Evidências científicas tornam mais sólida a regra de ouro: evite ultraprocessados. Dimensão cultural e social da alimentação, crítica ao nutricionismo e recomendações acessíveis também ganham força em uma década
Em 2014, descobrimos que o futebol masculino do Brasil já não era lá essas coisas (quem esqueceu do 7 a 1?). Aécio Neves se tornou presidente durante alguns minutos – há quem diga que, na Austrália, ele ainda ocupa o cargo. Gusttavo Lima estava hitando com um álbum novo, e não com a polícia. Sergio Moro startou o plano de automarketing da Lava Jato que lhe rendeu exposição, carguinho e um mandato de senador, mas não uma cadeira no Supremo.
Em resumo, envelhecer no século 21 não é fácil. O mais provável é se tornar cringe na velocidade da luz. Sucesso e ostracismo chegam quase juntos. Verdades absolutas passam a verdades relativas, que passam a mentiras, que passam a piadas. Mas, curiosamente, há uma diretriz de saúde que sobreviveu a terremotos de Instagram, TikTok e companhia.
O Guia Alimentar para a População Brasileira completa dez anos em novembro. O “natural” seria cobrarmos por uma atualização da diretriz. Mas, ao reler o documento, o que se conclui é o contrário: os elementos que sustentam os cinco capítulos se tornaram ainda mais sólidos.
Em parte, isso reflete a ousadia do grupo que estava à frente da Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (Cgan) do Ministério da Saúde e dos setores da sociedade que se mobilizaram para apresentar sugestões de melhoria – houve também quem tentasse piorá-lo, com destaque para a indústria de ultraprocessados, que chegou a pressionar o então ministro da Saúde, Arthur Chioro.
Naquele momento, nem tudo estava sólido em termos de evidências científicas. A começar pela regra de ouro do Guia Alimentar, de que se evite ultraprocessados. A produção de estudos àquela altura estava mais restrita ao Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo (USP), que elaborou o documento em parceria com o ministério.
Regra de ouro
Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados
e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados
Explosão de doenças crônicas
A teoria cunhada no Nupens não havia conquistado o mundo. Poderia haver um forte indício de que os ultraprocessados eram os responsáveis pela explosão dos índices de doenças crônicas, mas o ceticismo predominava, e não faltou quem tentasse provar que o Nupens estava errado. As provas só vieram alguns anos depois. Particularmente, alguns artigos feitos com base em estudos de coorte (com grandes amostras populacionais) começaram a apontar que a Classificação NOVA estava certa – naquele momento, mostrou-se que um maior consumo de ultraprocessados aumentava o risco de câncer, doenças cardiovasculares e mortes prematuras. A classificação defende a separação dos alimentos segundo a natureza, a extensão e o propósito do processamento.
“Guias alimentares devem passar por atualização periódica? Sim”, disse Patrícia Jaime, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP. Em maio deste ano, ela deu uma palestra durante o Congresso Brasileiro de Nutrição, realizado em São Paulo. Dez anos antes, estava à frente da Cgan. Na visão dela, o documento do Ministério da Saúde, porém, não demanda atualização porque tudo o que defende se tornou mais forte.
Poderia ser contraditório, considerando o que está dito na introdução do próprio Guia, mas não é, como veremos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda, por meio da Estratégia Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde, que os governos formulem e atualizem periodicamente diretrizes nacionais sobre alimentação e nutrição, levando em conta mudanças nos hábitos alimentares e nas condições de saúde da população e o progresso no conhecimento científico. Essas diretrizes têm como propósito apoiar a educação alimentar e nutricional e subsidiar políticas e programas nacionais de alimentação e nutrição.
Fazer uma nova versão poderia não ser um grande drama, não fosse o contexto político. Haveria razões para tornar ainda melhores as orientações dadas pelo documento. Porém, as fabricantes de ultraprocessados têm feito sucessivos esforços para minar a teoria sobre os males de seus produtos e para revogar as diretrizes brasileiras. E isso é justamente uma demonstração da relevância do Guia, e de por que ele se tornou mais atual: como diz o próprio texto, é um documento para todos os brasileiros. Para a população. Romper com a ideia de que alimentação é assunto para especialistas não era trivial. E certamente foi algo que se tornou paradigmático, tendo sido copiado, desde então, por vários países que decidiram atualizar suas diretrizes.
Um pouco mais de contexto
Quando tudo isso foi feito, o contexto era bastante diferente. No país, sonhávamos com direito ao aborto seguro, reparação histórica pelos crimes da ditadura e passe livre. O PSDB era o partido mais à direita que contava com viabilidade eleitoral em plano federal. Tínhamos a ilusão de uma certa estabilidade política que permitia criar um parâmetro civilizatório no qual garantir alimentação saudável era um mínimo – uma das provas disso é a inclusão, apenas em 2010, da alimentação entre os direitos essenciais previstos pela Constituição.
