Estudo sobre impacto de alertas faz extrapolação sem qualquer fundamento para pintar cenário caótico, com perda de quase dois milhões de empregos
Apresentado em tom catastrófico em reportagem do jornal Valor Econômico, o estudo encomendado pela indústria sobre a colocação de alertas nos rótulos de alimentos não se sustenta. O documento da GO Associados, ao qual tivemos acesso, faz extrapolações a partir de uma pesquisa de opinião, sem levar em conta o deslocamento do consumo em direção a alimentos mais saudáveis e uma série de outras variáveis.
Já havíamos mostrado como as estimativas sobre perda de empregos, em até 200 mil postos de trabalho, não tinham embasamento. Agora, na tentativa de evitar que a Anvisa adote advertências frontais sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) protocolou um estudo de impacto econômico que fala em perdas superiores a R$ 100 bilhões. E já chega a quase dois milhões de empregos perdidos.
Inicialmente, pedimos à Abia que nos repassasse o documento, mas a organização rejeitou. Depois de obtido por outras vias, pedimos uma entrevista à GO Associados, que aceitou responder por e-mail a algumas perguntas. Questionada sobre o deslocamento do consumo em direção a outros produtos, a consultoria respondeu que “não foi realizada essa estimativa. Também nesse caso, há muitas variáveis e não seria possível considerá-las antes da implementação do novo modelo de rotulagem”.
Basicamente, o que o estudo fez foi esmiuçar os dados de pesquisa Ibope encomendada pelas próprias empresas. O levantamento de opinião foi desconsiderado pela Gerência Geral de Alimentos da Anvisa justamente porque capta preferências pessoais, e não evidências científicas sobre o melhor funcionamento de determinado modelo.
Agora, porém, reaparece como a base de raciocínio para os cálculos feitos pela GO. O estudo parte das preferências dos consumidores por faixa de renda, região geográfica, gênero e idade. Aí vem o primeiro pulo. Os percentuais são extrapolados para tentar entender qual seria o impacto de cada modelo nas opções de compra.
“Expandindo para toda a população brasileira, tem-se que o número de pessoas afetadas seria 15,9 milhões maior pela escolha dos modelos semi-interpretativos de alertas de rotulagem nutricional em detrimento dos modelos semi-interpretativos híbridos, o que corresponde a uma redução de 10,34% do consumo interno.”
Corporações como Coca-Cola, Nestlé, Pepsico e Unilever querem que seja adotado um semáforo com as cores verde, amarelo e vermelho para os nutrientes em destaque (o tal “modelo semi-interpretativo híbrido”). O setor privado é contrário às advertências implementadas de forma pioneira no Chile em 2016 – lá, também pintaram um cenário catastrófico que não se confirmou. Agora, Peru, Canadá e Uruguai também se preparam para usar os alertas.
Segundo a GO Associados, “a experiência do Chile não foi considerada, pois a realidade econômica e demográfica do país é bastante diferente da do Brasil, o que prejudica qualquer comparação”. A Abia, porém, frequentemente se vale dos dados chilenos para dizer que a medida é inócua do ponto de vista da redução dos índices de obesidade.
O estudo traz uma contradição evidente, que já havia aparecido nas estimativas de emprego. A Abia alega que o alerta não funciona porque é um sistema que assusta as pessoas, causando repulsa. O novo levantamento reforça essa posição, dizendo que menos de 7% pretendem usar o rótulo para tomar decisões de compra.
A seguir esse raciocínio, a associação empresarial não precisaria ameaçar pedir a “nulidade” da primeira rodada de consulta pública. É essa a promessa das empresas caso a agência siga adiante na ideia de proibir alegações de benefícios à saúde em embalagens com excesso de nutrientes – afinal, quase ninguém dá pelota ao que está no rótulo.
Tampouco seria possível pintar um cenário de perda de até 1,9 milhão de empregos. Para que se tenha uma ideia, os 808 mil postos de trabalho que seriam fechados no setor agropecuário correspondem a mais de 50% das vagas hoje existentes. Ou seja, o que as corporações estão dizendo é que as advertências causarão um êxodo rural de proporções bíblicas.
A isso se somariam 723 mil empregos fechados no setor de serviços e mais 346 mil na indústria. O documento, porém, não expõe o raciocínio que permitiu chegar a essa estimativa, que significaria anular a totalidade dos postos de trabalho criados pela indústria de alimentação no país (1,8 milhão, atualmente). Para que se tenha uma ideia, os dados mais recentes do IBGE sobre desemprego mostram que o problema afeta 13,4 milhões de pessoas.
