seguro para os humanos. 

Molento disse que não é bem assim. “Provavelmente o que nós teremos é uma grande redução no uso de antibióticos, tá? Não vai zerar porque nós precisamos naquela primeira etapa, por exemplo, em que a gente retira células de um animal a gente tem potencial de contaminação.”

Isso sem mencionar outros possíveis contatos que a carne teria com patógenos. Seja na produção ou depois disso, enquanto ela está sendo manipulada e preparada para venda, por exemplo. 

Mas, além dos riscos evidentes para a saúde pública, essas doenças podem causar um impacto desastroso na cadeia de produção dos alimentos.

“Peste suína africana é uma doença de porcos que dizimou a população de porcos de algumas regiões da China principalmente depois disso a China saiu comprando carne no mundo inteiro, o preço da carne no Brasil disparou. A gente teve um desbalanço da cadeia de produção de alimentos”, disse Gustavo Guadagnini, diretor do Good Food Institute (GFI) no Brasil.

Para explicar, o GFI é uma organização sem fins lucrativos que atua promovendo o consumo de produtos plant-based, aqueles substitutos vegetais para carne, leite e ovos. E também faz a mesma coisa com a carne cultivada. Eles fazem consultorias para empresas, fazem lobby com governos e agências reguladoras e incentivam o desenvolvimento de ciência e tecnologia pro setor em universidades. Aliás, foi o GFI que ajudou a construir o curso de zootecnia celular na UFPR que a gente mencionou.

Sustentabilidade

O mais polêmico e mais importante argumento para o futuro da carne cultivada é o de que ela é mais sustentável do que a convencional.

Se ficar comprovado de fato que ela é melhor para o meio ambiente, haverá um impacto gigante sobre as escolhas dos consumidores. Num futuro que vai ser ainda mais marcado pelas discussões sobre sustentabilidade, um produto que gera menos impacto com certeza sai bem na frente dos rivais. E é justamente por isso que os defensores da carne cultivada batem tanto nessa tecla. 

Ainda assim, há um problema, como lembra Guadagnini. “Eu acho que a grande complexidade desse momento é que a carne cultivada não é: ela será. Então é muito difícil você fazer uma análise do ciclo de vida de uma tecnologia que ainda não existe.”

Como as grandes fábricas ainda não existem, é difícil ter certeza sobre qualquer coisa, ainda que existam vários argumentos favoráveis à carne cultivada. A maior parte se baseia no fato de que ela vai substituir a pecuária tradicional. Então muitos dos impactos ambientais da criação de animais deixariam de acontecer.

Um exemplo é a emissão de gás metano, causador do efeito estufa, produzido pelo sistema digestivo dos bois. Segundo Carla, a produção natural desse gás pelos animais não é exatamente a questão. “O problema é que nós criamos uma superpopulação de bois no planeta que não tem antecedentes históricos.” Isso fica  muito evidente no Brasil, um país que tem mais cabeças de gado do que habitantes. 

A terra e a água usadas para manter esses animais vivos também causam um impacto enorme. É só a gente pensar que cada quilo de carne demanda em média 15 mil litros de água. E mais de 60% do desmatamento da Amazônia é feito para abrir pastos.

“E aí além de tudo isso tem também o transporte do animal para abate a fábrica toda que faz o abate e depois o processamento da carne. A gente vai trocar isso por um processo onde em poucas semanas eu consigo fazer essa mesma carne dentro de uma fábrica única”, destaca Gustavo do GFI. 

O tempo de produção da carne cultivada também seria muito menor. Na pecuária tradicional, um boi demora mais ou menos três anos para chegar no ponto ideal de abate. Numa fábrica, uma peça de carne poderia ficar pronta em poucas semanas. O que, novamente, reduz os custos e os insumos usados no processo.

A fabricação também deve deixar um volume menor de resíduos. O que sobra, em tese, é só aquele meio de cultura onde as células ficam se desenvolvendo. Ou seja, seria mais fácil se livrar ou achar uma destinação boa para esses resíduos.

E, por último, os defensores da carne cultivada dizem que ela pode ser a resposta para a demanda crescente por carne no mundo. Só em 2021 o planeta vai consumir mais de 60 milhões de toneladas de carne bovina. E mercados como China, Índia e países africanos devem aumentar a demanda nos próximos anos. Com a nova tecnologia, daria para supri-la sem ter que desmatar florestas e criar mais gado.

