Sociedade civil enfrenta restrições para participar de decisões no governo e no Congresso, que mantêm encontros com grupos privados durante a pandemia
Em uma manhã de quinta-feira, no decorrer da pandemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) convidou um grupo com o qual se reunia e atravessou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, para ir ao prédio do Supremo Tribunal Federal. A comitiva era formada ministros e, principalmente, por empresários que apresentavam demandas ao governo.
Mais um capítulo de crise na República, a cena ocorrida em 7 de maio demarca, além do desrespeito do presidente ao isolamento social, outro elemento do enredo político no país.
Trata-se da facilidade com que assuntos particulares, configurados ali por representantes empresariais, têm para trafegar entre autoridades. Também remete às dificuldades que representantes do interesse público, por outro lado, enfrentam para conseguir o mesmo nível do contato.
Portas abertas a grupos do setor privado, no entanto, não são exclusividade de Bolsonaro. Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) inaugurou em 16 de março um comitê extraordinário de crise ao lado de representantes de grandes empresas, como a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e a Associação Brasileira de Supermercados (Abras).
Por sua vez, o Congresso também ofereceu a sua mostra de aceno aos interesses particulares. Colocou em votação em 12 de maio a Medida Provisória 910 (MP 910), que alterava regras fundiárias. Apelidada de MP da Grilagem, por dar anistia à ocupação irregular de terras públicas, a proposta foi barrada após pressão de entidades do terceiro setor.
A medida foi uma das poucas proposições que entrou na pauta do Legislativo nos últimos meses sem ter relação com o combate ao coronavírus. No entanto, ela poderia ter sido aprovada no vazio deixado por instrumentos democráticos que foram abandonados após o início das medidas de distanciamento social.
A votação da MP 910 aconteceu, inclusive, à revelia de uma carta com pedido de 85 organizações da sociedade civil e de outros deputados e senadores, reunidos na Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos com Participação Popular. Em 25 de março, o grupo requisitou que o Legislativo evitasse apreciar projetos que não fossem relacionados à pandemia de Covid-19.
Representante de uma entidades signatárias, Bia Barbosa, integrante da Coalizão Direitos na Rede e diretora do AdvocayHub, disse que, até o dia 6 de junho, as autoridades responsáveis não responderam ao documento.
Por essas e outras, organizações da sociedade civil se queixam da postura de representantes nos postos mais altos do setor público, pouco receptivos à conversa desde o início da pandemia no Brasil.
“O diálogo se tornou quase um monólogo. Mas não é só conosco, é generalizado”, declarou o assessor da Pastoral Carcerária Nacional, o padre Gianfranco Graziola. Desde o início de abril, a entidade, referência no apoio a pessoas presas e seus familiares, denuncia a falta de higiene e a omissão de casos de infecção pelo coronavírus em prisões.
“No âmbito carcerário, é ainda pior, ‘porque [existe a ideia que] são bandidos, que bandido bom é bandido morto’”, afirmou Graziola. Ele disse ao Joio que, além da pastoral, outras organizações civis têm não só dificuldades para acessar informações, como também não estão sendo consultadas para contribuir com as ações de combate à pandemia.
Com a escalada do número de mortes no país, os efeitos sanitários da transmissão do coronavírus não deixam —ou não deveriam deixar— de estar no radar. Mas representantes da sociedade civil se empenham para chamar a atenção para outros efeitos: os problemas políticos decorrentes da nova doença, que vão além do autoritarismo no governo federal.
“Crises agravam crises. Essa é a tendência. Essa crise vai sendo agravada também pelo afastamento dos atores sociais de poderem fazer incidência das pautas que beneficiam a coletividade”, afirmou à reportagem a especialista em políticas públicas do Greenpeace, Mariana Mota, uma das entidades que tomou a frente para barrar a MP da Grilagem.
A pandemia fez autoridades abandonarem audiências, reuniões, entre outros espaços que dão voz para a população incidir em decisões importantes. No lugar, deputados e servidores têm adotado aplicativos de conversa, videoconferências e, ato contínuo, acabam privilegiando aqueles grupos com que já têm contato.
Esse comportamento limitou o alcance das organizações civis. O advocacy, por exemplo, uma prática de visitar parlamentares para sugerir projetos a qual grupos como ONGs e movimentos sociais adotam, perdeu força nos últimos meses.
“É mais difícil o acesso aos representantes do Executivo e do Legislativo pela falta do contato do físico. Fica difícil se legitimar como um porta-voz da sociedade por meio de whatsapp ou vídeo, ao estabelecer uma nova relação com um parlamentar com quem você ainda não tinha contato”, disse Renato Godoy, assessor de relações governamentais do Instituto Alana, que fomenta a proteção aos direitos de crianças e adolescentes.
