Sem crise: a indústria da carne disparou os lucros durante a pandemia; frigorífico em Minas Gerais é exemplo de monopólio financeiro, sobrecarga laboral e alta contaminação de funcionários
Com um toque de mostarda e mel, a Asa de Frango Avivar ganha um sabor ainda mais especial. O azedinho da mostarda e do trabalho excessivo, a doçura do mel e do dinheiro e a combinação de alho, cebola, salsa e carência de organização política dos funcionários dão aquela suculência às asinhas de frango e aos donos da empresa, que também “dominam” um município do centro-oeste mineiro, no qual o frigorífico está instalado.
Toda essa “deliciosa mistura agridoce”, deixa os cidadãos de São Sebastião do Oeste em alerta. De acordo com o último boletim informativo de coronavírus, o município de pouco menos de seis mil habitantes, alcançou 73 casos confirmados e 24 suspeitos em isolamento domiciliar. A incidência média é de 1.077 casos a cada 100 mil habitantes, pouco acima da média nacional, 935, e bem superior a do estado de Minas Gerais, 387.
Porém, nesse caso, a disseminação do vírus tem aspectos peculiares. A sub-notificação de casos parece um pouco mais profunda que na reportagem que citamos sobre Canaã dos Carajás, no Pará. Um grande investimento em marketing, a falta de testes na cidade e o envolvimento entre a Avivar e o poder público parecem ser a receita ideal para a falta de notícias sobre os casos de covid-19 no frigorífico e a baixa atuação sindical.
Existem ao menos quatro fábricas da Avivar em São Sebastião do Oeste: a do setor de frigoríficos, abate e corte de aves; a dos industrializados, que embute salsichas e outros tipos de ultraprocessados; a fábrica de ração; e, por fim, a de armazenamento. A empresa conta, ao todo, com 3,5 mil funcionários trabalhando no complexo industrial e demais unidades de produção espalhadas pela Região Sudeste brasileira; 2,2 mil desses trabalhadores operam no complexo industrial do município, o que representa quase 40% dos habitantes da população, de acordo com o último censo do IBGE.
O mercado que não quebra
A Avivar conseguiu, na primeira semana de maio, em meio à pandemia, a permissão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e da Singapore Food Agency (SFA) para embarcar cortes de frango para Singapura. Outras 150 vagas de emprego foram abertas em São Sebastião.
“Eles falaram que teve uma baixa na produção durante a pandemia, só que a única coisa que a gente mudou foi não ir trabalhar no sábado, que, às vezes, a gente ia. Aí, pela pandemia a gente ficou trabalhando de segunda a sexta, e se tivesse algum feriado, aí, a gente trabalhava no sábado, mas mudança de diminuir, não. Continuou o mesmo padrão”, conta um funcionário sobre o ritmo de trabalho na fábrica.
De acordo com o último relatório de atividades sobre impactos decorrentes da pandemia do coronavírus do Sistema de Inspeção Federal (SIF), a demanda por certificação sanitária para fins de exportação de produtos de origem animal do Brasil cresceu 11% em junho, comparado ao mesmo mês do ano passado.
Ainda segundo o documento, no mês de maio, foram realizados 132 turnos extras de abate, requisitados de forma emergencial pelos abatedouros frigoríficos de aves, bovinos e suínos registrados no SIF.
Subnotificação
“Pode procurar o posto de saúde mais próximo da sua casa, provavelmente vão te dar atestado, pedir para que você repouse e vão ficar monitorando seus sintomas à distância”. Essas são as orientações dadas a qualquer pessoa que ligue para a Secretaria de Saúde do município suspeitando apresentar sintomas do novo coronavírus. Sobre os testes, a funcionária da secretaria recomenda o “André”, do laboratório particular.
André Moreira Silva é dono da única clínica particular da cidade, a Unidade de Apoio Diagnose e Terapia Laboratório São Sebastião. É o único, também, que faz testes particulares de covid-19, cada um por 100 reais.
