Fabricantes de ultraprocessados saúdam sinalização de ritmo mais lento. Entidades de defesa do consumidor e da saúde pública rebatem leitura da agência de que não há evidências científicas para definir modelo
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou hoje (9) a intenção de dar ritmo mais lento que o esperado pela sociedade civil para a definição de um modelo de rotulagem nutricional frontal de alimentos processados e ultraprocessados. A posição externada durante debate realizado em Brasília foi elogiada pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia), e criticada por organizações que representam consumidores e a saúde pública.
“Há poucas pesquisas sobre o tema, não só no Brasil como no mundo. O Brasil tem avançado nesse aspecto particular mais recentemente”, afirmou Pedro Ivo, diretor da agência. O tom da fala foi reforçado por Thalita Antony Lima, da Gerência Geral de Alimentos, que pontuou a necessidade de congregar essa discussão com outros debates a respeito de rotulagem.
Ela afirmou não haver evidência científica suficiente para afirmar que um modelo funcione melhor que os demais. E disse que é necessário ter estudos que contemplem as particularidades do Brasil. “Se assim fosse, a gente teria o mundo inteiro caminhando numa direção única”, disse. “O tema será tratado com velocidade, mas não será tratado com pressa.”
Há vários sistemas em debate, mas que podem ser divididos em dois grupos. Um, de advertências sobre excesso de sal, gordura, açúcar e calorias, é defendido pelas organizações da sociedade e da saúde pública. É um modelo que toma como inspiração o Chile, que recentemente adotou octógonos pretos com inscrições sobre excesso de calorias, sal, gordura e açúcar.
Outro, de cores que exaltam características positivas ou negativas dos produtos quanto a esses nutrientes, é encabeçado pela indústria.
“A Anvisa não está apoiando nenhum modelo. Até o momento não existem evidências para a Anvisa que demonstrem que um modelo é mais eficiente do que outro”, afirmou Thalita.
Anteriormente, a Anvisa já havia sinalizado a intenção de não acelerar o processo. Na questão do levantamento de evidências científicas, há um edital aberto pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ainda em fase de seleção das pesquisas. Ou seja, poderia demorar entre meses e anos para ter em mãos os dados que a agência considera necessários para a tomada de decisão.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, apoia a adoção da rotulagem frontal, mas é provável que ele deixe o cargo no primeiro semestre para disputar as eleições de 2018. E a chegada do cenário eleitoral, como se sabe, nunca é favorável à adoção de medidas espinhosas para o setor privado.
A própria coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, Michele Lessa, afirmou ao final do encontro ter se convencido da “robustez” do modelo de advertências, questionado pela indústria. No início, ela havia mostrado em um gráfico que coloca a rotulagem frontal como uma das medidas de melhor custo-benefício no combate à obesidade.
Os oradores que sucederam a Anvisa durante o seminário lamentaram a sinalização, à exceção dos representantes da indústria de ultraprocessados.
Veio do próprio Chile uma das advertências mais claras. Marcela Reyes, do Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos da Universidade do Chile, recordou que, entre o começo da tramitação do projeto de lei e a assinatura de um decreto regulamentando a legislação, passaram-se quase dez anos. Nesse intervalo, a obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis avançaram rapidamente. “No Chile, morre uma pessoa obesa por hora. Isso é evidência mais do que suficiente. Não fazer nada tem custo. Essa evidência, sim, existe. Há que avançar e se pode avançar vendo muito de perto o que há por consertar, ajustar”, criticou. “Não avançar é uma ação ativa.”
Fábio Gomes, assessor regional de Nutrição da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), afirmou não haver dúvidas sobre o acúmulo de evidências científicas. Ele mostrou que desde a década de 1970 há estudos que comprovam que os consumidores levam um máximo de oito segundos para escolher um produto na prateleira, ou seja, é preciso fornecer um rótulo claro e de imediata interpretação. E que desde a década de 1980 há comprovação de que a cor preta, proposta nos modelos de rotulagem de advertências, é a que provoca o melhor contraste para o olho humano.
