McDia Feliz, uma campanha que perde força no Brasil

O McDia Feliz perdeu a força e a graça no Brasil nos últimos anos. A campanha que promete apoiar o combate ao câncer infantil vendendo lanches ultra-calóricos acompanhados de refrigerante e batata frita despencou em arrecadação. Há uma tendência de queda nos recursos obtidos, de acordo com levantamento do Joio nos relatórios de atividades do Instituto Ronald McDonald. Em valores reais, a data angariou menos R$ 5,37 milhões na diferença entre 2013 e 2018 com a venda dos lanches do Big Mac.

Gastar dinheiro com fast food para financiar políticas de saúde já não parece uma ideia tão boa quanto outrora. O evento que é a grande vitrine do McDonald’s sobre responsabilidade social está em decadência. Isso fica mais claro ao verificar a quantidade de sanduíches vendidos no McDia Feliz nos últimos anos. Ela também afunda. Foram 1,78 milhões de lanches em 2014, contra 1,51 milhões em 2016, que é o último ano com números disponíveis.

A quantidade de sanduíches vendidos no biênio seguinte permanece como um mistério tão denso quanto a fórmula do molho especial oferecido na rede de fast food. Os números referentes aos anos passado e retrasado não aparecem nos relatórios de atividade do Instituto Ronald McDonald. Esta reportagem analisou os documentos da entidade desde 2004. As únicas versões que omitiam a quantia de lanches despachados no McDia Feliz, dentre 15, no total, eram aquelas de 2017 e de 2018.

O relatório de atividades destes dois anos foi revisado em 8 de abril de 2019 pelo Grupo Audisa, que não viu problemas de adequação nos documentos do Instituto Ronald McDonald. Procurada por esta reportagem, a auditoria informou que por questões de sigilo contratual não poderia fazer comentários além da opinião que já foi emitida no caderno de demonstrações contábeis.

Recordar é viver. Todo o dinheiro obtido com a venda dos lanches Big Mac, na data, é destinado para financiar o Instituto Ronald McDonald, que fomenta iniciativas de combate ao câncer infantil. Como demonstram os relatórios da entidade, esta é a principal forma de angariamento de recursos que ela dispõe. A segunda fonte de financiamento mais importante são os cofrinhos disponíveis nas lojas do McDonald’s, onde os consumidores podem voluntariamente depositar o troco que recebem para apoiar o instituto.

Ocorre, no entanto, que a arrecadação oriunda dos cofrinhos também acompanha os outros números ladeira abaixo. Em 2013, as caixinhas colocadas nos restaurantes do McDonald’s angariaram, em valores reais, R$ 6,06 milhões; e em 2018, R$ 3,40 milhões.

Oficialmente, os relatórios do Instituto Ronald McDonald falam das conquistas alcançadas pelo evento, exaltando o crescimento dos números em vendas e arrecadação de um ano para o outro. Mas isso só funciona até a página dois. Os documentos se fundamentam em valores nominais, e não reais. Isto é, baseiam-se nas quantidades correspondentes ao valor em dinheiro exclusivo daqueles anos, sem que haja a devida correção de acordo com o índice da inflação acumulada no período.

Com esta metodologia, que não leva em conta as mudanças no poder de compra da moeda em circulação, o McDia Feliz tropeçou em arrecadação apenas duas vezes nos últimos seis anos. Em 2015, conseguiu R$22,11 milhões, ou R$ 370 mil a menos em do que em 2014, quando reuniu R$22,48 milhões. E em 2018, angariou R$24,64 milhões, R$ 710 mil a menos do que em 2017, quando arrecadou R$25,35 milhões.

Fonte: Relatório de atividades do Instituto Ronald McDonald

A história é bem outra, assim que os números são corrigidos conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um dos principais coeficientes para medir a inflação acumulada no Brasil. Valores corrigidos de acordo com o IPCA são chamados de valores reais, enquanto aqueles sem correção denominam-se valores nominais.