Os relatos dos funcionários da Avivar convergem: todos com “sintomas de gripe” são afastados pelo médico da própria empresa e voltam quando estão recuperados. Não há relatos de testes feitos pela Avivar e muito menos garantia que os trabalhadores paguem pelos testes particulares do André.
“Algumas pessoas ficavam gripadas e eles davam atestado. Confirmado, eu não procurei saber muito disso. Ter, tinha, mas acho que eles escondiam, só falavam que tava gripado. Eu ficava gripado porque o setor é frio, mas é o normal. Antes da pandemia, também ficava”, conta um ex-funcionário da fábrica, que decidiu voltar para o Nordeste na pandemia para cuidar da mãe.
“Depois dessa pandemia, que foi todo mundo obrigado a usar máscara, parece que piorava, que ficava mais gripado ainda. O negócio atrapalha a respiração, atrapalha tudo”, conclui.
De acordo com o último censo do IBGE, a média salarial do município é de dois salários mínimos. Os trabalhadores da área de produção ganham, em média, 1.450 reais.
São Sebastião do Oeste é um exemplo que se encaixa no levantamento do Joio, realizado em junho, onde identificamos grande parcela de frigoríficos em pequenos municípios do Brasil. Municípios com sistemas de saúde frágeis, média salarial baixa e pouca organização política de trabalhadores. Dessa vez, com um agravante: o complexo industrial da Avivar é quase que a única opção de emprego na região.
“A Avivar manda em São Sebastião do Oeste. São os donos da Avivar que mandam lá. Nem é o prefeito, não. Por que todos os impostos vem de lá, da Avivar pra eles [prefeitura], né? Tanto que se os funcionários passam mal lá na cidade, [os médicos] nem dão atestado. Dificilmente. Só se a pessoa tiver morrendo, mesmo. Os postos e hospitais já são avisados pra não dar atestado pros funcionários da Avivar”, relatou uma funcionária que preferiu não se identificar.
Estratégias Corporativas
De acordo com o Sistema de Inspeção Federal de frigoríficos, a empresa limitada Avivar Alimentos, abate de seiscentos a 1.500 frangos por hora e domina todo o processo produtivo – desde de o ovo da galinha à embalagem e industrialização dos alimentos.
O frango é o carro-chefe, mas não quer dizer que a salsicha embutida, o pão de queijo e a batata frita não tenham espaço nas vendas. O tal do “frango pocket”, mencionado no título da reportagem, é uma das linhas de “preparo fácil” da marca, carregada de aditivos. Centros de distribuição estão espalhados por todas as cidades-polo de Minas Gerais.
A empresa aposta fortemente no patrocínio de lives sertanejas, exposições, shows e eventos gastronômicos em todo estado mineiro. No último mês, a Avivar patrocinou a “Live Solidária” da dupla Gino e Geno “pelo combate ao câncer”. Eles doaram uma tonelada de coxa e sobrecoxa para a Associação de Combate ao Câncer do Centro-Oeste de Minas (ACCCOM).
Um dos mais polêmicos apoios é o que a empresa faz à ACCCOM doando, mensalmente uma caixa de 25 quilos, com coxa e sobrecoxa para funcionários e pacientes da instituição, fora o apoio financeiro que o grupo mantém em sigilo. Por mais que os funcionários não tenham mencionado doação de salsicha, não é novidade que o alimento embutido seja prejudicial ao coração e também está associada cientificamente a vários tipos de câncer, já que é um alimento ultraprocessado. E a empresa não as deixa de produzir.
A salsicha é submetida a técnicas extremamente artificiais, compostos químicos que possuem a função de evitar a formação de bactérias para que os alimentos sejam mais duráveis. Esses compostos químicos têm potente ação carcinogênica.
No entanto a apropriação ilegítima de causas pela indústria alimentícia não é uma novidade. Nas redes sociais, por exemplo, a empresa tem como uma das principais estratégias corporativas, citar práticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), em campanhas internas, como a de 2016, contra o tabagismo.
