As políticas do ultraconservador presidente dos EUA, fã ardoroso do McDonald’s e compulsivo por Coca-Cola, podem ampliar os males da obesidade nos EUA
Quando falou em “fazer a América grande novamente”, Donald Trump não deixou claro que proferia mais uma piada de mau gosto. O presidente dos Estados Unidos parece disposto a distribuir uns quilos a mais para cada cidadão estadunidense. Uma série de medidas simbólicas e práticas tem como meta dar cabo de um esforço coordenado para frear ou ao menos atenuar os efeitos negativos da obesidade.
“Fazer as refeições escolares grandes novamente”, anunciou em tom sinistro o material de divulgação do Departamento de Agricultura. Foi uma paráfrase infeliz do slogan oficial da atual gestão, aplicada a um tema em que “grande” não é exatamente sinônimo de saúde. Foi assim que o secretário Sonny Purdue definiu a reversão de parte da política de merendas saudáveis da administração Barack Obama: “Se as crianças não estão comendo o alimento, e está terminando no lixo, elas não estão tendo nenhum benefício nutricional.” Fazendo eco aos “melhores” argumentos da bancada ruralista brasileira, ele disse que não tomaria nenhuma decisão “que fizesse mal a seus 14 netos”.
Entre outras coisas, foi adiado em três anos o prazo para que as escolas passassem a oferecer refeições com níveis adequados de sal. O pretexto de que é difícil obter grãos integrais em certas localidades foi suficiente para “flexibilizar” essa norma. E, por fim, os leites desnatados com chocolate, que haviam sido eliminados do cardápio em 2012, devem voltar sob o argumento de que as crianças não gostam do líquido se não tiver aquele açúcar amigo.
Segundo os estudos de um grupo da Universidade de Harvard, as mudanças na alimentação escolar eram uma das medidas mais efetivas no combate à obesidade no país, somada à eventual criação de um imposto sobre o consumo de ultraprocessados e à redução de subsídios a certos produtos comestíveis. Só as mudanças na alimentação escolar poderiam prevenir quase dois milhões de novos casos de obesidade infantil até 2025.
Mas qual a importância da obesidade diante de um cenário de tensão global, escalada da xenofobia e revogação de direitos? A obesidade afeta 36,5% da população, segundo os dados mais recentes do Centro para o Controle e a Prevenção de Doenças (CDC), principal formulador de estudos na área de saúde. Entre crianças e adolescentes de 10 a 17 anos, 31,2% estão obesos ou acima do peso. Os custos diretos com a obesidade no país chegaram a ser estimados em US$ 210 bilhões por ano – uma estimativa mais conservadora fala em US$ 150 bilhões, o equivalente a quase 10% do PIB brasileiro.
Sabe-se que o excesso de peso é uma das portas de entrada para as doenças crônicas não transmissíveis, que se transformaram nas grandes responsáveis por mortes em todo o mundo. O diabetes dobrou nos Estados Unidos em menos de 20 anos, chegando a quase 10% da população. O CDC estima que, se nada for feito, 33% dos norte-americanos adultos terão a doença em 2050.
Pois o CDC foi o palco de uma das muitas polêmicas da gestão Trump. Em julho do ano passado, o jornal The New York Times revelou que a diretora nomeada para o órgão, Brenda Fitzgerald, considerava a Coca-Cola uma aliada na luta contra a obesidade. Quando encarregada de comandar ações na área de saúde no estado da Geórgia, sede da multinacional, ela não teve dúvidas em aceitar US$ 1 milhão para um programa de atividade física nas escolas.
É de longa data a relação entre a indústria de refrigerantes e o sedentarismo, usado para desviar o foco do papel central que o açúcar exerce no crescimento da obesidade. Isso inclui usar a atividade física para criar uma imagem positiva para as empresas.
A revelação não foi suficiente para que Brenda deixasse o cargo. Em dezembro, o Washington Post trouxe à tona a proibição imposta por ela ao uso de certas palavras dentro do órgão de pesquisas: vulnerável, diversidade, transgênero, feto, baseado em evidências, baseado em ciência, direitos.
Brenda só caiu em janeiro, quando se revelou que, logo após assumir, ela comprou dezenas de milhares de dólares em ações de corporações de tabaco, justamente um dos maiores problemas de saúde do país, além de papéis de dois grandes laboratórios farmacêuticos.
Vai um escândalo, vem outro. Em fevereiro, foi revelado que uma lobista do agronegócio havia sido contratada para assessorar a equipe que formula a próxima edição do guia alimentar dos EUA, com lançamento em 2020. Kaille Tkacz trabalhava numa entidade de lobby de algumas das maiores corporações do agronegócio, antes de ser integrada ao Departamento de Agricultura, em agosto de 2017.
Bolsa Família, a repetição
Com a ideia de acenar à classe média sempre irritada com os “privilégios” do andar de baixo, Trump, de cara, atacou o Programa Assistencial de Nutrição Complementar (Snap, em inglês), semelhante ao Bolsa Família, que concede um benefício mensal de US$ 100 a 700. Atualmente, 42 milhões de pessoas (13% da população) estão cadastradas, mas o presidente quer garantir um corte gradual nos gastos até uma soma de US$ 193 bilhões em dez anos – atualmente, custa em torno de US$ 80 bi ao ano. Em geral, os programas sociais correspondiam a dois terços das reduções orçamentárias previstas no início do mandato.
