Pesquisa inédita mostra impacto ambiental negativo de ultraprocessados e carnes

Doutorado da Faculdade de Saúde Pública da USP mostra que seguir recomendações do Guia Alimentar ajuda a natureza

“Prefira sempre os alimentos in natura ou minimamente processados e as preparações culinárias com predomínio de alimentos de origem vegetal, evitando os alimentos ultraprocessados.” O trecho é do Guia Alimentar para a População Brasileira, o documento do Ministério da Saúde que oferece orientações sobre comer de forma saudável.

Amplamente conhecido, ele toca também em um ponto ao qual se costuma dar menos atenção: o impacto ambiental das dietas. Esse aspecto, ligado às implicações sistêmicas da alimentação, motivou uma pesquisa inédita, relacionando o que se consome com as emissões de carbono e o uso das fontes de água.

O estudo “A alimentação e os impactos ambientais: abordagens dos guias alimentares nacionais e estudo da dieta dos brasileiros”, ao qual o Joio teve acesso em primeira mão, foi publicado em fevereiro deste ano e traz um novo olhar sobre o tema. Fruto do doutorado da cientista Josefa Maria Fellegger Garzillo, no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP, a investigação chega a uma conclusão para lá de importante.

“As dietas monótonas, com elevado consumo de carnes e alimentos ultraprocessados, pioram o quadro de segurança alimentar (…) [e] degradam os ecossistemas”, afirmou a autora.

Garzillo defendeu uma tese de 450 páginas, dividida em três partes. Primeiramente, ela estudou os guias alimentares de diferentes países e encontrou em 26 deles prescrições de como a alimentação está relacionada ao meio ambiente.

Na sequência, ela fundamentou uma metodologia para medir o impacto ambiental da dieta da população brasileira. Para isso, ela comparou o consumo médio de alimentos, segundo a Pesquisa de Orçamento Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o que preconiza o Guia Alimentar para a População Brasileira.

Por fim, usou o método que construiu para medir qual a pegada de carbono e quão intenso é o uso da água. Entre as conclusões, o seguinte: seguir o que diz o Guia Alimentar para a População Brasileira é a fórmula do sucesso. Quanto menos carnes e ultraprocessados, melhor para o meio ambiente.

“O maior consumo de carnes apresentou as pegadas mais altas (6,4kgCO2eq e 6293 litros de água). O maior consumo de ultraprocessados (4,2kgCO2eq e 3789 litros de água) apresentou pegadas comparáveis ao consumo médio. Se 200 milhões de brasileiros adotassem a dieta saudável, eles reduziriam as emissões em 45 milhões de toneladas de carbono ao ano”, ela escreveu.

A quantia calculada seria equivalente a deixar de queimar o gás de seis botijões de cozinha por pessoa anualmente. Seis botijões é, de acordo com a cientista, a quantidade de consumo de gás anual em uma residência brasileira com família de três pessoas. Assim, a redução das emissões de carbono, com a adoção das dietas previstas no Guia Alimentar por toda a população, levaria a uma economia semelhante à quantidade de gás de cozinha consumido em um período de três anos. Não é pouco.

O doutorado da cientista inaugurou um caminho nas pesquisas sobre alimentação. Não só reforçou a noção de que há impactos ambientais sobre o que se consome, mas foi capaz de medir, quantificando, o tamanho destas consequências.

As aferições da pesquisa complementam as informações disponíveis no Guia Alimentar para a População Brasileira. O estudo amplia o número de evidências sobre o que significa comer de forma saudável, para si e para o planeta.

Nunca é demais lembrar: para se alimentar de forma saudável, é preciso que a produção ocorra de forma saudável, garantindo a preservação dos recursos naturais. “A sustentabilidade ambiental é condição sine qua non para a segurança alimentar no longo prazo e alguns impactos ambientais podem representar riscos de desabastecimento de água e alimentos ou torná-los impróprios para consumo”, observou a autora.

Com mais evidências sobre o que é saudável, é possível, segundo ela, nortear mudanças nos hábitos individuais e, também, nos sistemas alimentares, reorganizando, por exemplo, como se dá a oferta e a demanda de alimentos. “As pessoas precisam ser informadas de que as escolhas alimentares devem compatibilizar saúde e cuidado ambiental.”

O foco da pesquisadora nos guias alimentares não é à toa. Garzillo disse que eles são, no momento, a principal ferramenta para promover dietas mais saudáveis e sustentáveis. Nos documentos com abordagem ambiental, ela constatou que há preocupação em orientar a compra de mercadorias com etiquetas ambientais e oriundos de produção local, sazonal e ecológica.

Além disso, os 26 guias analisados recomendam: faça maior consumo de hortaliças e frutas frescas, moderando as carnes, e opte pelos alimentos tradicionais, evitando os produtos ultraprocessados, que vêm em embalagens e estimulam o consumo excessivo e o desperdício. Seguir tais orientações pode levar a melhores escolhas para o meio ambiente, minimizando as emissões de carbono e o uso excessivo de recursos hídricos.

“Talvez os guias alimentares integrados pudessem ser definidos como instrumentos que suportam as políticas públicas de transição para sistemas alimentares sustentáveis — ou para sociedades sustentáveis — e têm a saúde como critério, a saúde das famílias, dos agricultores, da flora, da fauna, do solo”, escreveu a cientista.