Revolução na alimentação?

Com tantos argumentos, já é possível até imaginar o futuro. Pessoas todas correndo de mãos dadas em belos campos verdejantes, celebrando a vida e a comunhão com a natureza.

Infelizmente, nada é tão simples assim. A verdade é que existem várias polêmicas envolvendo a carne cultivada e até agora a gente tem muito mais perguntas do que respostas. A tecnologia está sendo desenvolvida agora e numa escala ainda pequena, muito diferente daquela industrial que se projeta para o futuro.

Quando a gente fala de bem-estar animal, os argumentos a favor da carne cultivada são robustos, mas tem um detalhe que causa bastante polêmica: o meio de cultura usado para nutrir as células. 

Para elas se desenvolverem direito, esse meio precisa ter nutrientes básicos, como proteínas, açúcares e vitaminas. Além disso, são necessários vários hormônios, como insulina, transferrina, fatores de crescimento e diversas outras moléculas que não são tão fáceis de produzir, ainda mais em larga escala. 

O segredo é que tem um líquido que reúne tudo isso, o sangue. Mas não qualquer um: o sangue mais nutritivo pras células cultivadas é o de fetos de bezerros. Ele é mais conhecido como Soro Fetal Bovino.

Porém, há controvérsias sobre seu uso, segundo Carla. “Nenhum ingrediente, nenhum, para a indústria da carne celular, deve ter origem animal. Se não, ela não se justifica do ponto de vista da ética animal. E esse soro fetal é uma coisa que infelizmente é um subproduto dos abatedouros.”

Teoricamente, esse sangue sai de fetos “acidentais”. Os produtores dizem que eventualmente abatem uma vaca que estava prenhe, mesmo que eles não soubessem. Quando isso acontece, tiram o sangue do feto.

Cada litro de Soro Fetal Bovino vale cerca de 100 dólares no mercado. 

Por conta disso tudo, criar um meio de cultura que não use soro fetal virou um dos principais desafios dos pesquisadores da carne cultivada. 

Uma das empresas que está mais consolidada nesse setor garante que já usa um líquido 100% livre do soro na produção, a Aleph Farms, de Israel. E os produtos dela devem ser vendidos aqui no Brasil em breve. 

“De onde estão vindo esses hormônios? Como é o processo de produção de hormônios? Usa insumos de origem animal? E quanto eu consigo adicionar desses hormônios para que ele funcione em comparação com a proliferação celular in vivo?”, questiona o engenheiro de alimentos Marco Antonio Trindade, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP, em Pirassununga. 

As dúvidas dele mostram que a tecnologia bioquímica da carne cultivada ainda tem um longo caminho pela frente. Além disso, não é certo que a carne cultivada vai ser igual ou pelo menos parecida com a convencional. 

“A carne é o produto de reações bioquímicas que acontecem no músculo, no mínimo 24 horas após o abate, que são as primeiras reações bioquímicas em termos de abaixamento de pH, pela transformação do músculo em carne, rigor mortis e reações posteriores de hidrólise proteica pelas enzimas naturalmente presentes no músculo que é o que a gente chama de maturação”, explica o professor sobre o processo que gera maciez e sabor. 

Para os tecidos ganharem forma dentro do biorreator , os produtores usam umas estruturas muito pequenas chamadas scaffolds, uma espécie de “andaime”. E apesar da confiança da professora Carla Molento ao afirmar que existirão cortes de carne como filé mignon e picanha, a tecnologia é incipiente e a gente ainda não viu demonstrações públicas dessa façanha.

Gasto de energia

A sustentabilidade da carne cultivada é um assunto delicado, que gera bastante divergência. Não houve consenso nem mesmo entre os entrevistados. Gustavo do GFI não tem muitas dúvidas de que o impacto ambiental vai ser menor. “A carne cultivada pode ser até 95 por cento mais sustentável do que a de origem animal tradicional”

Já Carla Molento não tem essa mesma certeza. Primeiro porque vai depender de quão eficientes forem esses biorreatores na utilização de energia.”

