Primeira reportagem da série sobre agroecologia em solo baiano mostra a micropolítica como fonte de boa alimentação
O grupo de doze pessoas não se encontraria por acaso em um sábado às sete da manhã se, de fato, a reunião não fosse importante. Aos poucos, Bruna Paez e Felipe Reis – donos da propriedade – recebem os visitantes que chegam no Sítio Terra, Distrito de Serra Grande, Litoral Sul da Bahia. E ninguém vem de mãos vazias: enxadas, mudas de plantas e equipamentos de campo. Além de muita comida, afinal, a lida na terra merece um bom lanche.
Oito agricultores, um técnico em meio ambiente, um biólogo e três simpatizantes da área de agroecologia formam a equipe para aprimorar os canteiros do Sítio Terra que está, aos poucos, se tornando agroecológico.
Um dos agricultores é Josailton Novais, ou “Xóda” – como os amigos o chamam. Ele nasceu em Iramaia, centro-sul da Bahia, mas desde os sete anos de idade mora na Chapada Diamantina, a quase 600 quilômetros de Serra Grande.
Assim como outros 192 agricultores, Xóda é colaborador de uma rede de orgânicos no estado, a Povos da Mata. Com muita experiência no plantio agroflorestal, é frequentemente convidado a visitar propriedades e ensinar outras pessoas a plantar de “forma natural”.
“É imitar o que a natureza faz. Você observa e imita”, ele ressalta.
Dessa vez, é a escola Dendê da Serra – uma referência em Serra Grande por seguir princípios pedagógicos de autonomia e democracia – que o recebe para fazer uma vivência com os alunos. A comunidade aproveita o convidado e o inclui em outros trabalhos, como o mutirão no Sitio Terra.
“Dos meus 14 aos 20 anos, trabalhei com o monocultivo de café, trabalhava com química mesmo”, diz o agricultor.
Trabalho coletivo é a base da opção agroecológica no Sul da Bahia Foto: Jefferson de Paula Dias Filho
Xóda conta que plantar café não supria a renda necessária para o ano inteiro e, frequentemente, tinha que vender a “diária” de seu trabalho.
“Eu não gosto de vender o meu dia. Ficar batendo enxada o dia todo, das 7 h às 16 h, me entristece. Você trabalha para enriquecer os outros. Essa é a realidade. Eu gosto de ter o meu tempo, de ir e vir quando eu quero”, ressalta.
A transição para a agroecologia começou quando ele assistiu a uma palestra sobre o tema em 2011, numa das fazendas em que trabalhava.
“Ali, eu entendi que a gente é parte da natureza, uma parte que tá destruindo (a própria natureza). Desde muito cedo, entendi e quero que a minha ação seja positiva na natureza, quero propagar isso”, enfatiza.
A costura da rede
Segundo o Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa) a Rede Povos da Mata é a sexta rede participativa com maior número de agricultores cadastrados no Brasil. Mesmo que já existissem movimentos “não oficiais” em favor da agroecologia e da produção sustentável, foi a partir do ano de 2014 que a rede começou, mesmo, a se organizar e conectar.
Foi o casal de agroecólogos, Gustavo Grando e Fabíola Ribeiro – paranaenses de origem – que iniciou as primeiras reuniões entre os agricultores e técnicos da região sul da Bahia. Formados em Agronomia e Zootecnia, respectivamente, pela Universidade Federal do Paraná, iniciaram as carreiras trabalhando na Rede Ecovida, a maior rede participativa de agricultores orgânicos do Brasil. A experiência engatilhou uma oportunidade de contribuir na estruturação da Rede de Agricultores Brotas Cerrado, em Minas Gerais, onde souberam da existência de comunidades baianas dispostas a produzir de maneira ecológica.
“Visitando aqui a região nós vimos a demanda de agricultores, de comunidades, assentamentos, quilombolas, de agricultura familiar… Pessoas já produzindo de forma agroecológica, mas reprimidas, no sentido da certificação, por não terem acesso às condições (burocráticas)”, diz Fabíola.