“É um material pedagógico para orientar as pessoas sobre as práticas alimentares que sejam saudáveis e prazerosas a elas próprias e para o planeta Terra, inserindo nas suas recomendações as ações de proteção ecológica em diferentes escalas: domiciliar, local, global e – por que não? – filosófica (ética e estética)”, complementou.

O que é mais saudável

Hoje, a refeição padrão de um brasileiro é composta, na maioria, por arroz, feijão, carne vermelha, açúcar de mesa, óleo vegetal, frutas e sucos in natura, de acordo com o levantamento da cientista nos dados da POF. Isso representa, segundo ela, cerca de 49,7% das calorias consumidas em uma dieta de 2000 kcal diárias. Os ultraprocessados seriam 14,7%, contados congelados, bolachas, salgadinhos e outros, enquanto o pão francês, um alimento processado, corresponde a 7% da ingestão calórica.

Aqui, vale uma observação: o Brasil tem um perfil de consumo médio de carne que está acima dos patamares considerados saudáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda a ingestão de 350 a 500 gramas semanais. Juntas, as carnes e os ultraprocessados correspondem a 18% das calorias diárias de uma pessoa no país, segundo os cálculos da cientista.

Boa notícia: a comida de verdade (ainda) é a preferida pelos brasileiros. Má notícia: as pegadas de carbono e hídrica deixadas pela fatia menor de ultraprocessados, além da carne, no entanto, são consideravelmente maiores.

Segundo a autora, somente as carnes vermelhas representaram metade do total das pegadas de carbono do consumo alimentar médio. No entanto, a adoção de uma dieta como prevista no Guia Alimentar, com menos carnes e sem ultraprocessados, tem pegadas menores em 14,8% no carbono e 18% na água do que as dietas constadas na POF.

Também vale lembrar que o consumo acima dos níveis seguros nos dois grupos —que no caso dos ultraprocessados é nenhum— favorece o desenvolvimento de diversos tipos de doenças crônicas, como cânceres, principalmente o de cólon, assim como diabetes, hipertensão e obesidade.

A pesquisadora, portanto, afirmou que seguir o que recomenda o Ministério da Saúde pode tanto reduzir os riscos à saúde decorrentes de uma alimentação ruim quanto permitir a inclusão de alimentos menos danosos ao meio ambiente. Veja abaixo os quadros que ilustram a estimativa que ela faz.

Infográfico sobre a pegada ambiental da alimentação (Crédito: Reprodução)
Infográfico sobre a pegada ambiental da alimentação (Crédito: Reprodução)

“Poderiam ser imediatamente evitados os impactos ambientais dos alimentos que elevam os riscos à saúde e que devem ser evitados, tais como o açúcar de mesa, os alimentos ultraprocessados, as carnes processadas e o consumo além de 350 a 500 gramas semanais de carnes vermelhas.”

“Parte desses impactos ambientais seriam alocados para alimentos que devem ser consumidos em maior quantidade, como nozes e sementes, legumes e verduras”, disse.

Para chegar a tais conclusões, Garzillo vasculhou centenas de bases de dados  sobre os diferentes itens alimentícios que aparecem na POF do IBGE. Foram 569 publicações, entre artigos científicos e relatos corporativos, consultados para se chegar a uma estimativa dos danos ao meio ambiente provocados a pelo consumo das dietas estudadas.

Ela mesmo escreveu: “Os cálculos das pegadas devem ser vistos como a melhor estimativa possível, dentro das limitações e incertezas. Jamais devem ser vistos como medida exata.”

Mas, com essas informações estimadas em mãos, ela calculou o quanto se emite de carbono com os diferentes tipos de cozimento dos alimentos, levando em consideração o tempo de cocção, a fonte de calor utilizada e a taxa de queima do combustível. Comidas cruas ou preparadas na brasa ou churrasqueira, bem como os ultraprocessados, ficaram de fora. Por isso, a cientista faz uma ressalva.

“Não foram incluídas as pegadas relativas a transporte até a residência ou de estocagem em refrigerador ou freezer devido aos inúmeros cenários possíveis. Não foram calculadas as perdas ou desperdícios de alimentos”, admitiu. De certa forma, isso livra os ultraprocessados, e os seus infinitos processos industriais. A produção de muitos deles é desconhecida pelo grande público, mas demanda grandes quantidades de energia e, portanto, de carbono.

A autora reconheceu as limitações de sua pesquisa, que tem, por outro lado, o mérito de instigar outras pessoas a continuarem do ponto em que ela parou. “No esforço de criar as bases de uma linha de pesquisa, a tese tornou-se abrangente e estruturante, mas faltou no aprofundamento de vários temas relevantes, [pois] não pode abarcar um número maior de indicadores de desempenho ambiental.”

Ela afirmou que espera que mais cientistas prossigam pesquisando o assunto. “Apesar do avanço obtido na criação da base de dados ambientais, recomenda-se sua ampliação com outros aspectos relevantes, tais como o potencial de eutrofização, o uso da terra, o uso de energia, geração de resíduos sólidos, desperdícios de alimento, ecotoxicidade, entre outros aspectos. Todas essas ações farão parte dos planos futuros”, concluiu Garzillo.

Foto em destaque: Giu Levy. Nupens/USP.

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