A confusão entre o público e o privado
São várias as menções de Belinho Leite, prefeito de São Sebastião do Oeste, a Avivar Alimentos no perfil que mantém no Facebook – que também serve como uma espécie de canal oficial para a divulgação de casos do novo coronavírus na cidade. Não existe boletim epidemiológico. A Secretaria de Saúde orienta que a atualização de casos de covid-19 seja feita no perfil pessoal do prefeito.
Dificilmente, alguma postagem tem repercussão negativa nas redes de Belinho e são poucas as mensagens que ele ou a assessoria não respondem, diferentemente dos comunicados e decretos sobre a pandemia, em que os próprios funcionários da Avivar o questionaram diversas vezes sobre a abertura da fábrica.
“Que controvérsia nessa cidade! Caixas de som orientado o povo a ficar em casa, nossas crianças sem irem às escolas e os pais se arriscando na empresa Avivar. A ganância em primeiro lugar, novamente! […] A Empresa Avivar se nega a entregar até as máscaras aos funcionários, somos gente e não máquinas, temos famílias em casa nos esperando esperançosos e apreensivos.”, disse uma funcionária em um comentário.
“Vamos olhar Sr. Prefeito, a questão dessa empresa AVIVAR ALIMENTOS. Depois do mal distribuído, não adianta querer tomar medidas drásticas. Não é possível que o financeiro injetado na economia da cidade seja pra pagar pelas vidas dos funcionários”, respondeu, nos comentários, um usuário do Facebook.
“Mas se a Avivar não parar também não vai adiantar nada. Porque lá é muitas pessoas no setor, sem falar que é muito frio. Deveria ser tomada providência”, ponderou outro.
Foi Juscelino Teixeira que respondeu aos comentários aflitos:
“Preciso deixar claro que o órgão que regula o funcionamento da Avivar é o Ministério da Agricultura que responde diretamente ao GOVERNO FEDERAL. O Município não tem competência e nem legalidade para “fechar” ou “manter aberta” a empresa, que por se tratar de empresa de alimentos, um segmento de carácter essencial, tem recebido tratamento especial por parte do governo federal, que está visando evitar o desabastecimento da população”.
Ainda complementou: “A situação é crítica. As opiniões divergem. Mas que saibamos que neste momento paralisar as empresas de alimentos pode ser a antecipação de caos. Pessoas doentes não se alimentam, mas pessoas sem alimento não resistirão ao vírus.”
Juscelino, que se auto nomeou “fiscal de posturas do município e responsável pela expedição de alvarás de localização e funcionamento dos estabelecimentos da cidade”, não mencionou o importante dever que a Secretarias de Saúde e a Vigilâncias Sanitária têm de fiscalizar os frigoríficos e as normas que as próprias secretarias podem instituir.
Vale lembrar que as bocas alimentadas pela Avivar se concentram na região sudeste do Brasil e em dezoito países da Ásia, África e América Central. As regiões brasileiras Norte e Nordeste também são atendidas pela empresa, mas de forma reduzida. Pouco fica em São Sebastião do Oeste.
A história se repete
Como em Canaã dos Carajás, nenhum dos funcionários do frigorífico que deu depoimento para a reportagem é filiado a sindicatos ou faz parte de organizações políticas que lutem pelos direitos do trabalhador.
“Não sou filiado a nenhum sindicato. Nem conheço, não. São Sebastião do Oeste é pequena, cidade vizinha é um pouco longe (Divinópolis, a 33 quilômetros de distância) não dá tempo de eu sair daqui pra ir pra lá, não”, disse um dos funcionários.
“Pra falar a verdade eu nem pago, porque eles não fazem nada pra gente. A gente não sabe onde fica isso, eles só querem saber quando tem a gente tem que doar a contribuição. Mas eles não fazem nada pra gente!“, menciona outra funcionária, que preferiu não revelar o nome.
Além dos problemas recentes, ligados à vulnerabilidade e contaminação dos funcionários pelo novo coronavírus, existem dificuldades que uma organização política a favor do trabalhador poderia facilmente intervir.
“Por exemplo: hoje é dia de semana, daí, a gente trabalha hoje pra depois folgar no sábado. Mas, às vezes, eles têm que mexer na empresa e a gente tem que folgar em um dia de semana e, depois, trabalha no sábado pra compensar como dia normal. Não ganha hora-extra [por trabalhar sábado] e fica elas por elas. Só fazem a troca normal do dia”, conta uma funcionária.
