Projeto inédito de O Joio e O Trigo mapeia onde falta e onde sobra comida saudável, revelando a relação do acesso a alimentos com as desigualdades sociais
A cidade de São Paulo, para quem não sabe, assenta-se sobre uma diversidade de rios. Conhecida como a Terra da Garoa, a capital paulista vive, por isso, a alternância climática de estações cheias e secas. Essa intermitência entre excesso e falta, porém, não diz respeito apenas à relação da capital paulista com as águas.
São Paulo: onde falta e onde sobra comida saudável, projeto de O Joio e O Trigo, mostra que no município há, também, diferenças entre a escassez e a abundância no acesso à alimentação. Este quadro, por sua vez, não está relacionado à sazonalidade, mas à divisão geográfica que permite existir, paradoxalmente, locais com muita e pouca oferta de comida saudável dentro da mesma cidade.
Em quatro mapas, este levantamento inédito indica como estão distribuídos os estabelecimentos de venda de alimentos, fazendo um mapeamento do ambiente alimentar no município. A investigação, que será tema de uma série de reportagens, revela onde se encontram os pântanos e desertos alimentares na capital paulista.
Pântanos alimentares são regiões onde a venda e exposição de alimentos considerados não saudáveis, ricos em calorias mas pobres em nutrientes, predominam. Neste locais, é igualmente comum o incentivo ao consumo dessas comidas com a oferta de porções extras, além do estímulo induzido por propagandas e campanhas de marketing.
Com características do tipo, o metrô paulista é, como já mostramos, um bom exemplo de pântano alimentar que atravessa a área subterrânea da capital.
Para os desertos alimentares, existem diferentes concepções. Em comum entre elas, a definição de que são áreas com pouca disponibilidade ou com dificuldade de acesso físico a estabelecimentos que oferecem comidas saudáveis. No Brasil, a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), considera, para isso, a densidade da distribuição desses locais para cada 100 mil habitantes de um território.
Em bases de dados públicas, o Joio levantou o CNPJ dos estabelecimentos de vendas de comida registrados até 2020 em São Paulo, como açougues, bares, lojas de conveniência, mercados, restaurantes e sacolões. Depois, verificou a inscrição deles na Classificação Nacional de Atividades Econômicos (CNAE). O CNAE dos recintos foi utilizado para dividi-los conforme a predominância dos tipos de alimentos que disponibilizam.
Os locais foram agrupados segundo a classificação de alimentos prevista no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde. 1. De venda predominantemente de alimentos in natura e/ou minimamente processados, considerados saudáveis. 2. De alimentos ultraprocessados, não saudáveis. 3. De venda mista das duas categorias anteriores.
Essa diferenciação se baseou no mesmo método utilizado pelo pesquisador Paulo César de Castro em sua tese de doutorado desenvolvida na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e defendida em abril de 2018.
De acordo com a metodologia, desertos alimentares são os bairros onde há escassez na oferta de alimentos in natura e/ou minimamente processados, enquanto pântanos são aquelas regiões onde os ultraprocessados inundam o ambiente.
Castro, que também é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez um levantamento semelhante ao de São Paulo, mas com os estabelecimentos registrados até 2013 na capital fluminense. O objetivo dele era o de verificar a relação do ambiente alimentar com a desigualdade neste município**.
O pesquisador acompanhou o levantamento do Joio fazendo uma consultoria técnica. “Sempre que eu olho para o mapa de estabelecimentos de comida, olho para a distribuição dos serviços no município. Isso também vai se repercutindo no ambiente alimentar”, afirmou.
Desigualdades presentes entre os bairros da cidade, como o acesso a serviços de saúde, ou indicadores de IDH ou renda acompanham o maior ou menor o acesso ao direito humano à alimentação adequada e saudável, de acordo com o pesquisador.
O projeto onde falta e onde sobra é, por enquanto, a investigação mais abrangente sobre a oferta de alimentos na cidade de São Paulo. Outros levantamentos, como o feito pela Coordenadoria de Vigilância em Saúde da prefeitura, já apontavam a existência de desertos alimentares no município, mas não indicavam a existência de pântanos alimentares, chegando ao mesmo nível de detalhamento.
Desigualdade social e alimentar
Em São Paulo, uma imagem marcante é a diferença entre a qualidade de vida nos bairros do centro expandido e aqueles mais afastados, nas periferias. Este contraste é semelhante na distribuição da oferta de alimentos.
Nas regiões limítrofes do município, há mais desertos alimentares, enquanto os pântanos se concentram nas regiões centrais, onde também estão mais estabelecimentos de natureza mista. Os mapas de onde falta e onde sobra permitem visualizar essa diferença. Quanto mais claro o bairro, menos estabelecimentos. Quanto mais escuros, mais estabelecimentos.
A distribuição de acesso a alimentos também se concentra naqueles bairros com maior índice de desenvolvimento humano (IDH). O indicador varia entre 0 e 1, calculando a longevidade, a escolaridade e renda médias, e serve como uma espécie de régua para medir a qualidade de vida em um determinado local — quanto mais alto, melhor.
Onde falta e onde sobra também comparou a distribuição de todos os estabelecimentos, de acordo com o endereço e conforme a característica (predominância de in natura, mista ou ultraprocessados). A constatação é de maior concentração de todos os tipos de estabelecimentos nos bairros com IDH mais alto.