O professora Marco Antonio explica por que o consumo é tão alto. “O cultivo de células, ele vai usar energia para a manutenção do ambiente estéril que precisa de ar filtrado, para manutenção da temperatura da fermentação, a fermentação precisa correr numa temperatura similar à temperatura corporal do boi, para bombeamento dos reagentes, o meio de cultura precisa ficar sendo bombeado o tempo todo”

Ou seja, concentrar todos os processos em uma única fábrica gigante pode até parecer uma boa ideia. Mas a conta de luz viria altíssima. E o problema não é só o consumo de energia, mas de onde ela vem, da matriz energética que a gente vai usar. No caso do Brasil e na maioria dos países, a origem da energia é predominantemente de combustíveis fósseis.

Até o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, a maior autoridade do mundo sobre meio ambiente, se posicionou sobre o assunto. Os cientistas do painel mostraram algumas preocupações com a tecnologia. Em 2019, eles soltaram um relatório apontando que ela poderia inclusive gerar mais impactos ambientais do que a carne convencional por conta do uso intensivo de energia. 

Por isso é tão difícil afirmar categoricamente que a carne cultivada vai ser mais ou menos sustentável. Não se sabe ainda qual vai ser a eficiência energética das fábricas e se vai existir energia limpa o suficiente disponível no futuro. 

O que é certo é que, para viabilizar essas fábricas enormes, deve surgir um ecossistema de empresas secundárias, que vão fornecer todo tipo de insumo pras indústrias da carne cultivada. Das máquinas ao meio de cultura, das embalagens aos scaffolds que a gente mencionou.

Isso seria necessário para deixar de produzir alguns quilos num laboratório isolado e  produzir milhões de toneladas em várias partes do mundo. Ou seja, a tecnologia precisa ganhar escala. Resta saber qual vai ser o impacto ambiental de toda essa cadeia de fornecimento.

Diante de tudo isso, mais uma pergunta. Será que a gente investe nisso, ou será que é melhor esperar mais um pouco pra ver se a moda pega mesmo?

Carla é enfática. “Nós não temos esse poder, como país. Vai acontecer. Nossa escolha é: vamos participar das oportunidades? Ou vamos ficar refém depois importadores de produtos?”

O cenário da carne cultivada

Aqui no Brasil, a tecnologia ainda está engatinhando. De acordo com o GFI, só 13 pesquisadores brasileiros estão envolvidos de alguma forma com pesquisas na área. O nicho é tão pequeno, que o Gustavo Guadagnini contou pra gente que o GFI criou um grupo no WhatsApp chamado “Carne Cultivada Brasil”. São 50 participantes, quase todos pesquisadores e empreendedores que estão envolvidos na área. 

Uma delas é Bibiana Matte. Em 2019 ela fundou uma startup chamada Núcleo Vitro, que hoje, como ela disse, está encabeçando o desenvolvimento de carne cultivada por aqui.

Bibiana é formada em odontologia, mas estudou cultivo de células e engenharia de tecidos no doutorado. Quando ela fundou a Núcleo Vitro, a ideia era produzir tecidos humanos para fazer tratamentos de saúde. Mas ela já tava de olho na carne cultivada.

Foi então que a Fapergs, ou Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, abriu um edital de inovação. A Bibiana inscreveu um projeto e acabou conseguindo 200 mil reais para dar um pontapé inicial no desenvolvimento da carne cultivada brasileira.

“Quando a gente fala em chegar no mercado existem várias etapas necessárias. Uma das principais além de desenvolvimento de tecnologia é a regulamentação”, conta ela. As agências reguladoras ainda sabem muito pouco sobre a carne cultivada.

No Brasil, quem fiscaliza e regula os produtos vegetais e animais é o Ministério da Agricultura. E quem fiscaliza as fábricas que mexem com coisas como biorreatores e células, é a Anvisa. Mas o que a gente faz quando tem uma fábrica de produtos animais?

Os Estados Unidos estão vivendo o mesmo e a solução encontrada foi criar uma força-tarefa formada pelas duas agências para regular o setor. O que o GFI está fazendo por aqui é tentar convencer o Ministério da Agricultura e a Anvisa a adotarem esse modelo americano.