“A gente não tem voz ativa pra nada. Não pedem opinião dos funcionários. Eles simplesmente comunicam e a gente tem que acatar e pronto”, conclui.
Problemas mais conhecidos no setor de frigoríficos e no Anuário de Acidentes de Trabalho do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como dores articulares, perdas de movimento ou alergia a produtos químicos, também são comuns entre os funcionários da Avivar.
“A minha mão fica áspera, grossa, já perdi minhas digitais. Fui fazer a biometria para o título de eleitor e eu não tenho mais digital, eu perdi. Minha mão é bem sensível e coça muito, fica vermelha. Coça até sangrar. Cheguei a esse ponto. Tomo cuidado e compro os cremes que eu posso comprar – porque são cremes muito caros”, disse uma ex-funcionária, que pegou uma alergia do corante da salsicha, mesmo manipulando de luva.
“É o corante da salsicha. Hoje, eu não posso ter contato com brinco, bijuteria, detergente de lavar prato. Aqui em casa, são vários tipos de luva pra cozinhar… Eu uso luva pelo ácido da cebola, que minha mão arde, se eu não tiver com luva. Mudou minha vida completamente”, relata.
“Família empreendedora”
A história da Avivar se confunde com a de São Sebastião do Oeste e dos próprios sócios, os irmãos José Magela Costa e Antônio Carlos Costa, e o sobrinho Framir Araújo. Alberto Alves da Costa, pai de José e Antônio, acompanhou de perto o nascimento do município e foi um dos responsáveis por erguer a igreja católica “São Sebastião”, pouco antes da cidade se separar de Itapecerica e ganhar independência política.
Há boatos de que o dono das terras, Honorato Terra, tenha encomendado a capela, em homenagem a São Sebastião, que lhe concedeu “a graça de proteger seu gado de uma epidemia de peste”. Honorato só esqueceu de pedir a benção para os trabalhadores do futuro frigorífico.
Entre 1977 e 1983, José Magela foi prefeito de São Sebastião do Oeste e no final da década de 90, fundou, ao lado do irmão e de Framir, a Avivar Alimentos. Tatyana Costa Carvalho e Maria Izabel da Costa, membros da família, são donas do Hotel Dona Lígia, também no município.
“Aqui em São Sebastião do Oeste, você não tem muitas opções. Pra mulher é ou Avivar ou costura”, conta uma ex-funcionária da empresa que pediu demissão e, hoje, trabalha em uma microconfecção de roupas da cidade.
“Foi um ano conversando pra conseguir mandar embora, mas, enfim, mandaram. A Avivar é a única fábrica que emprega e a maior parte do pessoal que trabalha lá é do Nordeste. Eu sou, mas estou aqui no estado de Minas há dez anos. A maioria do pessoal com quem eu trabalhava à noite, 80% do pessoal era nordestino”, conta a ex-funcionária, que também optou por não se identificar.
Para outra funcionária, que mora em Divinópolis, aproximadamente a trinta quilômetros do município, o maior problema quando o assunto é trocar de emprego é a falta de oportunidade para quem não estudou.
“É complicado procurar outro serviço, ainda mais no meu caso, que eu não tenho estudo nem nada. Mas é muito cansativo o trabalho. Eu levanto quatro e meia da manhã, pego dois ônibus pra trabalhar e chego em casa seis horas da tarde. Então, fora o trabalho, que já é muito exaustivo, tem a exaustão de ter que pegar dois ônibus pra ir e pra voltar: um do bairro até a rodoviária e na rodoviária tem os ônibus que levam a gente pro frigorífico. A gente paga 6% do salário nos dois cartões de ônibus”, relata.
Mais do que complicado, além da exaustão pelo trabalho repetitivo, os deslocamentos e o dinheiro que os trabalhadores perdem, agora, os riscos de saúde são potencializados por um ambiente gelado em que quase metade do município se aglomera.