Essa distribuição do acesso a alimentos está relacionada à falta de ações do poder público, de acordo com Vera Vilela, coordenadora executiva e representante da sociedade civil no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo (Comusan).
“Quando você entrega para a rede particular a responsabilidade de disponibilizar feiras, sacolões e mercados, que é do poder público, você coloca o alimento como uma mercadoria, e não como um bem que todos devem ter acesso. Há mais estabelecimentos no centro porque é onde há um fluxo maior de serviços, negócio e empregos. Essas são as áreas que a iniciativa privada procura.”
Vilela diz que, para um melhor o acesso à alimentação, a prefeitura deveria agir na contramão da iniciativa privada, instalando equipamentos públicos, como feiras livres e mercados municipais, para aumentar a oferta de comida nas regiões mais periféricas.
Pessoas que vivem em bairros com IDH mais baixo têm menos poder aquisitivo. O geógrafo José Raimundo Ribeiro pesquisou no doutorado os hábitos alimentares de trabalhadores com menos dinheiro. Segundo ele, a probabilidade de um lucro maior* leva a iniciativa privada a se concentrar nas regiões mais ricas de São Paulo.
“A renda induz a um tipo de produto que vai estar disponível em determinada região. No geral, o que percebi na minha pesquisa é que os alimentos de melhor qualidade vão para as regiões mais centrais”, diz Souza, que é professor visitante do Instituto de Saúde e Sociedade da Unifesp e representante da Associação dos Geógrafos Brasileiros no Comusan.
Procurada pelo Joio, a Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional da Prefeitura de São Paulo (Cosan) declarou que a distribuição do acesso a alimentos na cidade acompanha a percepção dos comerciantes destes produtos, que decidem em quais regiões é mais interessante se instalar.
Por meio da assessoria de imprensa, a Cosan ainda afirmou que a gestão municipal tem um programa de banco de alimentos (PMBA) que usa para acessar as áreas com menos oferta. “O PMBA promove a distribuição dos alimentos junto aos cidadãos em situação de vulnerabilidade, por meio das entidades assistenciais cadastradas junto ao programa.”
O fator coronavírus
A pesquisa realizada para onde falta e onde sobra levantou informações anteriores ao início da pandemia de Covid-19 no Brasil, em março. O registro dos estabelecimentos de venda de alimentos, portanto, pode diferir da situação vivida atualmente. A disseminação da doença causada pelo novo coronavírus alterou o funcionamento da economia, fechando bares, lojas de conveniência e restaurantes, entre outros.
A Associação Nacional de Bares e Restaurantes (Abrasel) declarou, em informativo publicado no final de maio, que cerca de 20% das empresas do setor no Estado de São Paulo entraram em falência. A entidade estima que, na capital paulista, 4 em cada 10 estabelecimentos do ramo fecharão as portas por decorrência da crise sanitária.
Neste cenário, a falência é o pior dos problemas enfrentados por bares e restaurantes, mas existem outros. A Abrasel diz que 57,1% demitiram funcionários, 83,3% suspenderam contratos de trabalho, com base na Medida Provisória 936, e 45,2% reduziram o salário e jornada de seus empregados. As informações foram divulgados por uma reportagem do programa SP1, da Rede Globo.
Mesmo que a situação em São Paulo tenha mudado substancialmente nos últimos meses, onde falta e onde sobra mostra um cenário que, se não mudar após o coronavírus, pode levar a diferenças mais acentuadas. No comércio, por exemplo, o Joio já mostrou que as grandes redes de supermercados tiveram um considerável aumento dos lucros, com os desdobramentos da pandemia.
Em outras palavras, entre os estabelecimentos de acesso à alimentação, os mais fortes podem sair maiores e os mais fracos, ainda mais frágeis. Castro, da UFRJ, disse que essa é uma das tendências. “A pandemia está deixando ainda mais evidente o quanto desigual é a sociedade brasileira.”
“Várias estruturas vão fechar. Mas a gente vê também que quem vai fechar o seu comércio são aqueles comerciantes que têm menor margem de capital. O grande capital não vai fechar suas portas, talvez uma ou duas lojas, mas a perda de ativos vai ser menor”, complementou.
De carona com o coronavírus, o pior legado da crise, segundo o pesquisador, é a volta da fome. “Desertos [alimentares] podem se tornar piores e haver mais desertos. Assim como a questão da insegurança alimentar pode se tornar mais latente nas cidades, com a volta da fome e a volta de questões que a gente vivenciou há algumas décadas no Brasil”, concluiu.
Confira todas as reportagens publicadas na série:
- São Paulo: entre a abundância e a escassez no acesso à alimentação
- Deserto alimentar, Grajaú luta contra o coronavírus e a falta de políticas públicas
- Em pântanos alimentares, ultraprocessados ‘alagam’ bairros ricos de SP
- Oferta mista de alimentos é a maior em São Paulo e favorece os ultraprocessados
- Em São Paulo, mais dinheiro não é sinônimo de mais comida saudável
Os dados utilizados para o levantamento estão disponíveis aqui
*Texto atualizado às 17h de 22 de junho para corrigir erro de digitação.
A versão original dizia "lucro menor". O correto é "lucro maior".
**Correção no texto às 22h27 de 22 de junho.
Diferente do publicado anteriormente, a tese de doutorado de Castro não estudou
a relação do ambiente alimentar no Rio de Janeiro com o IMC em adultos,
mas, sim, com a desigualdade social neste município. O estudo com o IMC
foi fruto de outro trabalho do pesquisador.