Coca-Cola x Uruguai: as corporações contra a segurança alimentar

Inconformada com lei que obriga a estampar informação nutricional em suas embalagem, corporação ameaça processar país na Organização Mundial do Comércio

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A Coca-Cola ameaça acionar a Organização Mundial do Comércio (OMC) caso o Uruguai leve adiante o plano de criar sinais de alerta frontais nos rótulos de alimentos ultraprocessados e bebidas. O joio e o trigo teve acesso ao documento que a empresa enviou em agosto diretamente ao Ministério de Economia e Finanças.

Além da Coca, a indústria de ultraprocessados mobilizou entidades empresariais e grupos de fachada de outros países para tentar evitar que o governo uruguaio leve adiante a ideia de criar um sistema baseado no modelo chileno de rotulagem. Discutido desde a década passada e adotado efetivamente em 2016, o projeto do Chile obriga à colocação de octógonos pretos em alimentos com excesso de sal, açúcar, gordura e calorias. O caso é único no mundo e vem sob ataque intenso das fabricantes desses produtos.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estuda qual sistema adotar. A indústria apresentou outros modelos, calcados na criação de selos positivos para produtos com índices menos elevados desses nutrientes. Trata-se de um semáforo que, para cada nutriente, mostra cores verdes, amarelas ou vermelhas. O debate segue e espera-se para o próximo ano a abertura de consulta pública.

O Uruguai já passou por essa etapa. Está próximo de concluir o processo e determinar que em 12 meses toda a indústria esteja dentro dos novos padrões. O decreto a ser assinado pelo presidente Tabaré Vázquez está pronto, mas há pressões também de ministérios mais ligados às áreas econômicas e de agronegócio.

A previsão é de que todos os alimentos embalados na ausência do cliente tenham de se submeter à regra, inclusive os importados.

O processo teve início com o Guia Alimentar publicado no ano passado. Parecido ao documento de 2014 do Ministério da Saúde no Brasil, o guia uruguaio adota a divisão entre alimentos in natura, minimamente processados e ultraprocessados. Isso, por si, irrita a indústria de ultraprocessados, que alega que se trata de uma configuração discriminatória e que confunde o consumidor.

Com base no guia, a equipe de saúde do governo de Tabaré decidiu criar um modelo de rotulagem frontal, parte das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para frear a epidemia de obesidade.

No último mês, o Uruguai sediou a Conferência Mundial da OMS sobre Doenças Crônicas Não Transmissíveis. Na ocasião, o presidente fez um discurso enfático contra o lobby das transnacionais, acusadas de colocar o lucro acima da saúde. “A obesidade de que padece nossa população tem uma causa conhecida, que é o agente transmissor que representam as indústrias de alimentos e bebidas.”

Se confirmada, será mais uma briga internacional do Uruguai na área de saúde. Em 2016, após seis anos, o país saiu vencedor de uma ação movida pela Philip Morris contra a obrigação de estampar em 80% do maço de cigarros alertas sobre os danos causados pelo produto.

Nessa outra seara, o Uruguai tinha em 2013 37,2% dos adultos com sobrepeso. Desses, 27,6% apresentavam obesidade. No ano passado, 24% das crianças registravam sobrepeso – 16% de obesidade.

A carta assinada pelo presidente da Coca-Cola na América Latina, Alfredo Rivera, baseia-se em cinco pontos, mas tem como aspecto central o descumprimento de normas internacionais. A multinacional considera que a medida viola os acordos do Mercosul, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do Codex Alimentarius, o principal normatizador da área de alimentos em nível global.

A empresa adverte que o principal objetivo do Mercosul é permitir a livre circulação de mercadorias, o que acabaria prejudicado se o Uruguai adotasse a norma. A interpretação é de que o decreto equivaleria a uma barreira não alfandegária, o que significaria uma violação ao Acordo da OMC sobre Obstáculos Técnicos ao Comércio.

Os sinais de alerta seriam “um chamado ao alarmismo, fortemente negativo, que não contribui à informação genuína e completa sobre alimentos e nutrientes”. Os cálculos são de que 85% dos produtos receberiam algum tipo de selo, o que diz bastante sobre a qualidade do que é vendido atualmente nos supermercados. Justamente para evitar que tantos produtos tenham o selo é que a medida teria um prazo de implementação de doze meses, período considerado suficiente pela área de saúde do governo para que vários produtos sejam reformulados.

Uma pesquisa realizada com 4.300 pessoas buscou dar números ao debate. 93,8% afirmaram que a medida é boa, contra 6% que a classificaram como pouco útil. 85,7% avaliam que ajudaria a melhorar a qualidade da alimentação e 92,6% responderam que levariam em conta os sinais na hora de escolher um produto. O entendimento sobre as vantagens do modelo de advertência é bastante difuso, mas, no geral, prevalece a facilidade de entender e de tomar decisões.

Uma das maiores críticas residiu na falta de compreensão sobre os critérios para definir o que é excesso de informação sobre cada nutriente. São os aspectos a que se apega a indústria para dizer que o modelo de semáforos funciona melhor. Porém, isso foi um problema para apenas 2% dos entrevistados.

Ainda assim, para a Coca, o Uruguai erra ao adotar os padrões da Organização Panamericana de Saúde (Opas) para calcular os níveis de excesso de sal, gordura e açúcar. A Opas se baseia nos cálculos por produto processado e ultraprocessado, e não pela dieta total do dia.

“Os critérios foram desenhados de forma que oriente a aumentar a probabilidade de um indivíduo cumprir com as recomendações da OMS se consome produtos que não ultrapassem os critérios”, defende-se a Opas, em documento encaminhado ao governo uruguaio. Ou seja, consumindo produtos que não ultrapassem os níveis, é provável que ao final do dia uma pessoa tenha mantido uma dieta de boa qualidade. A outra possibilidade, advogada pelo setor privado, seria computar os nutrientes de todos os produtos consumidos.