Pelo menos uma vez por semana, Godoy, que vive em São Paulo, ia a Brasília, como outros integrantes de organizações, para fazer advocacy na Câmara e no Senado. Agora, a atividade está limitada a encontros virtuais, cujos efeitos, segundo relatam representantes das entidades, acabam por ser, com frequência, apenas protocolares.
A casa do povo
Também chamado de “casa do povo”, o Congresso Nacional tem sido visto como um enclave de freios contra os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro. No entanto, o início da pandemia no Brasil acompanhou uma mudança em ritos do Poder Legislativo que deixou organizações civis à margem das decisões políticas.
Uma das alterações tanto na Câmara quanto no Senado foi a não abertura das comissões permanentes, que agrupam um número menor do total de parlamentares para deliberar sobre os temas relacionados aos projetos em trâmite no Congresso.
Exemplos de comissões permanentes são a de Constituição e Justiça, que trata da viabilidade jurídica de uma proposta, e a de Finanças, que verifica a viabilidade orçamentária. Assim como outras 23 de mesmo caráter, nenhuma teve integrantes indicados pelos presidentes da Câmara e do Senado, e, portanto, elas não entraram em funcionamento.
A ausência das comissões foi um elemento chave para limitar a atuação da sociedade civil, segundo Godoy, do Instituto Alana. “As comissões eram um espaço de muita participação social. Aconteciam audiências públicas, onde você contactava um parlamentar e reunia representantes com visões diferentes para discutir um assunto.”
De acordo com Mota, do Greenpeace, a mudança na apreciação de medidas provisórias foi outro ponto que tornou menos democrática a atuação do Poder Legislativo.
Normalmente, Câmara e Senado designam juntos uma comissão especial para alterações em uma MP. As sugestões, depois, seriam referendadas na comissão e, posteriormente, iriam para uma última votação em cada uma das das duas casas. Mas, hoje, há somente um relator que apresenta o texto para plenário com as modificações que julgar necessárias.
“Agora, o relator tem um poder extraordinário de votação. Ele pode colocar qualquer coisa na MP, sem que a sociedade tenha como interferir. Imagina o poder que ele adquire, eliminando a comissão especial”, argumenta a especialista em políticas públicas.
Para Douglas Izzo, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em São Paulo, a atual configuração do Poder Legislativo pode fazer com que o Executivo aprove propostas que retirem direitos. “É uma situação em que o governo vai usar para tentar aprovar medidas que trariam problemas em uma situação de normalidade”, disse.
Essa mudança de ritos acelera a velocidade de apreciação dos projetos. “O tempo da tramitação tem sido muito exíguo para qualquer tipo de incidência. As pautas são decididas em uma semana e os textos vão todos com questão de urgência na semana seguinte”, acrescenta Barbosa, do AdvocacyHub.
Nessa toada, o funcionamento do Congresso Nacional acaba também delegando mais poder à direção da Câmara e do Senado, o que desperta críticas. Segundo organizações civis, a tramitação de projetos no Legislativo se tornou pouco transparente e concentrou poder nas mãos dos presidentes Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Procuradas, as presidências da Câmara e do Senado não responderam às perguntas enviadas pelo Joio até a publicação deste texto.
Coalizões pela democracia
Apesar das dificuldades relatadas, as organizações da sociedade civil encontraram na atuação em conjunto uma forma de driblar as limitações impostas pela pandemia. “Isso levou as organizações a trabalhar mais em coalizões, para alcançar redes mais amplas do que as suas redes próprias”, disse Pedro Telles, também integrante do AdvocyHub.
“A dificuldade inaugurou uma atuação conjunta da sociedade civil: atuação em coalizões e em rede. Começou a aprofundar os nossos laços com outras organizações, em coalizões, para melhorar a nossa atuação”, acrescentou Godoy, do Instituto Alana.
Um exemplo de coalizão bem-sucedida é aquela que reuniu diversas organizações civis, além de ativistas, intelectuais e políticos de diferentes orientações ideológicas, para aprovar o projeto de renda básica emergencial. Após a pífia proposta de oferecer uma ajuda de R$ 200 mensais, as organizações conseguiram com que o Legislativo ampliasse a medida para valores de R$ 600 e R$ 1.200.
Segundo Telles, que integrou a coalizão, a iniciativa começou com poucas pessoas e entidades, mas ganhou força quando grupos diferentes notaram o mesmo interesse em comum. “Eles perceberam que havia ali tanto uma urgência de atender necessidades básicas quanto a demanda antiga de criar uma renda básica no Brasil.”
Izzo, presidente da CUT-SP, disse que a reunião de entidades por pautas em comum também é importante para evitar derrotas. Ele citou como exemplo a pressão por modificações em medidas provisórias que tentavam retirar direitos trabalhistas durante a pandemia.
“Não podemos dizer que as modificações que fizemos foram uma vitória. Mas foram importantes para modificar o projeto do governo, que era muito mais danoso para os trabalhadores. Isso foi objeto de intervenção das centrais sindicais”, concluiu.