O ex-deputado William Dib, que despertou “bastante alegria” entre os fabricantes de comida-porcaria, sinalizou a portas fechadas que frearia adoção de alertas nos rótulos
Antes de ser nomeado, o novo diretor-presidente da Anvisa, William Dib, acenou por pelo menos duas vezes à indústria de alimentos ultraprocessados. Atas de reuniões a portas fechadas na Diretoria de Controle e Monitoramento Sanitário mostram que o ex-deputado sinalizou que colocaria um freio na ideia de que os rótulos tenham alertas sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas.
A leitura dos documentos, obtidos com exclusividade, surpreende: em ocasiões públicas, Dib jamais havia manifestado contrariedade com as advertências. Também chama atenção que as duas reuniões do agora presidente com representantes do setor privado se deram sem a presença da Gerência-Geral de Alimentos, responsável por conduzir o processo de discussão sobre o melhor modelo de rotulagem.
Na última semana, Dib deu reiteradas declarações, em entrevistas para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, a favor do sistema defendido pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia). Se levar adiante essa intenção, terá de atropelar a análise da área técnica, contrária ao modelo das empresas, e uma decisão da diretoria da agência.
A iniciativa integra o esforço de conter o crescimento dos índices de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, câncer, entre outras). O Chile foi o primeiro a adotar alertas, em 2016, seguido por Peru, Uruguai e Canadá. No Brasil, o modelo é defendido pelos principais pesquisadores em alimentação e pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, que na última semana declarou “enorme perplexidade” diante da postura de Dib.
Lemos atas relativas a reuniões de outros diretores e constatamos que a ausência da gerente-geral de Alimentos, Thalita Antony de Souza Lima, é a exceção nesse tipo de encontro.
Ao assumir o cargo, no último dia 21, Dib de imediato declarou preferência pelo da Abia. Trata-se de um semáforo que exibe as cores verde, amarelo e vermelho para os principais nutrientes, um sistema que as evidências científicas mostram ser ineficaz para mudar hábitos de consumo.
A manifestação de Dib em prol desse modelo atropela não apenas as pesquisas científicas, mas o trabalho acumulado desde 2014 pela Gerência-Geral de Alimentos e a decisão tomada em maio pela Diretoria Colegiada. Na época já havia articulações pela sucessão do então diretor-presidente, Jarbas Barbosa, cujo mandato se encerrou em julho. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Dib não escondeu que a saída de Jarbas foi o mote para mudar os rumos do processo. E aproveitou para se alinhar a mais um anseio das empresas: de que o prazo de implementação seja longo, falando em até cinco anos.
Uma análise do cronograma da história ajuda a entender melhor.
25 de maio
A Diretoria Colegiada aprova relatório preliminar que reconhece os alertas como melhor sistema para desestimular o consumo de ultraprocessados e incentivar a reformulação de produtos. A decisão é tomada por unanimidade. O então diretor-presidente, responsável pelo documento, fala claramente sobre o consenso em reduzir o prazo da primeira fase de consulta pública, dos 60 dias previstos inicialmente para 45 dias. William Dib não se opõe.
7 de junho
Dib se reúne com representantes de Abia, Confederação Nacional da Indústria, Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas (Abir), União da Indústria da Cana de Açúcar (Única) e Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab).
Na ocasião, expressa alguns compromissos com o setor privado que não haviam aparecido publicamente.
“O diretor concordou com a avaliação da CNI de que o prazo inicial seria curto”, registra o documento. “A Diretoria de Controle e Monitoramento Sanitários se compromete a votar favoravelmente à extensão do prazo.” Poucos dias depois, sem conseguir mudar a posição de toda a diretoria, a indústria entrou com ação na Justiça Federal para estender em 15 dias o prazo da primeira fase de consulta pública.
“O diretor ponderou ainda que a intenção da regulamentação é a difusão da informação, e não prejudicar a indústria.” Essa é uma meia palavra que para entendedor basta: quem tem acompanhado a discussão sobre o melhor modelo de rotulagem frontal sabe que as empresas alegam que os alertas prejudicam o setor privado. Embora a Anvisa tenha como missão a proteção da saúde pública, são frequentes as falas de que é preciso preservar o lucro das empresas. Isso pressupõe a adoção dos semáforos.
25 de julho
Alguns dias depois da liminar da Justiça Federal e na semana em que Jarbas encerra o mandato, diretores da Coca-Cola vão até Dib, que novamente realiza reunião sem a presença da Gerência de Alimentos. E, de novo, demonstra alinhamento ao discurso do setor privado: diretoria “defende moderação na escolha do modelo de rotulagem”.
30 de julho
Representantes da Abia têm encontro com Michel Temer em São Paulo e cobram a nomeação de um diretor “alinhado”. O presidente acena positivamente, dizendo-se contrário à adoção de alertas nos rótulos.
31 de julho
Dib tem audiência no Palácio do Planalto com Temer, que o havia indicado para o cargo de diretor da Anvisa em 2016. Nenhum outro diretor foi chamado.
1º de agosto
Diretores da Abia têm nova reunião com Temer, dessa vez em Brasília.
20 de setembro
Dib volta ao Planalto. No dia seguinte, o Diário Oficial publica a nomeação como diretor-presidente.
21 de setembro
Na primeira entrevista no cargo, ao jornal O Estado de S. Paulo, Dib se alinha à indústria de alimentos e diz que é “consenso” na agência a adoção do semáforo.
27 de setembro
Em nova entrevista ao Estadão, o diretor-presidente demonstra ainda mais alinhamento ao discurso das empresas e menciona a reunião de Temer com os empresários. “Não queremos quebrar a indústria ou criar dificuldades. Queremos ter comparação”, afirma e, ignorando evidências científicas, conclui que o sistema criado no Chile em 2016 é ruim: “A embalagem deixou de ser chamativa. Não é esse o espírito.”
O presidente da Abia, Wilson Mello, demonstra “bastante alegria” com a manifestação do diretor-presidente. Porém, admite não haver dados sobre danos econômicos provocados pela adoção dos alertas no Chile. Isso reforça o que demonstramos no Joio, que carece de qualquer fundamento a alegação do setor privado de que esse sistema causaria perdas de R$ 100 bilhões ao ano.