Em dezembro, o secretário de Agricultura, Purdue, afirmou que o Snap não pode se transformar num “estilo de vida permanente”. De novo, soa familiar. Ele disse que foram criadas “flexibilidades” para garantir a “autossuficiência” dos cidadãos. Assim como no Brasil, “fraudes” em âmbito municipal serviram de pretexto para encolher o orçamento. Dias antes, o próprio Trump havia dito que as pessoas ficavam com raiva de ver que o vizinho não quer trabalhar “de jeito nenhum”.
A decisão de forçar os estados a limitar o benefício a indivíduos sem filhos é outra polêmica. Nos cálculos do Center on Budget and Policy Priorities, a exigência de restringi-lo a áreas com mais de 10% de desemprego excluiria de automático um milhão de cidadãos. Outros dois milhões deixariam de receber com base em restrições a idosos e pessoas com deficiência.
No começo de 2018, o governo voltou à carga contra o Snap, passando a prever um corte de 30% no orçamento até 2029. Outra medida é a conversão de parte do benefício em uma cesta de alimentos nada saudáveis: manteiga de amendoim, doces, cereais açucarados, feijão e frutas enlatados.
Também no início do ano, a Food And Drug Administration, equivalente à Anvisa, decidiu postergar para janeiro de 2020 a entrada em vigor da nova rotulagem nutricional, inicialmente prevista para julho deste ano. O objetivo é tornar os rótulos mais claros quanto a calorias e tamanho das porções, além de obrigar à separação entre açúcares naturais (como os existentes nas frutas) e açúcares adicionados.
Outra “flexibilidade”, essa patrocinada pelos republicanos no Congresso, tenta mudar uma proposta feita por Obama na virada da década e que deveria entrar em vigor em maio, após sucessivos adiamentos. Cadeias de restaurantes e máquinas de venda de comida teriam de passar a apresentar informação nutricional no local de compra. As empresas se apegam a um projeto de lei em tramitação, dizendo que esse daria maior liberdade para que cada estabelecimento possa definir a melhor maneira de apresentar os dados. O texto já passou pela Câmara e agora aguarda votação no Senado.
O pior é que os Estados Unidos, sede maior de transnacionais de alimentos, costumam ter o incômodo objetivo de influenciar o comportamento da humanidade. E, além de estimular o consumismo como pilar das economias de outros países, não são afeitos a aceitar não como resposta.
Exemplo tóxico
Donald Trump diz que odeia “perder tempo”. Refeição longa, para ele, é sinônimo de “atraso”. Por isso, invariavelmente, almoça um Big Mac, acompanhado de uma das 12 latas de Coca-Cola que ingere diariamente. É apaixonado confesso por McDonalds e Wendy’s (cadeia norte-americana de fast food especializada em “hambúrgueres quadrados”). O bacon vem antes, já no café da manhã, e o Doritos é consumido rotineiramente. O presidente garante, no entanto, que tudo que toma de refrigerante é “em versão diet”. Grande coisa; como veremos a seguir.
Homem que se orgulha por “não medir palavras”, o republicano consome calorias ao mesmo ritmo em que metralha o besteirol. O livro Let Trump Be Trump: The Inside Story of His Rise to the Presidency, (‘Deixe Trump ser Trump, a história da ascensão à Presidência’, ainda sem publicação em português), escrito por Corey Lewandowski e David Bossie, revela a obsessão do líder ultraconservador pelos ícones transnacionais de comida porcaria.
Os autores acompanharam a última campanha presidencial, em 2016. Eles registraram que um jantar típico de Trump é servido com duas unidades de Big Mac, dois sanduíches de peixe e um smoothie (“suco” com a consistência de um milk-shake) de chocolate. A refeição é igual a 2.672 calorias, quando o valor médio diário recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 2.000 a 2.500 calorias.
Obcecado também pelo Twitter, o homem de 71 anos acorda às 5h e verifica a conta da rede social sem sair da cama. Toma café da manhã vez ou outra. Se o faz, escolhe ovos e bacon. Quando não, só come pela primeira vez no almoço.
Autora do livro The Low-Fad Diet (um trocadilho com low-fat, uma dieta baixa em gorduras), a nutricionista inglesa Jo Travers, que faz parte da Associação Dietética Britânica, avaliou a alimentação de Trump para o jornal The Guardian. Ela concluiu que a dieta pode ter “impacto na capacidade do presidente norte-americano de raciocinar e tomar decisões”. Em resumo, Jo diz que o presidente não consome nenhuma fonte de ômega 3, “gordura boa” presente nas oleaginosas, em peixes e em sementes, fundamental ao funcionamento das células cerebrais. “O corpo substitui isso por outros tipos de gorduras, tornando mais difícil o trabalho dos neurotransmissores. Isso está muito ligado a distúrbios de humor”, explica.
A julgar só pelo consumo de Coca Diet por Trump, Jo Travers não está sozinha. A ingestão de bebidas com adoçantes artificiais aumenta o risco de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e demência, de acordo com estudo publicado pela Universidade de Medicina de Boston (EUA) e revisado pela Associação do Coração do país em abril do ano passado.
Os pesquisadores avaliaram 2.888 pessoas acima de 45 anos (média de idade de 62) para o risco de um derrame e 1.484 pessoas acima de 60 (média de idade de 69) no caso de demência. Outros textos científicos reforçam que os refrigerantes com açúcar ou adoçados artificialmente aumentam a possibilidade de ataque cardíaco ou AVC.