Grande parte das atenções voltaram-se para Ozempic, Wegovy e Monjauro, a chamada nova geração de medicamentos para a obesidade
Um auditório lotado de médicos e profissionais de saúde que lidam com a obesidade aplaudiu de pé o professor Carlos Monteiro, simbolizando um dos poucos momentos de encontro durante o Congresso Internacional de Obesidade, o ICO (na sigla em inglês) entre duas perspectivas que ensaiam uma reaproximação.
Professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP e criador da classificação NOVA, Monteiro foi homenageado com o Philip James Award, prêmio que faz menção ao médico e pesquisador britânico considerado patrono da obesidade por seu pioneirismo e atuação polivalente, inclusive na defesa de políticas públicas de prevenção.
Monteiro dividiu o palco com o pesquisador americano Kevin Hall, que, utilizando a NOVA, liderou o primeiro estudo randomizado controlado capaz de comprovar que uma dieta à base de alimentos com alto grau de processamento provoca um consumo maior de calorias e aumento do peso.
Foi o ponto alto da abertura do ICO, que reuniu entre 26 e 29 de junho, em São Paulo, médicos, especialistas e pesquisadores de diversos países. Organizado pela World Obesity Federation (WOF) e a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), o ICO este ano tenta reaproximar as discussões do chamado obesity management com a perspectiva do obesity prevention.
A extensa programação de mesas, painéis e conferências que aconteciam de forma simultânea em seis salas diferentes incluiu este ano grandes nomes da pesquisa e especialistas para discutir políticas públicas, em especial vindas da América Latina, região que vem liderando inovações neste sentido.
Presidente do ICO, o médico e professor Walmir Coutinho, que já esteve à frente da WOF e da Abeso, explica que esse movimento resgata as origens do congresso, criado na década de 1970 com as perspectivas clínica e de saúde pública dividindo o protagonismo. Com o passar dos anos, o aspecto preventivo e coletivo da obesidade foi perdendo espaço nas discussões.
“Por melhores que sejam os tratamentos, para chegar a uma solução para o problema gravíssimo da obesidade vamos precisar muito do pessoal de saúde pública. Do ponto de vista do indivíduo, a causa pode ser predominantemente genética. Entretanto, quando você pensa no crescimento descontrolado e epidêmico da obesidade, certamente a causa está em fatores ambientais”, avalia Coutinho.
Faz sentido engajar médicos e profissionais de saúde no momento em que projeções globais estimam que mais da metade da população mundial viverá com excesso de peso e obesidade nos próximos 12 anos, segundo o Atlas Mundial da Obesidade de 2023.
No entanto, apesar dos esforços nesse sentido e da urgência dessa discussão, eventos como o ICO deixam evidente a desproporção de poder entre interesses coletivos e o de dois setores que se retroalimentam em muitos sentidos – a indústria farmacêutica e a de ultraprocessados.
Com patrocínio “diamante” da Novo Nordisk e Eli Lilly, além de outras seis farmacêuticas que dividiram fatias menores de apoio, o ICO teve as atenções voltadas em grande parte para a chamada nova geração de medicamentos para a obesidade.
Era de se esperar, diante das novas perspectivas que esses fármacos parecem oferecer no tratamento, e o grande entusiasmo com que vêm sendo recebidos entre a classe médica.
“Revolução”, “virada emocionante” e “mudança de paradigma” foram alguns dos termos utilizados para se referir à semaglutida e tirzepatida, princípios ativos do Ozempic e Wegovy (este, prestes a chegar no Brasil), da Novo Nordisk, e do Monjauro (ainda indisponível por aqui), da Eli Lilly.
São os chamados poliagonistas, substâncias desenvolvidas originalmente para o controle do diabetes tipo 2, mas que também podem inibir o apetite. Esses fármacos atuam no bloqueio dos sinais de fome no cérebro, além de retardar o esvaziamento do estômago, reduzindo a vontade de comer e aumentando a sensação de saciedade.
Embora produzam respostas diferentes em cada indivíduo, além de contra indicações e efeitos colaterais diversos que podem levar, inclusive, à desnutrição, esses medicamentos podem levar a uma perda estimada de até 20% do peso corporal, percentual que nenhum outro fármaco havia alcançado até então.
Pouco se sabe também sobre a interação desses medicamentos com transtornos mentais. A grande maioria dos estudos disponíveis a respeito dessas substâncias foram produzidos direta ou indiretamente pelas próprias farmacêuticas.