Em valores reais, há uma queda ininterrupta de arrecadação tanto no McDia Feliz quanto nos cofrinhos dos restaurantes do McDonalds. Em 2013, o evento angariou R$ 31,59 milhões contra R$ 26,22 milhões em 2018. As caixinhas de contribuição voluntária, por sua vez, arrecadaram R$ 6,06 milhões em 2013 e R$ 3,40 milhões em 2018.

Esta tendência de queda no fluxo de caixa do Instituto Ronald McDonald pode ser melhor visualizada com os números dispostos no gráfico abaixo. Há um pico de arrecadação em 2013, mas é quase queda livre na sequência.

Fontes: Instituto Ronald McDonald/IPCA-IBGE/Banco Central do Brasil

Esta reportagem enviou cinco perguntas ao McDonalds no Brasil e ao Instituto Ronald McDonald sobre a queda de arrecadação do McDia Feliz. A empresa de fast food respondeu na manhã de sexta-feira (23). “O que percebemos é que, mesmo diante de uma economia desafiadora, ao final de cada campanha, os clientes continuam engajados e solidários”, declarou a corporação, por meio de sua assessoria de imprensa, à reportagem.

O McDonald’s afirmou que arrecadou R$ 300 milhões ao longo de 30 anos, com a campanha. “Nesse período, os valores foram destinados, por meio do Instituto Ronald McDonald, a projetos como diagnóstico precoce, melhoria do atendimento médico hospitalar, construção de Casas Ronald McDonald e Espaços da Família, que acolhem os jovens pacientes e suas famílias durante o tratamento do câncer infantojunvenil.”

O Instituto Ronald McDonald, por sua vez, não respondeu.

O economista Claudio Guedes Fernandes, especialista em tributação e financiamento, diz que a crise econômica no Brasil pode explicar a queda na arrecadação do Instituto Ronald McDonald. “A comida no McDonald’s no Brasil é cara. É um produto mais de elite do que voltado às classes mais baixas”, diz ele, também consultor da ACT Promoção da Saúde, ONG apoiadora do projeto de jornalismo d’O Joio e O Trigo.

Fernandes ainda afirma que o menor angariamento de recursos, no entanto, reforça a percepção de que a campanha não visa efetivamente apoiar o combate ao câncer infantil. “O objetivo final do McDia Feliz não é arrecadar dinheiro, mas é trazer o consumidor para dentro da loja e trazer o consumidor consciente, que irá comprar e pensar que está ajudando uma causa.”

Taxar alimentos não saudáveis, como os fast foods ou os ultraprocessados, seria uma forma mais eficaz de ajudar no combate ao câncer infantil, segundo ele e outros pesquisadores em saúde pública ouvidos por esta reportagem.

Estes tributos poderiam ser revertidos para implantação de mais projetos voltados ao tema, assim como para investimentos em infraestrutura hospitalar. Além disso, a destinação destes recursos ficaria a cargo de interesses públicos e não de interesses privados, como é hoje no caso do Instituto Ronald McDonald.

Além do dinheiro obtido nas vendas, o McDia Feliz conta, no dia de realização, com a isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), oferecida pelos governos de diversos estados brasileiros com restaurantes da rede de fast foods. Tem mais, como já mostramos: o McDonald’s é investigado em diversos países por evasão de tributos.

Noves fora, não é novidade que o Big Mac não é nada saudável. Ultra-calórico e pobre em nutrientes, o lanche, como outras opções do MacDonald’s, já foi ene vezes associados ao ganho de peso corporal.

O Instituto Nacional do Câncer (INCA) reconhece, com base em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a obesidade e o sobrepeso são atribuídos ao desenvolvimento de pelo menos 13 tipos de câncer. “O excesso de gordura corporal provoca um estado de inflamação crônica e aumentos nos níveis de determinados hormônios, que promovem o crescimento de células cancerígenas, aumentando as chances de desenvolvimento da doença”, declara em artigo de agosto de 2017.