O Guia talvez seja a penúltima expressão do fim de uma era de ouro na formulação de políticas e recomendações sobre alimentação no Brasil – se considerarmos que em 2019 foi publicado o Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos, baseado no documento de 2014, em um contexto já bastante adverso.
As diretrizes são um desdobramento da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2006, que define parâmetros muito avançados para a discussão: “A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.”
Em outras palavras, nosso papel enquanto sociedade não é só garantir que todo mundo coma. É garantir que todo mundo coma com base em parâmetros altamente respeitosos. Não é farinata proposta por João Dória, entende? É arroz e feijão. É toda a nossa sociobiodiversidade. É o direito de não adoecer de comida. Essa multiplicidade de fatores e a ênfase na cultura alimentar e na diversidade também darão o tom do Guia, oito anos mais tarde.
O Brasil já tinha uma diretriz desse tipo, editada também em 2006. A recomendação para a atualização partiu do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), de onde também haviam saído algumas recomendações que resultaram em políticas fundamentais para que, naquele mesmo 2014, o país deixasse o Mapa da Fome da FAO.
A mais atual das recomendações
Na hora de falar sobre a atualidade do Guia, é inescapável gastar um tempinho no aspecto mais conhecido: a regra de ouro, que preconiza o seguinte: “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados.”
Num recente webinar promovido pela Agência Bori, Renata Bertazzi Levy, pesquisadora no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, abordou cinco razões pelas quais considera o documento de 2014 uma inovação. Renata é uma das autoras dos artigos iniciais sobre a Classificação NOVA, que ela tem como a maior das inovações do Guia.
Em primeiro lugar, ela recordou que agora há evidências suficientes para cravar que uma alimentação à base de ultraprocessados leva a uma redução do consumo de alimentos saudáveis, compromete a qualidade nutricional da dieta e o consumo de compostos protetivos da saúde, aumenta a presença de elementos estranhos à alimentação humana (como resíduos plásticos e aditivos) e, mais importante, agrava o risco de doenças crônicas e de morte prematura.
Vale a pena mencionar um artigo científico publicado no começo deste ano. É uma espécie de balanço de todos os principais estudos disponíveis sobre ultraprocessados – um estudo guarda-chuva, no jargão científico. Revisando dados de quase dez milhões de pessoas, os pesquisadores concluíram que há solidez para conectar esses produtos a 32 condições de saúde diferentes.
Você talvez esteja se perguntando sobre as outras quatro inovações mencionadas por Renata Levy. Ela listou a abordagem holística da alimentação, a fundamentação em evidências científicas, a consideração de determinantes sociais, culturais e comerciais da alimentação e a abordagem qualitativa e baseada em padrões alimentares. Essa é uma boa hora para trazermos trechos do Guia que se tornaram mais fortes e atuais. Embora o conhecimento sobre ultraprocessados e seus problemas tenha se disseminado, há aspectos do documento que são menos celebrados, mas igualmente interessantes.
“Alimentação é mais que ingestão de nutrientes”
“Alimentação diz respeito à ingestão de nutrientes, mas também aos alimentos que contêm e fornecem os nutrientes, a como alimentos são combinados entre si e preparados, a características do modo de comer e às dimensões culturais e sociais das práticas alimentares. Todos esses aspectos influenciam a saúde e o bem-estar. Entretanto, o efeito de nutrientes individuais foi se mostrando progressivamente insuficiente para explicar a relação entre alimentação e saúde.”
Hoje em dia, parece uma recomendação trivial, né? Mas essa recomendação mexeu no vespeiro do reducionismo nutricional. Durante décadas, a ciência da nutrição se baseou em nutrientes isolados para tentar explicar condições de saúde – havia uma ideia arraigada de que todo nutriente é igual. Então, se o biscoito de corante de morango tem vitamina A adicionada, essa vitamina vale tanto quanto aquela presente naturalmente em um alimento.
A recomendação de que “toda caloria é igual” é uma das melhores representações dessa ideia. Por esse raciocínio, duas mil calorias de Coca-Cola seriam equivalentes a duas mil calorias de uma alimentação variada. O reducionismo nutricional é melhor discutido no livro Nutricionismo, de Gyorgy Scrinis.
Fica mais fácil entender o pioneirismo do Guia brasileiro quando se olha para o documento equivalente nos Estados Unidos. Mesmo tendo se tornado menos hermético nas últimas edições, o guia de lá ainda coloca muita ênfase nos nutrientes.
Uma das recomendações-chave é: “Coloque foco em encontrar as necessidades de grupos alimentares com alimentos e bebidas densos em nutrientes, e fique dentro do limite de calorias.” Desejo muito boa sorte para quem tente implementar isso na vida cotidiana. Uma pessoa poderia interpretar que significa comer alimentos in natura, mas também poderia interpretar que está liberada para ir ao McDonald’s diariamente – afinal, refrigerante e hambúrguer são densos.