O apelo pela incorporação desses e de outros fármacos nos sistemas públicos de saúde aparece de forma recorrente nas discussões entre médicos e, frequentemente, coloca em campos opostos a perspectiva de prevenção e do manejo.
No ICO, a defesa mais enfática coube a Carel Le Roux, um reconhecido médico irlandês especialista em obesidade. “Precisamos saber como conseguiremos que esses poliagonistas entrem nos sistemas de saúde. Não vão curar a obesidade, mas vão controlar. O propósito do tratamento não é mais a perda de peso, mas o ganho em saúde. E isso só pode ser obtido a longo prazo”, afirmou.
Le Roux é um especialista conhecido dos irlandeses e recentemente ganhou destaque no noticiário daquele país por não ter informado conflito de interesse em um comunicado à imprensa que fundamentou uma série de entrevistas em defesa do Wegovy. Segundo reportagem do RTE, o serviço público nacional de mídia irlândes, Le Roux prestou consultoria a Novo Nordisk entre 2018 e 2021 e recebeu alguns milhares de euros por isso.
No Reino Unido, a dinamarquesa Novo Nordisk sofreu em março de 2023 uma suspensão de dois anos por violações ao código da própria indústria farmacêutica, por oferecer cursos sobre perda de peso a profissionais de saúde sem informar o seu patrocínio. A prática foi caracterizada como de natureza publicitária não informada. Cerca de um ano depois, em março, o país aprovou o uso da semaglutida no tratamento de obesidade em seu sistema público de saúde, o mundialmente conhecido NHS.
Isso aqueceu ainda mais a discussão nos Estados Unidos, onde mais de 40% da população vive com obesidade. Também em março, uma Oprah Winfrey bem mais magra exibiu um especial de 50 minutos sobre o tema na TV americana. A apresentadora falou de sua experiência com o Ozempic, entrevistou médicos e profissionais de saúde, e ouviu histórias comoventes de sua plateia. Em junho, a atriz e rapper Queen Latifah estrelou, com vários quilos a menos, uma ação da Novo Nordisk no Cannes Lions, o braço publicitário do festival.
A defesa da incorporação desses medicamentos nos setores privados e nos sistemas públicos de saúde conta com o engajamento de grandes estrelas americanas – até mesmo o presidente Joe Biden publicou um artigo em que critica os preços “abusivos” praticados pelas farmacêuticas.
Conflito de interesse
As discussões sobre conflito de interesse vêm se tornando mais frequentes na imprensa britânica e também nos Estados Unidos, conforme aumenta a popularidade desses medicamentos e cresce o apetite das farmacêuticas por novos mercados.
Por aqui, mostramos que os esforços da Novo Nordisk na tentativa de incorporação da liraglutida no SUS incluíram viagens pagas a deputados, mobilizando até a embaixada da Dinamarca. A oferta deste medicamento representaria um gasto de quase R$ 13 bilhões aos cofres públicos em cinco anos, quase vinte vezes mais que o orçamento das ações de Alimentação e Nutrição para a Saúde do governo federal ao longo de dez anos.
Em dezembro, uma longa investigação da Reuters revelou que a Novo Nordisk pagou ao menos 25,8 milhões de dólares ao longo de uma década a um grupo de especialistas em obesidade que defendem a distribuição dos seus medicamentos aos americanos. Entre os beneficiários está a pesquisadora Donna Ryan, que encerrou uma de suas palestras no ICO fazendo uma enfática defesa dos produtos da farmacêutica. “Estamos salvando vidas com esses medicamentos.”
Procuramos, por e-mail, Donna Ryan e Carel Le Roux, mas não houve retorno.
Se não há mais dúvidas sobre a (má) influência das corporações de ultraprocessados sobre sistemas alimentares e a capacidade de barrar políticas públicas contrárias aos seus interesses, a relação entre farmacêuticas e profissionais de saúde é um pouco mais complexa e esbarra em dilemas concretos.
O financiamento é o mais evidente, mas não o único. “Nenhum governo desenvolve medicamentos. Os medicamentos são todos desenvolvidos pela indústria farmacêutica. E, para a indústria, custa 2 bilhões de dólares para desenvolver um remédio novo, um custo altíssimo. Não conheço nenhum cientista, médico ou pesquisador de área clínica que não tenha relação com a indústria farmacêutica. Os grandes nomes da medicina brasileira, americana e europeia, todos têm. Agora, a gente tem regras bem claras”, opinou Walmir Coutinho.
