Sociedade civil arrecada comida, produtos de higiene e limpeza, e até materiais de construção. Projeto se fortalece e forma novos laços na pandemia
“O que nos move é o amor e o desejo de modificar a vida das pessoas”, diz Luciana Alcântara sobre o grupo “Corações que se Ajudam“, do qual é fundadora e atual coordenadora. A fala, saída direto de João Pessoa, capital da Paraíba, lembra a eterna alucinação de Belchior, de amar e mudar as coisas. Isso também lhes interessa mais.
O “Corações” é fruto de um desejo de agir objetivamente na vida daquelas pessoas que foram normalizadas como se fossem peças do cenário urbano.
Luciana, além de coordenadora, é mãe e dentista. Nos momentos em que veste – literalmente – a camisa do grupo, ela se torna amiga, ouvinte, conselheira, e, também, a ponte que leva as doações aos que mais necessitam.
A coordenadora chama atenção à diversidade de perfis que compõem essa teia. Para ela, isso se deve ao fato do coletivo não ser fruto de uma instituição de cunho de predominância religiosa.
“Primamos por ser um grupo laico e politicamente apartidário”, pontua.
É por isso que ateus, espíritas, católicos, evangélicos e candomblecistas, que possuem diversas orientações políticas, se reúnem aos sábados à noite para distribuir alimentação para a população que mora ou está em situação de rua na capital do estado localizado na Região Nordeste do Brasil. Essa ação ocorre semanalmente há quase três anos.
No começo, Luciana contou que saía com cerca de sessenta cachorros-quentes e alguma bebida.
“Uma coisa muito pequeninha e de forma muito inexperiente”, como ela relata.
Aos poucos, as doações ganharam mais elementos para sustentar a fome. Com o apoio do padre Glênio Guimarães, a quantidade mais do que dobrou: passaram a distribuir duzentos pães semanalmente. A sopa de feijão com macarrão e charque – também conhecida como carne seca ou carne de sol – deu o tom regional para completar a alimentação com mais diversidade de nutrientes e sabores.
Nova realidade, causas antigas
Essa rotina semanal do “Corações” mudou bastante nos últimos meses. Depois da pandemia de covid-19 afetar radicalmente a realidade brasileira, o coletivo ganhou mais adesão dos próprios membros – que antes estavam inativos – e passou a realizar ações mais recorrentes. Luciana considera que houve uma transformação na atuação do grupo com a chegada do novo coronavírus. Agora, o coletivo conta com 25 pessoas.
Segundo dados da Oxfam Brasil, organização da sociedade civil que organiza campanhas, programas e ajuda humanitária, mais pessoas morrerão de fome no mundo do que de covid-19 em 2020. O Brasil é um dos epicentros globais da fome e isso tem sido bem notado por quem está na linha de frente.
Voluntário faz aproximadamente um ano, o engenheiro ambiental Talles Iwasawa Neves relatou ao Joio que o engajamento do grupo se deve ao fato da população em situação de rua ter aumentado significativamente nos últimos meses. Muitas dessas pessoas perderam empregos e se viram sem alternativa de manter o aluguel. Na maioria dos casos, também perderam o acesso à alimentação básica.
“E a população que antes já vivia da rua, durante a pandemia, ficou com mais dificuldade ainda com o ganha pão. Como tem menos pessoas na rua, muitos deles [que moram nas ruas] que trabalham vigiando carro, tentando fazer alguma arte no sinal, limpando vidro, se viram com menos fluxo e possibilidades de trabalho” diz.
Talles ainda relatou que muitas pessoas que moram em comunidades carentes, ocupações e favelas em João Pessoa e cidades mais próximas, passaram a ir pras ruas esperando alguns grupos que distribuem alimentação.
“Principalmente, no período da noite, eles já ficam esperando junto com a população de rua em pontos estratégicos”, revela.
A percepção de quem está nesse dia a dia é de que houve um aumento também dos imigrantes venezuelanos e bolivianos ocupando as ruas.
Essa movimentação decorre das condições socioeconômicas que Bolívia e Venezuela têm enfrentado nos últimos anos, mas a situação de evasão da população tem origem diversas entre os países latino-americanos. No caso da Bolívia, há anos são registrados casos de imigração, especialmente para São Paulo.