 “A gente tem feito workshops conjuntos da Anvisa e do mapa, que são organizados pelo GFI, e que levam duas horas por semana mais ou menos”, conta Gustavo. Ou seja, a carne cultivada ainda não chegou, mas o lobby…

Hoje, a esmagadora maioria do dinheiro investido na carne cultivada é privado. No mundo todo, segundo o GFI, há pelo menos 70 startups dedicadas a desenvolver produtos e serviços para esse setor. Só em 2020, essas empresas receberam 366 milhões de dólares em investimentos privados. E 186 milhões foram para uma única empresa, a Upside Foods.

E ela tem uns investidores de peso, como Bill Gates, da Microsoft, o Richard Branson, aquele bilionário que tá querendo fretar uns voos pro espaço, e o Kimbal Musk, irmão do Elon Musk, dono da Tesla.

Enquanto investimentos públicos, foram pouco menos de 12 milhões de dólares em algumas iniciativas pelo mundo, aproximadamente 3% do investimento privado. E o maior problema disso reside na falta de material científico publicado que compartilhem as descobertas sobre o assunto. 

É aquela velha história. As empresas não querem necessariamente fazer ciência, no sentido de gerar um conhecimento que fica disponível para todo mundo. Elas querem descobrir um jeito de fazer a carne cultivada e depois guardar o segredinho pra si, assim elas ganham mais dinheiro. Inclusive a BRF, que é quem promete trazer a inovação para as terras brasileiras. 

Segundo a companhia, que é uma gigante brasileira e vive da carne convencional, os produtos da startup israelense Aleph Farms vão chegar em 2024. E o que está em jogo é o papel que o Brasil vai ter nesse mundo da carne cultivada. Será que as grandes representantes do agronegócio, como a BRF e a JBS, vão controlar também esse mercado?

“Então as perspectivas são boas mas assim é importante a gente falar sobre isso porque se não tiver apoio para esse tipo de pesquisa no nosso país nós vamos assistir uma nova indústria decolar se tornar muito importante mundialmente e a gente não vai colher nenhum benefício se nós não nos envolvermos, né?”, diz Carla. 

Uma coisa que dá a dimensão clara de que a carne cultivada é de fato um produto e já está sendo vendida é a discussão sobre o nome. “Carne de laboratório”, por exemplo, foi descartado logo de cara. Porque ninguém tem vontade de comer um troço que saiu de um laboratório. Eles também tentaram “carne limpa”, para indicar que ela não demandava a morte de nenhum animal, mas o nome não pegou.

Parece haver mais gente pesquisando sobre a aceitação da carne cultivada pelas pessoas do que a tecnologia em si. Isso porque não adianta nada criar um produto revolucionário se as pessoas não comprarem. E o nome, claro, tem tudo a ver com isso.

Outra coisa importante é saber se elas de fato estão dispostas a consumir o produto. A Carla Molento publicou em 2019 uma pesquisa sobre isso, feita com consumidores do Paraná e de Santa Catarina. “A gente quando juntou o banco de dados e olhou as respostas: 63,6 % dos respondentes dizem que têm intenção de consumir”, contou Carla. 

Mas afinal, qual é o sentido disso tudo? Se a gente quer aumentar o bem-estar animal, reduzir os impactos ambientais da nossa alimentação e diminuir os riscos sanitários e de saúde pública, tem um jeito bem mais fácil do que cultivar carne em laboratório. A gente pode fazer tudo isso simplesmente comendo menos carne. 

Mas a grande verdade é que isso não vai acontecer. É uma piração muito grande e até uma ingenuidade achar que mais da metade da população vai virar vegana nos próximos anos, por exemplo. E a gente precisa aceitar que as pessoas têm o direito de comer o que elas quiserem. Especialmente as pessoas que foram historicamente privadas do seu direito de escolha. Não cabe a nós dizer o que elas devem ou não comer.

É bem provável que a carne cultivada de fato conquiste um espaço relevante nas nossas vidas num futuro próximo. E um dos motivos é a fé que a gente tem de que a ciência sempre vai estar lá para resolver os problemas que nós mesmos criamos. Essa crença de que a humanidade pode seguir fazendo o que sempre fez.

*A ficha técnica completa, com todas as fontes de informação usadas no texto, está disponível aqui.

Por Victor Matioli

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