No Chile, avisos sobre sal, açúcar e gorduras têm impacto nos hábitos de consumo e na reformulação de produtos
Desde que o Chile adotou alertas nos rótulos de alimentos, há dois anos, pesquisadores e organizações se perguntam se os avisos sobre excesso de sal, açúcar e gorduras funcionam. A indústria tenta desacreditar esse modelo, tido como radical e responsável por assustar os consumidores. De outro lado, as evidências científicas indicam que é o melhor que se inventou até agora entre dezenas de sistemas diferentes.
A Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) quer barrar a adoção dessas advertências, que estão em análise pela Anvisa. Uma má notícia para as fabricantes de ultraprocessados foi dada durante o Congresso Latino-americano de Nutrição, em Guadalajara, com a divulgação de um conjunto de resultados que comprovam o bom funcionamento dos alertas. É uma das muitas medidas tentadas pelos governos para enfrentar a epidemia de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis.
Pesquisadoras da Universidade do Chile e da Universidade da Carolina do Norte (EUA) demonstraram, durante palestra no dia 14, que a medida teve impacto tanto na escolha alimentar como na reformulação de produtos. “O que podemos dizer com segurança é que os resultados mostram que a lei vai no caminho certo. Vamos ver se essa tendência se mantém no longo prazo, mas os resultados são positivos”, avalia Marcela Reyes, do Instituto de Nutrição e Tecnologia de Alimentos do Chile.
Esse ano, Canadá, Peru e Uruguai decidiram também adotar os alertas. Os dois países sul-americanos optaram por modelos esteticamente parecidos ao chileno: octógonos com a inscrição “Alto em” para cada nutriente em excesso. A implementação se dará ao longo dos próximos dois anos nas nações vizinhas, e está prevista para 2022 no país do norte.
O Chile tinha um dos maiores índices de consumo de bebidas adoçadas do mundo, e também de sobrepeso e obesidade. Em uma das frentes de análise, as pesquisadoras coletaram dados de 2.383 domicílios entre janeiro de 2015 e dezembro de 2017. Uma das conclusões é de que houve uma queda expressiva no consumo de bebidas adoçadas sujeitas a regulação, equivalente a 22 ml por pessoa por dia. Em calorias, a diferença entre antes e depois dos alertas foi de 8,5% por pessoa por dia.
Pesquisas com mães e adolescentes mostraram um alto grau de compreensão dos alertas, superior a 90% em ambos os casos. 35% das mães dizem levar em conta informação nutricional, contra 27% antes da medida. Os selos se converteram no principal elemento de decisão de compra. E há uma maior resistência a estratégias promocionais.
O senador Guido Girardi, responsável pelo projeto que resultou nos alertas, considera que a medida faz parte de uma ampla frente de luta contra a obesidade e as doenças crônicas. Na visão dele, os países da América Latina devem tomar a dianteira, uma vez que Estados Unidos e Europa sofrem um impacto maior do lobby por dentro do Estado. “Não são alimentos. São lixo. Nossos meninos e meninas não estão comendo alimentos. Quando um cereal tem 40% de açúcar, temos de chamá-lo de lixo.”
Em outra parte da avaliação, foram coletados dados de 12 mil produtos para comparar informações nutricionais antes e depois da implementação. No caso das bebidas, em açúcares totais houve uma queda média de 6,1 gramas por 100 mL para 3,8 gramas por 100 mL. Uma redução de cinco gramas por 100 gramas foi registrada entre os cereais. Nos queijos houve uma redução no sódio, de 705 miligramas por 100 gramas para 629.
Mas também houve categorias que pouco mudaram, caso das bolachas doces. Isso se explica pelos parâmetros estabelecidos pelo governo. Há casos em que era muito fácil de cumprir com os limites máximos de nutrientes.
Essa é uma das desvantagens de ser o pioneiro no assunto. Após a adoção dos alertas, a Organização Panamericana de Saúde (Opas) publicou um perfil de nutrientes mais rígido nos limites estabelecidos para que um alimento seja considerado “Alto em”. E sugeriu que os países que decidam adotar as advertências criem um selo específico para adoçantes. É uma maneira de evitar que as empresas façam uma troca massiva de açúcar pelos edulcorantes, cujos riscos à saúde humana não são totalmente conhecidos, como mostramos no Joio.
De toda maneira, as responsáveis pela análise consideram que a reformulação é um efeito colateral positivo: o central é comunicar às pessoas que devem evitar ultraprocessados e valorizar alimentos frescos.
As pesquisadoras se concentraram também nas mudanças sobre o marketing. Inicialmente, a regulamentação da lei previa que produtos com selos não pudessem ser exibidos no intervalo de programas televisivos voltados ao público infantil. Depois, estendeu-se a medida a toda a programação entre 6h e 22h. Além disso, esses produtos não podem ser comercializados no ambiente escolar, nem podem exibir personagens nas embalagens.
Foram coletadas 2.016 horas de programação em várias emissoras. Os anúncios antes voltados a programas infantis se deslocaram a noticiários e filmes. A quantidade de publicidade de produtos “Alto em” caiu significativamente, mas não chegou a zero. Esse foi um dos elementos que convenceram o governo de que a restrição deveria ser estendida a toda a programação.
Antes da lei, refrigerantes e chocolates respondiam pela maior parte da comunicação mercadológica. Depois, sucos de frutas e leites saborizados ocuparam as duas primeiras posições, mostrando outra lacuna: nem todas as bebidas adoçadas ficaram sob o escopo da legislação.
No Brasil
A Diretoria Colegiada da Anvisa aprovou em maio relatório preliminar favorável aos alertas. A análise da Gerência Geral de Alimentos mostrou que esse sistema é o que melhor funciona na mudança de hábitos de consumo. E concluiu que o semáforo defendido pelas empresas não tinha evidências científicas favoráveis.
O documento foi submetido a uma primeira rodada de consulta pública.
O fim do mandato do então diretor-presidente, Jarbas Barbosa, abriu espaço para uma mudança de rumos. No final de setembro, Michel Temer nomeou para a função o diretor William Dib. O ex-deputado federal assumiu dando seguidas entrevistas em favor do semáforo, dizendo se tratar de um consenso dentro da agência. Ele mencionou a necessidade de procurar um sistema que não afete as empresas.
De sua parte, a Abia tenta desde o ano passado desacreditar os alertas. A princípio, disse que o sistema não funcionava. Mas, após a decisão preliminar da Anvisa, emitiu um relatório falando que esse modelo provocaria uma redução de consumo tal que retiraria R$ 100 bilhões ao ano da economia brasileira. Como mostramos no Joio, o cálculo não se sustenta.
Não há data para que a Anvisa emita um rascunho de resolução a ser submetido a nova rodada de consulta pública.