De acordo com a Fundação Heinrich Böll, entre 2000 e 2010, o número, só na capital paulista, aumentou em 173%. O mote desses imigrantes é a promessa de oportunidades de trabalho. Normalmente, eles têm algum membro da família que passou pela mesma rota de imigração. A maioria trabalha em situações informais e análogas à escravidão, como já denunciou a ONG Repórter Brasil.
O motivo da imigração venezuelana se deve muito à crise do governo de Nicolás Maduro. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), desde 2015, cerca de 1,9 milhões de venezuelanos abandonaram o país. Só no Brasil, estão 253 mil.
Ainda de acordo com a ONU, “entre os maiores desafios, estão a perda de meios de subsistência, despejos e o aumento da estigmatização. Muitos venezuelanos estão sem acesso às instalações básicas de saúde e higiene e sem capacidade de cumprir medidas de distanciamento físico”.
Segundo o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que analisa a situação da covid-19 pelo mundo, houve uma perda de quatrocentos milhões de empregos no segundo trimestre deste ano. Esse levantamento considera postos de trabalho formais. A OIT também salientou que as mulheres são as mais prejudicadas nesse cenário. Estimou-se que 40% trabalham nos quatro setores mais atingidos pela crise: hotelaria, alimentação, comércio e setor manufatureiro.
“As mulheres também são maioria nos setores de trabalho doméstico, de saúde e de assistência social, em que estão mais sujeitas ao risco de perder a renda, de infecção e transmissão, além de ser menos provável que elas tenham acesso à proteção social” reforça o documento.
Diante desse cenário, o “Corações” deixou de atender somente as pessoas que moram ou estão em situação de rua, e passou a olhar para outros contextos de vulnerabilidade, como explica Luciana.
“A gente começou a trabalhar de uma forma mais efetiva”, comenta.
Iniciaram-se, então, as doações ao Movimento Espírito Lilás (MEL) dedicado à combater homofobia, à Associação das Prostitutas da Paraíba (Apros-PB), às mães de crianças com microcefalia e à Cooperativa de Reciclagem Acordo Verde. O trabalho do grupo, hoje, compreende um leque bastante extenso de pessoas atendidas.
“Isso abriu muito a cabeça das pessoas que estão no ‘Corações’. E a disponibilidade aumentou para abraçar ainda mais os vulneráveis”, afirma Luciana.
Além de cestas básicas, o “Corações” também se dedica à arrecadação de materiais de higiene e limpeza, máscaras de proteção contra a covid-19 e até materiais de construção para melhorar a infraestrutura de ocupações.
O grupo conseguiu arrecadar cimento, lona, vasos sanitários e telhas para a Comunidade do Taipa, localizada no bairro Costa e Silva, no início do mês de junho. Foi uma ação conjunta com o grupo Vagalumes, que também se dedica ao auxílio dessas famílias.
Talles explica que é necessário olhar para além da alimentação.
“A gente busca auxiliar da melhor forma. Às vezes, eles precisam de um atendimento odontológico, ou de um atendimento médico, mas, no fim das contas, muitos deles só precisam que a gente tenha dois ouvidos para escutar o que eles têm a dizer”.
No caso das pessoas que moram nas ruas, ele argumenta que a solidão e a indiferença são desafios, muitas vezes até maiores do que não ter o que comer.
Estado(s) ausente(s)
O primeiro e único censo nacional para identificar a população em condição de rua foi feito em 2009. A falta de dados recentes só confirma o obscuro que permeia as discussões públicas sobre essa realidade. À época, foram contabilizadas pouco mais de trinta mil pessoas (acima de 18 anos) em situação de rua a partir do levantamento feito em 71 cidades brasileiras. Uma amostra irrisória perto dos mais de cinco mil municípios registrados pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).
Nessa pesquisa, foi observado que a maioria das pessoas tinham entre 26 e 35 anos de idade. Ainda notou-se que a maioria dos entrevistados se autodeclararam pretos ou pardos, somando 67% da amostragem.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicou um texto no qual afirmou que existiam 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil. Mais uma vez, uma amostragem que não abarcou todos os municípios brasileiros.
A coordenadora do “Corações”, Luciana, descreveu que em João Pessoa essa realidade é parecida com o censo feito há mais de uma década. Segundo ela, a maioria dos auxiliados são negros e jovens. As mulheres, geralmente, estão na rua junto com companheiros. Luciana relatou também que a realidade de algumas é atravessada, ainda, pela violência de gênero.