Todo o cálculo da GO Associados é construído em cima de uma extrapolação: “Tem-se que a opção pelo modelo não preferível reflete no seu consumo.” Ou seja, se você gosta do semáforo, mas a Anvisa adota o alerta, você deixará de consumir produtos com o alerta. Como 19,7% preferem o semáforo e 9,3% preferem as advertências, os 10,34% de cidadãos contrariados provocariam uma catástrofe econômica.
E uma greve de fome, talvez. Sim, porque a GO Associados não fez estimativa de deslocamento de consumo em direção a alimentos mais saudáveis, que é o cenário mais provável.
Essa visão desconsidera alguns pressupostos básicos:
- O verdadeiro impacto dos alertas só será conhecido depois de adotados. Isso depende, por exemplo, do êxito ou do fracasso da campanha de comunicação que terá de ser feita pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa.
- A capacidade da indústria de alimentos de se reinventar é grande. Essas empresas podem reformular produtos, evitando selos. E podem convencer a Anvisa a postergar por anos a adoção definitiva, com um intervalo suficiente para que essa reformulação deixe os alertas com pouco ou nenhum efeito prático.
- O perfil de nutrientes a ser adotado, ou seja, os pontos de corte que definirão se um produto recebe o selo de “Alto em” açúcar, sal e gorduras saturadas. Isso é tão importante quanto o design. Se a Anvisa adotar um perfil de nutrientes frouxo, o alerta mais efetivo do mundo não surtirá efeito.
- Se a Anvisa decidir ampliar os nutrientes incluídos nas advertências, como é o desejo de organizações da sociedade e de pesquisadores, o efeito muda. Avisar sobre a presença de adoçantes, por exemplo, evita que a indústria faça uma mera substituição do açúcar por essas substâncias. Os custos sobem, e a efetividade da medida também.
Segundo a GO, “esses aspectos não foram considerados, pois para um estudo de impacto socieconômico essas iniciativas são muito variáveis se considerarmos sua efetiva implementação e sua abrangência”.
Com esses 10,34% em mãos, o estudo chega a um efeito-dominó de dar inveja a qualquer guerra civil. O faturamento total das empresas de alimentos em 2015 foi de R$ 236,4 bilhões. Logo, as perdas de faturamento ficam em R$ 24,4 bi. Com isso, os fornecedores de insumos perdem outros R$ 14 bi. As famílias perdem uma renda de R$ 18,4 bi, o que dá R$ 92 a menos para cada pobre brasileiro, da noite pro dia.
A agropecuária, tão tech, tão pop, perde R$ 11,2 bi, e mais R$ 2,4 bi em renda.
Até mesmo os setores de construção, vestuário e embalagens saem no prejuízo: R$ 14,3 bi e mais R$ 14,1 bi em renda.
Também haveria perdas em exportação de produtos. Sim, que país no mundo em sã consciência quer uma embalagem toda cheia de sinais de alerta? As gráficas conseguem imprimir embalagens diferentes para produtos voltados ao mercado interno e à exportação. É assim que acontece, aliás. Mas essa genial habilidade do século 21 não foi levada em conta.
O que os números mostram de verdade
No Chile, os alertas não provocaram desemprego, mesmo em um contexto de recessão econômica. Além dos dados que já havíamos coletado, as informações da Sofofa, a principal agremiação industrial do país, mostram crescimento expressivo dessas empresas. O último relatório disponível, de junho de 2018, registra que as corporações de alimentos e bebidas “seguem impulsionando” a expansão dos índices de vendas como um todo.
O Canadá pretende adotar em breve um sistema de advertências. É bom registrar que o perfil de nutrientes, ou seja, os cálculos usados para definir se um alimento tem excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas são mais brandos no caso canadense do que os parâmetros estudados pela Anvisa. Ou seja, o impacto de redirecionamento de consumo tende a ser menor.
Em uma estimativa abertamente conservadora, a conclusão do governo foi de um benefício de 3,19 bilhões de dólares canadenses (equivalente a R$ 10 bi) em dez anos, graças a uma redução de 1,5% nos custos de doenças crônicas (problemas cardiovasculares, diabetes e outras) no sistema de saúde. Já os gastos para as empresas ficariam em 836 milhões de dólares canadenses. Números bem distantes do cenário pintado pela Abia.