Além disso,  a presidenta do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Rita Frumento, diz que a obesidade e o sobrepeso são fatores de risco para outras doenças crônicas, como diabetes e problemas cardiovasculares. “Elas [junto com o câncer] são a principal causa de morte entre adultos e já atingem adolescentes e crianças. Além das mortes prematuras, essas doenças são responsáveis por incapacidade laboral, redução das rendas familiares e redução da produtividade.”

“É um conflito de interesses. E é um golpe de marketing: ‘eu te mato, mas eu alivio a dor.’ Eles dizem que são uma empresa consciente. Falam que participam do Pacto Global da ONU [Organização das Nações Unidas], como se fosse um pacto sério, quando é a ONU emprestando a marca para as corporações afirmarem que têm responsabilidade social”, acrescenta o economista Fernandes.

A venda de um produto associado à obesidade deve ser vista como controversa, no mínimo, segundo Larissa Mendes, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ela diz que a queda em arrecadações da campanha do McDonald’s pode estar ligada à maior consciência desta questão. “O consumidor está mais empoderado de informações sobre alimentação saudável e consequentemente menos vulnerável a campanhas controversas como a do McDia Feliz”, afirma.

Ambientes obesogênicos

Mendes e a colega Milene Pessoa, também professora do Departamento de Nutrição da UFMG, falaram um pouco mais ao Joio sobre como se dá a relação entre o desenvolvimento de obesidade e a proliferação de restaurantes fast foods. As duas são pesquisadoras do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Ambiente Alimentar e Saúde da universidade e responderam a algumas perguntas sobre o assunto.

Quase um quinto dos brasileiros (19,8%) está obeso, de acordo com a última Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde. Além disso, mais da metade da população (55,7%) está acima do peso, segundo a Vigitel.

O problema é multifatorial, e uma das chaves para entendê-lo é o conceito de ambientes obesogênicos, fundamentado pelos pesquisadores Boyd Swinburn, da Nova Zelândia, e Garry Egger, da Austrália. Ambientes obesogênicos se referem às características e condições ambientais influentes sobre escolhas e hábitos de vida dos indivíduos as quais favorecem o desenvolvimento da obesidade.

“Estabelecimentos com predominância de alimentos não saudáveis, como as redes de fast food, dentre outros tipos de estabelecimentos comuns na realidade brasileira, como bares, lanchonetes, lojas de doces seriam um proxy para piores escolhas alimentares”, explicou Pessoa, em uma breve troca de e-mails com este repórter.

“Dessa maneira, ambientes com pouca disponibilidade e acesso a estabelecimentos de vendas de alimentos saudáveis ou que oferecem poucas oportunidades para o deslocamento ativo e a prática de atividade física configuram-se como ‘obesogênicos’.”

Mendes complementou: “Estudos realizados em diferentes países do mundo acumulam evidências que mostram que a maior disponibilidade e acesso às redes de fast food (nos bairros e no entorno de escolas) associa-se ao maior risco de obesidade.”

“As populações que têm maior acesso a redes de fast food tendem a ter maiores prevalências de obesidade, pois estes estabelecimentos comercializam alimentos de baixo valor nutricional, alta densidade energética e, em geral, de baixo custo, principalmente em países desenvolvidos. Esses aspectos influenciam no consumo alimentar e, consequentemente, no estado nutricional da população que está inserida nesse ambiente”, concluiu Pessoa.

Colaboraram João Peres e Victor Matioli
Imagem do destaque: Denise Matsumoto/O Joio e O Trigo
Texto atualizado às 11h20 de sexta-feira (23) para incluir posicionamento do McDonald’s.

Campanha estimula mães e pais a denunciarem publicidade do McDonald’s

Por Guilherme Zocchio

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