No início de 2015, o casal propôs um encontro para debater a organização de movimentos a favor da organização em rede. Mais de trinta comunidades surgiram dispostas a participar, na maioria, indígenas, quilombolas e assentados. Além do selo de orgânicos, a certificação permitiu às famílias que aderiram a organização de interesses em comum.
“A rede é o grande guarda-chuva que envolve os consumidores, os técnicos e pessoas afins. Os agricultores são os associados, mas todos que tiverem vontade de fazer parte do movimento podem aderir”, conta Fabíola.
A percepção da população que vive nos municípios de Uruçuca e Itacaré é de que, nos últimos anos, o movimento nas cidades cresceu muito e, junto com ele, a demanda pela produção de alimentos.
“A praça central de Serra fica lotada. Tô até pedindo alvará pra prefeitura pra trabalhar todos os dias da semana”, diz Juciara Argolo dia Anjos, comerciante da região.
Atílio Baroni Filho e Cinthia Sento Sé – ele da capital paulista e ela de Salvador – compraram, há três anos, um pedaço de terra no Distrito de Serra Grande, onde vivem com as duas filhas pequenas, uma de cinco anos e a outra de nove meses. O casal mudou para o Sul da Bahia buscando qualidade de vida, aproximação com a natureza e com a rede de alimentos saudáveis.
“Trabalhar com agroecologia é refletir sobre a visão ecológica do mundo, por isso que vejo a agroecologia como uma postura política. É justo pra quem tá produzindo? Tem crianças trabalhando? Os funcionários daquela propriedade recebem um salário mínimo, ou, pelo menos, o piso salarial da categoria?”, observa Atílio, que é professor de Yoga e agricultor.
Micropolítica como alternativa
Em meio à atual conjuntura política, com a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) correspondendo a cerca de 40% do Congresso Nacional e pressionando cada vez mais pelo afrouxamento das regras para o licenciamento ambiental e pela liberação de agrotóxicos, o técnico em meio ambiente Luiz Fernando Vieira Pozza, de Itacaré, acredita que a agroecologia é uma saída “inteligente e alinhada às demandas do planeta.”
“Mais do que produzir alimentos sem veneno, a agroecologia é um resgate da consciência ancestral, de conexão à terra, de respeito à diversidade, à vida, e aos outros reinos da natureza, produzindo segurança e soberania alimentar, num caminho completamente oposto ao da monocultura”, pondera.
A declaração de Luiz remete ao livro “Em defesa da comida”, em que o escritor e jornalista norte-americano Michael Pollan lembra que movimentos como o da agricultura orgânica não surgiram somente de políticas públicas. Foram também grupos de pessoas insatisfeitas com o que é comercializado pela indústria alimentícia que se mobilizaram e organizaram em coletivos de produção e consumo.
Em solo brasileiro, ainda na década de 90, as trocas de excedentes entre produtores originaram a maior rede participativa de orgânicos do Brasil, a Rede Ecovida. São quase quatro mil famílias produzindo alimentos orgânicos em toda a região Sul do país.
Sidilon Mendes, biólogo e integrante da Ecovida há mais de 25 anos, está hoje também no Sul da Bahia, desenvolvendo um projeto de organização do consumo da produção agroecológica. Ele acredita que o trabalho dos agricultores, combinado com a organização do consumo, é uma das bases para o bom funcionamento da rede.
“Se os consumidores quiserem alimentos livres de transgênicos, alimentos livres de agrotóxicos, vão ter que se reunir. Eles vão ter que fazer grupos de consumo. Conforme os agricultores se reúnem para ter a certificação participativa, assim também os consumidores têm que arrumar uma forma de se juntar para garantir o seu alimento”, afirma.
Um lembrete
Vale aqui um lembrete. É possível praticar monoculturas na agricultura orgânica. Por outro lado, pode-se plantar várias espécies de alimentos sem agrotóxico de forma que estejam misturados e se complementem. Simplificadamente, essa última forma é chamada de agroecologia. Em outras palavras, toda prática de agroecologia é um tipo de agricultura orgânica, mas nem toda a agricultura orgânica pode ser considerada agroecologia.
Foto em destaque: Jefferson de Paula Dias Filho
Brasil é pioneiro na certificação participativa de orgânicos