No ICO, os painelistas foram orientados a informar logo nos primeiros slides se tinham ou não potenciais conflitos de interesse com a indústria. Nos simpósios oferecidos pelas farmacêuticas, a programação era de responsabilidade das próprias empresas e restrito apenas aos prescritores, ou seja, médicos aptos a receitar medicamentos, em atendimento a uma resolução da Anvisa.
Em sua defesa, a Novo Nordisk informou atuar em consonância às diretrizes regulatórias brasileiras e de compliance globais da empresa, e que o caso ocorrido no Reino Unido tratou-se de uma situação pontual e já regularizada. “Ademais, todas as contratações de profissionais de saúde seguem estritamente as regras específicas aplicáveis à indústria farmacêutica de cada país, como, por exemplo, o pagamento seguindo um valor justo e de referência no mercado”, informa o texto enviado ao Joio.
Sobre o patrocínio ao ICO, a farmacêutica diz que, além de reconhecer a importância da atualização científica, “acredita no seu potencial de transformação e entende que os médicos participam de congressos com esse objetivo. Apoiar a viabilização de iniciativas de capacitação e educação médica, previstas na regulamentação brasileira, auxiliam no aprimoramento de profissionais de saúde e acabam por beneficiar os pacientes.”
Em nota enviada ao Joio, a Abeso afirma que “sem esses apoios, não seria possível organizar congressos que possibilitam discussões relevantes de tratamentos, de ciência básica e de saúde pública, com especialistas de todo o mundo. Apenas as contribuições das inscrições dos congressistas não são suficientes para custear nem um terço do custo desses eventos”.
“Acreditamos que a doença, sendo crônica, merece tratamento adequado e baseado nos dados vindos da ciência. Os médicos que falam sobre produtos o fazem porque acreditam na eficácia desses tratamentos”, argumentou Bruno Halpern, presidente da Abeso.
Obesidade afetará mais de 25% da população de capitais até 2030
Como mostramos exaustivamente no Joio, é cada vez maior o número de evidências que associam o consumo de produtos ultraprocessados, refrigerantes e bebidas adoçadas com o ganho de peso e doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, problemas cardiovasculares e diabetes – e, mais recentemente, transtornos de saúde mental.
“Em 2030, quase todas as capitais brasileiras terão prevalência de obesidade maior que 25%. Observamos um aumento maior entre os jovens, em todos os estratos [sociais]. E, no geral, há uma prevalência maior entre mulheres e pessoas com menos anos de escolaridade”, projetou Leandro Fornias Machado de Rezende, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, ao apresentar os resultados de sua pesquisa.
Indicadores, tendências e a realidade observada nas ruas e nos ambulatórios não deixam dúvidas da gravidade da situação: é urgente adotar políticas públicas que possam, ao mesmo tempo, garantir o acesso a uma alimentação saudável e desestimular o consumo de ultraprocessados. Mas, será possível frear a epidemia enquanto mantivermos corporações promovendo ambientes obesogênicos com seus produtos e enorme influência sobre governos?
Foto: Mariana Costa
Do México e do Chile, vieram bons exemplos. “Quando propusemos o imposto, fomos considerados marxistas. Hoje o Banco Mundial recomenda a taxação”, afirmou Juan Rivera, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública mexicano, em referência ao imposto sobre refrigerantes e bebidas adoçadas que o país vem aplicando há uma década.
Do Chile, país onde o brinquedinho do Kinder Ovo foi banido e o Tigre Tony teve que sumir da caixa do Sucrilhos, foram apresentados resultados de um bem-sucedido pacote de políticas de restrição à publicidade dos produtos voltados às crianças e a promoção de ambientes saudáveis.
“Houve uma mudança no comportamento do consumidor, queda nos nutrientes críticos de determinados produtos. Melhorou a qualidade da dieta e caiu o consumo de açúcar”, comemorou Camila Corvalan, pesquisadora da Universidade do Chile. “E nós não vimos mudança de preço ou impacto econômico no setor de alimentos.”
Foi discreta a participação dos médicos nas rodadas de discussão de políticas públicas durante os quatro dias do ICO. Na grande maioria dos painéis, a despeito do alto nível das discussões, lá estavam os mesmos pesquisadores, especialistas, gestores públicos e organizações de advocacy envolvidos há anos com o tema.