“Esse ícone precisa ser de fácil interpretação, de fácil uso. Se a gente tiver um sistema difícil de as pessoas entenderem, não vai ser efetivo”, afirmou. “Se a informação que está na frente da embalagem me requer mais tempo, eu vou ignorá-la.” Ou seja, o símbolo proposto pela indústria, que demanda parar para comparar ao menos quatro campos diferentes de dados, e mais três cores, seria ineficaz.
Para ele, é preciso entender que oferecer um dado é diferente de fornecer informação. “Se a gente traz números, a gente continua negando informação ao consumidor. A gente só traz dados para ele.” A interpretação de Gomes é de que seria necessário fazer um grande cruzamento de dados para chegar a alguma conclusão sobre a composição do produto.
Ana Paula Bortoletto, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e integrante da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, enfatizou que já existem algumas pesquisas realizadas no Brasil sobre rotulagem. “Espero que a Anvisa considere também as certezas que a gente já tem sobre a necessidade de regulação”, acrescentou.
Em um documento recém-emitido, a Anvisa afirmou que uma das pendências é o estabelecimento de critérios nutricionais alternativos. É uma sinalização de que não se adotaria de imediato o modelo de perfis de nutrientes da Opas, muito criticado pela indústria. A Opas propõe que se faça a medição por produto, e não pelo cálculo total do dia. Desse modo, consumir apenas alimentos que não ultrapassem os níveis de sal, gordura e açúcar torna provável que ao final do dia se tenha mantido uma dieta dentro de padrões aceitáveis.
O modelo da Opas é a base para a rotulagem frontal no Uruguai. O decreto com um sistema bem parecido ao do Chile está pronto para ser assinado pelo presidente Tabaré Vázquez. Gastón Ares, da Universidade da República, apresentou uma série de evidências científicas mostrando diferenças entre o modelo proposto pela indústria e o defendido pela área de saúde. No geral, o sistema do setor privado funcionou pior. Ele afirmou não haver evidências definitivas sobre o funcionamento do programa chileno porque o tempo de implementação é pequeno, mas disse que está claro que é mais eficiente que o modelo de semáforo, que já tem mais tempo de implementação de forma voluntária em alguns países do mundo.
O documento da Anvisa fala em adotar um padrão amparado “nas diretrizes do Codex Alimentarius”. O Codex, coordenado pela FAO e pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é uma espécie de órgão regulador das normas alimentares em nível global. As decisões adotadas ali dão os parâmetros para a atuação da Organização Mundial do Comércio (OMC). No caso dos perfis de nutrientes, o Codex vai na mão contrária da Opas, o que é de desejo da indústria de ultraprocessados.
Durante o seminário, os representantes do setor privado elogiaram as intenções da Anvisa. Daniella Cunha, da Abia, afirmou que nenhum modelo de rotulagem dará respostas completas. E que não se pode depositar nessa questão a esperança de conter o crescimento da obesidade e das doenças crônicas não transmissíveis. “O que é uma boa informação? Uma boa informação não discrimina. Ela classifica o nutriente, e não o alimento, não a dieta.”
Lincoln Seragini, designer de embalagens que também representou a entidade, afirmou que existe disposição do setor privado em promover programas de educação alimentar – essa é uma questão frequentemente evocada como grande solução para a obesidade. Ele saudou a ideia da Anvisa de dar trâmite mais lento ao tema da rotulagem. “Não vai ser uma decisão abrupta, baseada no radicalismo.”
Duas representantes do Conselho Federal de Nutricionistas também questionaram a postura da Anvisa. “Será que nossas evidências já apresentadas não seriam um meio passo para que a Anvisa pudesse dar maior celeridade a esse processo?”, disse Rosane Nascimento.