Hoje, a pauta da população em situação de rua é coordenada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que compõe o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (CIAMP- Rua), fruto da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Porém, na prática, o pouco que é feito na capital da Paraíba são serviços de má qualidade. De acordo com Luciana, a prefeitura de João Pessoa assumiu os compromissos de banho e alimentação, e disponibilizou vagas em abrigos.
“Mas o que acontece na fantasia é uma coisa. A gente sabe que o que acontece na realidade é outra”, ressalta.
O economista e presidente do Instituto Corecon Cultural, de Minas Gerais, Gelton Pinto Coelho Filho, é também um dos articuladores do projeto “Rua do Respeito”, do qual faz parte o Corações. Gelton diz que a prefeitura informou ao governo federal, por meio do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), que há apenas 161 nas ruas de João Pessoa.
Ele lembra que só o “Instituto Padre Zé” faz a distribuição de 2.700 refeições diariamente.
“A prefeitura, inclusive, abre mão de receita quando ela diz que tem menos pessoas em situação de rua do que é verdade. Outro problema grave são as pessoas que estão em transição. Não estão em situação de rua, mas têm trabalho precário”, destaca.
Por meio do Centro Pop (criado para atender a população em situação de rua do município) , fichas para o Restaurante Popular são distribuídas diariamente. Porém, uma visita do Ministério Público na Paraíba (MP-PB) verificou que a realidade é precária e desumana.
Luciana conta que as pessoas estavam comendo com as mãos, porque os talheres distribuídos eram de péssima qualidade. Além disso, a única proteína do dia eram três torresmos em um prato com pouca comida de verdade.
“As pessoas se amontoavam para pegar o alimento e, depois, se amontoavam para sentar pra comer, porque não tem lugar pra sentar. O lugar fica em frente a um parque público, que é a Lagoa, e eles não podem ficar na Lagoa pra comer”, diz.
A prefeitura de João Pessoa e o governo do estado da Paraíba foram procurados pelo Joio. A prefeitura não se manifestou. O governo estadual responsabilizou o município por monitorar quantas pessoas estão em situação de rua na capital paraibana e ignorou quando perguntamos que tipo de alimentação é servida por meio dos programas que apresenta. Também não houve resposta sobre os problemas relatados no Restaurante Popular. Mais uma vez, a responsabilidade foi delegada ao município.
Direitos negados
Vanessa Schottz, professora de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-Macaé), integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), explica que o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) perpassa dois princípios indissociáveis. Um é estar livre da fome, o outro, é o direito a uma alimentação adequada e saudável.
Isso quer dizer que esse direito “precisa não só matar a fome, assegurar a alimentação para quem está em situação de insegurança alimentar, mas, também, precisa assegurar que essa alimentação seja promotora de saúde, uma alimentação adequada àquela cultura, àquela região, que valorize aspectos como a sustentabilidade e que valorize a dimensão da dignidade humana”, aponta.
A professora lembra que a pandemia joga luz sobre como o nosso sistema alimentar se estrutura.
“É uma forma que nega direitos, que está pautada nas desigualdades, nas grandes monoculturas, na violência no campo” ressalta.
Fica evidente, portanto, que políticas públicas que promovem o Direito Humano à Alimentação Adequada necessitam, urgentemente, ser fortalecidas e aplicadas.
“A gente percebe que, num momento como esse, quando a gente olha o todo, ainda há um grande vazio”, lamenta a professora.
Pensando na necessidade imediata da atuação do poder público, organizações da sociedade civil nacionais elaboraram um documento que contextualiza esse cenário de insegurança alimentar e traz uma série de propostas de combate à fome a serem implementadas pelos municípios, estados e também pelo governo federal.
Vanessa ainda enfatiza a importância dos restaurantes populares, do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que são resultados de décadas de lutas da sociedade civil.
Respeito do preparo à entrega
Outras formas de articulação com o poder público também podem render bons frutos. O projeto “Rua do Respeito”, que surgiu em Belo Horizonte, é uma articulação entre Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), Serviço Voluntário de Assistência (Servas) e sociedade civil. O projeto busca, essencialmente, dar efetividade às políticas públicas para a população em situação de rua, que encontrou solo fértil para crescer em João Pessoa, quando Gelton Pinto Coelho Filho, um dos articuladores, mudou-se de cidade e levou o projeto na mala.