A conferência de abertura com o professor Monteiro e a presença de Rita Lobo no último dia do ICO foram um dos poucos momentos comuns entre esses dois universos, que se diferenciavam de forma visível até mesmo no dress code dos participantes.
Não existe bala de prata
Assim como na perspectiva coletiva, também no âmbito do manejo clínico a obesidade desafia profissionais de saúde por sua multifatorialidade, inclusive na perspectiva do nosso organismo. Foi unânime entre os palestrantes a ideia de que não existe uma bala de prata para lidar com o ganho excessivo de peso e problemas decorrentes.
É preciso lançar mão de uma série de ferramentas, que podem ou não incluir o uso de fármacos, mas que necessariamente passam por mudanças nos hábitos alimentares e estilo de vida. Mais até do que o emagrecimento, a manutenção do peso perdido foi apontada como o maior desafio.
Na maioria dos casos, 80% do peso é recuperado ao longo de cinco anos, segundo pesquisa apresentada por Cintia Cercato, endocrinologista do Hospital das Clínicas e professora da Faculdade de Medicina da USP. Isso acontece, em parte, devido à memória dos tecidos adiposos e a uma adaptação metabólica em que o organismo fica ávido por estocar gordura novamente. “Fatores biológicos conspiram contra a perda de peso. É uma doença crônica, de manutenção progressiva”, afirmou.
As discussões no ICO também indicaram um avanço na percepção de que o IMC (Índice de Massa Corporal) não é tão importante, mas sim a composição corporal como um todo. É daí que vem a ideia de controle, em que o objetivo principal deixa de ser o emagrecimento propriamente dito, mas sim uma perda de peso mais realista, o suficiente para melhorar indicadores de saúde e de qualidade de vida.
A prática de atividade física, nesse sentido, exerce um papel importante. “Ser mais ou menos ativo não faz com que se perca mais ou menos peso. O que não quer dizer que a atividade física não seja importante no manejo do paciente. É um agente de proteção de risco cardiometabólico, aumenta a captação de glicose, melhora a resistência insulínica e promove benefícios sistêmicos em tecidos e órgãos, inclusive aqueles que não estão diretamente envolvidos com a prática do exercício”, explicou Guilherme Artioli, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP.
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Faça parteObesidade e ultraprocessados
É comum que pessoas que vivem com a obesidade também sofram com transtornos relacionados à saúde mental, como ansiedade, depressão e comportamentos compulsivos, frequentemente não diagnosticados adequadamente quando o paciente procura ajuda de um endocrinologista.
As relações entre obesidade e o sistema nervoso central também foram destaque entre as apresentações. O cérebro passa a entender que aquele peso mais elevado é o ideal, fazendo com que o nosso organismo responda tentando restaurar o peso anterior diante de tentativas voluntárias de reduzir a ingestão calórica.
Já se sabe que a obesidade, em grande parte dos casos, é consequência de uma resposta disfuncional do organismo aos alimentos super palatáveis. De novo, caímos na discussão sobre os ultraprocessados.
É como subir uma escada rolante que está descendo. Enquanto muito dinheiro e esforço são gastos na tentativa de oferecer respostas clínicas para a obesidade, os ultraprocessados seguem avançando sobre as dietas, distorcendo sistemas alimentares e oferecendo até mesmo “soluções”.
Recentemente, a Nestlé lançou nos Estados Unidos a linha “Vital Pursuit”, com opções de comida congelada em porções menores, incluindo pizza e sanduíches, voltadas aos usuários de Ozempic, Wegovy e Monjauro.
E aqui entramos em uma discussão fundamental que envolve comunicação entre médico e paciente, e capacitação desses profissionais para ir além do ato de prescrever medicamentos.
No último dia de Congresso, um auditório cheio e atento acompanhou a apresentação da nutricionista Ana Carolina Junqueira Vasques, professora e pesquisadora da Unicamp, que criticou a falta de preparo da classe médica para dar orientações alimentares adequadas e que incluam também o ato de cozinhar.
“Apenas 14% dos médicos se sentem confiantes em abordar o tema da alimentação saudável. Enquanto isso, 61% deles acharam que o médico é a pessoa de confiança para falar sobre o tema”, alertou Carolina, ao mostrar resultados de suas pesquisas. “Há uma discrepância evidente entre o preparo do médico e a expectativa do paciente nesse sentido”, concluiu.