A Coca alega que a adoção do modelo da Opas poderia levar a dietas com déficit de certos nutrientes devido à restrição. “Os limites extremos não só conduzem à estigmatização de produtos, mas também desincentivam a reformulação de alimentos por parte da indústria, já que, ainda quando se reduzam os conteúdos de nutrientes críticos, resultaria impossível evitar uma advertência de ‘excesso de’”, alega a multinacional, que fala em discriminação contra os ultraprocessados.

A indústria vem tentando transferir a discussão para o âmbito do Mercosul justamente no momento em que Brasil e Uruguai analisam a adoção do modelo chileno. Os debates no bloco têm sido lentos e, com a grande mistura de interesses e grupos, é difícil chegar a qualquer consenso. “Essa é uma maneira de não fazer. Não é adiar: é não fazer”, queixou-se um integrante do governo uruguaio.

Os defensores dos sinais de advertência rebatem a afirmação de que não há evidência científica. Além dos estudos feitos em outros países, o Ministério da Saúde informa que foram realizados 14 trabalhos nacionais, num total de 3.499 participantes. Os resultados mostraram que, com os octógonos, os consumidores identificam mais rapidamente um produto não saudável e modificam a percepção de compra.

“Nós não copiamos simplesmente o modelo chileno. Nós fizemos um grande processo de entender o que funciona melhor”, diz o representante do governo do Uruguai.

No começo de novembro, durante seminário realizado pela Anvisa em Brasília, o pesquisador Gastón Ares, da Universidade da República do Uruguai, mostrou que todos os modelos existentes foram testados. A conclusão é de que um modelo que mistura cor e texto funciona melhor. Ele foi o coordenador da maior parte das pesquisas que levaram à adoção de um sistema similar ao chileno.

Os testes mostraram ainda que esse sistema é o que apresenta a compreensão mais rápida pelo consumidor – menos de um segundo. “Queremos que todos os consumidores leiam essa informação de forma espontânea, que seja um processo automático”, disse Ares. “Porque a advertência só aparece quando há alto conteúdo. No semáforo, está sempre, e eu tenho que ler para processar a informação e ver se tem alto conteúdo ou não.”

Recentemente, durante o Congresso Internacional de Nutrição, em Buenos Aires, o Ministério do Agronegócio da Argentina anunciou que buscaria levar a discussão para o âmbito do Mercosul. E com a proposição de um modelo de adesão voluntária, calcado em selos positivos.

“Na Argentina, à diferença de outros países, as normas são analisadas no âmbito do Mercosul porque são normas que estão harmonizadas”, disse a subsecretária de Alimentação e Bebidas do Ministério do Agronegócio, Mercedes Nimo. “A Argentina vai apresentar uma proposta de rotulagem frontal discutida com a indústria. Porque tudo o que apresentamos tem que ser lógico e racional.”

Os documentos que obtivemos mostram que essa não foi a única pressão vinda do país vizinho. A Câmara Argentina da Indústria de Bebidas sem Álcool alega que a proposta uruguaia não conta com suficiente evidência científica e coloca em risco o comércio bilateral. O decreto “se desvia das normas internacionais, alarma e confunde injustificadamente aos consumidores e mancha a maioria dos produtos alimentícios e bebidas”.

Todas as organizações que se apresentaram do exterior para tentar demover o Uruguai seguem uma mesma linha de argumentação. Além da OMC, cita-se com frequência o Codex Alimentarius. O Codex é um organismo conduzido em conjunto pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e a FAO, agência das Nações Unidas para a alimentação. A principal função é “harmonizar” as normas existentes de modo a facilitar o comércio global pelas grandes empresas de ultraprocessados.

As normas são construídas por grupos de especialistas da área científica. Mas não há regras rígidas quanto a conflito de interesses e é comum que pesquisadores que prestam serviços para o setor privado estejam à frente desse processo.

O Conselho Mexicano da Indústria de Produtos de Consumo diz que o Uruguai entrará em conflito com os tratados de livre comércio. E alega que a proteção da saúde é importante, desde que não constitua um “obstáculo desnecessário ao comércio”. Ecoando um argumento comum, o órgão empresarial acusa que o modelo de alertas pode “induzir o comprador ou consumidor a temer o consumo de alimentos”.

Uma das intervenções mais interessantes, porém, vem do Chile. A organização Chile Crece Sano (Chile Cresce Saudável) acusa que o sistema adotado no país não orienta o consumidor. Dentro de uma mesma categoria de produtos há grandes disparidades, ou seja, o selo cria confusão. “O modelo chileno não se baseia na ciência, os limites impostos não reconhecem uma diferenciação entre a composição nutricional dos alimentos, carecem de justificativa, configurando-se em arbitrários.”

A entidade foi criada pela indústria de ultraprocessados para tentar evitar a agenda regulatória, uma prática comum no mundo todo: quando se aproxima uma ameaça, as empresas aumentam os investimentos em iniciativas de responsabilidade social.

O documento do Chile Crece Sano cita pesquisa que dá conta de que 45% dos chilenos afirmaram que o sistema não transformou seus hábitos alimentares. Como sempre, é bom olhar aquilo que fica de fora: 55% dizem que mudaram de hábitos. Em outro levantamento, 52% afirmaram não ter deixado de comprar um produto devido ao selo – portanto, 48% disseram que sim.

Os números obtidos no Uruguai não são muito diferentes. “Não vai ser a ruína da indústria. Vai levar a uma mudança, a uma maior consciência sobre o que está acontecendo”, resume Gastón Ares.

Por João Peres

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