“[O Rua] Não suporta que o sofrimento das pessoas seja utilizado como propósito religioso” explica o economista.
Essa articulação na Paraíba tem como principal objetivo distribuir, da melhor forma, o alimento ao longo da cidade, a partir da observação de que muitos grupos só distribuem nas avenidas principais. Gelton ressalta que a comida levada para as pessoas recebe cuidado e amor, do preparo até a entrega.
“A questão da alimentação, pra nós, é fundamental, porque não é simplesmente levar qualquer comida. O ‘Corações’ leva a mesma comida que a gente come pras pessoas em situação de rua, então, esse é um ato político”, afirma.
O projeto em João Pessoa ainda é um brotinho, mas já apresenta potencial de criar raízes fortes para continuar na luta pelo DHAA.
Comida regional é comida de verdade
Galinha guisada, macaxeira, queijo coalho, carne de charque. Esse são alguns dos ingredientes regionais usados nas preparações que vão para a população atendida pelo “Corações que Se Ajudam” no sábado à noite.
A comida de verdade, que nutre o corpo, evita e trata o desenvolvimento de doenças, é também regional. Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, alimentação é mais do que ingestão de nutrientes.
Ela envolve “as inúmeras possíveis combinações entre eles [nutrientes] e as formas de preparo, as características do modo de comer e as dimensões sociais e culturais das práticas alimentares” e alimentos isolados e preparações “constituem parte importante da cultura de uma sociedade e, como tal, estão fortemente relacionados com a identidade e o sentimento de pertencimento social das pessoas, com a sensação de autonomia, com o prazer propiciado pela alimentação e, consequentemente, com o estado de bem-estar”.
É sob esse aspecto afetivo que os olhos se enchem quando veem o pão recheado de queijo coalho servido pelo grupo do “Corações”. Talles prepara os sanduíches em muitas das vezes e relata que recebe elogios. Ele diz que as pessoas até brincam que o “dente vai cair” por poder desfrutar de ingredientes simples para ‘muitos de nós’, como o queijo.
As quentinhas também são recheadas de comida saudável. São duas as principais fontes de arrecadação. Uma é de Rossana Santos, dona do Restaurante Flamboian, que doa, toda semana, aproximadamente cem refeições. Eles trabalham com o princípio de servir comida saudável e caseira.
A outra fonte que não falha vem da arquiteta Débora Julinda, que contribui com doze quilos de macaxeira e galinha guisada. A preparação é feita por Dona Maria (funcionária de Débora) que, agora, trabalha à distância, mas não falta nenhuma semana com o compromisso coletivo.
A arquiteta conta que foi incentivada a prestar ajuda porque, nos finais de semana, as pessoas ficavam desamparadas. Ela também revela que a quantidade da galinha com macaxeira quase dobrou depois do início da pandemia.
“A escolha da macaxeira com frango recaiu no valor nutricional, na possibilidade de conseguir fazer em maior quantidade e mantendo a qualidade, numa cozinha que é residencial”, a arquiteta também não poupa elogios ao sabor das quentinhas.
“É bem artesanal, a gente faz em casa mesmo, e ela [Dona Maria] tem um tempero maravilhoso”, contou ao Joio.
Em junho, mais uma doação de galinha com macaxeira apareceu para somar. São cerca de cem quentinhas fornecidas pelo empreendedor José Carneiro.
Contudo a rede não pára por aí. São muitas pessoas envolvidas nesse mutirão: o Sex Shop da cidade doa o dinheiro, com o qual compra-se o queijo coalho. A queijaria, por sua vez, faz um preço mais barato, para garantir os ingredientes que viram recheio dos pães doados pela padaria.
Como diz Luciana, foi firmada uma cadeia de colaboradores, os “Corações que Se Ajudam”, que se amam e amam o próximo, sem necessitar de temperos artificiais (o nosso podcast conta o que é fingir amor usando “tempero”).
A coordenadora insiste que existe afeto, amor e respeito nas ruas:
“A gente observa também que existe amor na rua, sabe? Homem que assume a relação com as travestis, casais homoafetivos… Estão lá o amor, o cuidado e o carinho entre eles.”
Para ajudar o grupo “Corações que se Ajudam”, entre em contato com:
(83) 98690-3893 – Luciana Alcântara