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“Guias alimentares ampliam a autonomia nas escolhas alimentares”
De novo, o Guia brasileiro foi na contramão do paradigma até então vigente. Passamos o século 20 retirando autonomia das pessoas: elas precisavam da ajuda de especialistas, que contariam a elas se o café faz bem ou mal, se o trigo é bom ou ruim, se o feijão é o culpado pelo aumento dos índices de obesidade. Todo o documento de 2014 é estruturado em torno de uma linguagem fácil e acessível.
Todas as recomendações visam restaurar essa autonomia perdida. Um dos fundamentos disso é romper com o porcionamento, irmão do nutricionismo – “coma três porções de carboidrato por dia” significa o quê, exatamente? Durante a fase de consulta pública, essa foi uma das críticas mais recorrentes. Mas o tempo mostrou o acerto de fazer recomendações gerais, sem cair em direcionamentos que são úteis no nível individual.
“Alimentação adequada e saudável deriva de sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável”
“Em relação ao impacto ambiental de diferentes formas de produção e distribuição dos alimentos, há de se considerar aspectos como técnicas empregadas para conservação do solo; uso de fertilizantes orgânicos ou sintéticos; plantio de sementes convencionais ou transgênicas; controle biológico ou químico de pragas e doenças; formas intensivas ou extensivas de criação de animais; uso de antibióticos; produção e tratamento de dejetos e resíduos; conservação de florestas e da biodiversidade; grau e natureza do processamento dos alimentos; distância entre produtores e consumidores; meios de transporte; e a água e a energia consumidas ao longo de toda a cadeia alimentar.”
Na minha visão, essa é uma recomendação particularmente pra frentex. A maior parte dos guias se concentrava nos alimentos – quando não nos nutrientes, como vimos. Então, concentrar-se nos modos de produção e no uso da terra era toda uma novidade. Mais do que isso, o Guia já trazia uma visão crítica à produção em larga escala – ao agronegócio. Não é à toa que durante o governo de Jair Bolsonaro o Ministério da Agricultura tenha tentado puxar para si a edição de um novo documento. Ponderações sobre transgênicos, fertilizantes e venenos jamais seriam redigidas pelos ruralistas.
Em 2014 já havia vozes críticas ao agro? Com certeza. Mas o tamanho dessa crítica e a quantidade de evidências de que a monocultura vinha avançando sobre florestas, modos de vida tradicionais e produção de alimentos não estavam consolidados.
Comensalidade
Se você conhecia a palavra “comensalidade” antes da edição do Guia, meus parabéns. Que vocabulário vasto. Valorizar o ato de comer em conjunto é ousado. Esse é um elemento estranho à ideia vigente até então na formulação de diretrizes alimentares. A priori, alguém poderia dizer: “Nossa, que viagem. Nada a ver.” Mas, ao final, existe uma percepção muito sofisticada por trás dessa ideia. O comer socialmente enfrenta aquilo que os ultraprocessados preconizam, que é a banalização do consumo, a possibilidade de comer na frente da TV, no carro, no meio da rua. A qualquer hora. Sem mastigar. Sem prestar atenção. É, ao final, uma resistência à tentativa de romper com a dimensão cultural da alimentação.
“Seres humanos são seres sociais e o hábito de comer em companhia está impregnado em nossa história, assim como a divisão da responsabilidade por encontrar ou adquirir, preparar e cozinhar alimentos. Compartilhar o comer e as atividades envolvidas neste ato é um modo simples e profundo de criar e desenvolver relações entre pessoas. Dessa forma, comer é parte natural da vida social.”
“Diferentes saberes geram o conhecimento para a formulação de guias alimentares”
Nessa parte, o Guia faz um preâmbulo para reconhecer a relevância da ciência da nutrição e de outras áreas da pesquisa científica sobre alimentação. Colocar os conhecimentos tradicionais em patamar de igualdade com essa ciência pode parecer trivial hoje, mas, na época, era mais um grande enfrentamento.
Ao final, essa recomendação está também ligada à ideia de resgatar a autonomia das pessoas. Nós escolhemos o milho, o feijão e a mandioca porque somos seres inteligentes e capazes de construir conhecimentos coletivos. E isso é o que orienta a pesquisa científica que busca entender por que precisamos de cálcio ou vitamina C ou qualquer outro nutriente.
“Padrões tradicionais de alimentação, desenvolvidos e transmitidos ao longo de gerações, são fontes essenciais de conhecimentos para a formulação de recomendações que visam promover a alimentação adequada e saudável. Esses padrões resultam do acúmulo de conhecimentos sobre as variedades de plantas e de animais que mais bem se adaptaram às condições do clima e do solo, sobre as técnicas de produção que se mostraram mais produtivas e sustentáveis e sobre as combinações de alimentos e preparações culinárias que bem atendiam à saúde e ao paladar humanos. O processo de seleção subjacente ao período de desenvolvimento dos padrões tradicionais de alimentação constitui verdadeiro experimento natural e, nesta qualidade, deve ser considerado pelos guias alimentares.”