Lei do Selo Arte ajuda, mas não resolve a vida dos produtores artesanais de alimentos

Brechas deixadas pelo governo federal colocam responsabilidade nas mãos de municípios sem serviço de inspeção e de estados sem legislação

Venda Nova do Imigrante é um município de 25 mil habitantes encravado em meio à Serra do Mar, entre Espírito Santo e Minas Gerais. Apesar do pouco tamanho, a cidade e um embutido local são responsáveis por conectar Veneza, o Rock in Rio, uma chef de cozinha famosa, um deputado federal acusado de esquema com candidatos laranjas e a primeira lei, em 124 anos, direcionada aos produtores artesanais de alimentos de origem animal.

Ao mesmo tempo que o Brasil dava os primeiros passos como uma República, São Paulo estabelecia o primeiro código sanitário de alimentos do país e chegava ao Espírito Santo a família Lorenzon, vinda da região do Vêneto. Os agora Lorenção, pela grafia aportuguesada, começaram, junto com os muitos imigrantes italianos da região, a produzir o socol, uma espécie de presunto cru defumado. Inicialmente para consumo próprio, a produção passou a ser comercializada depois de algumas décadas.

Primeiramente dentro das propriedades, em seguida no município, no estado, até esbarrar, já no começo dos anos 2000, na legislação para inspeção de produtos artesanais que data de 1950. Concebida para grandes produtores exportadores e adaptada do Codex Alimentarius dentro da FAO/ONU, a Lei 1.283/1950, que criou o Regulamento de inspeção industrial e sanitária de origem animal (Riispoa), ignorou a produção local em cidades como Venda Nova do Imigrante.

O relevo da Serra do Mar, onde está Venda Nova, e a produção de alimentos artesanais não estão ligados pelo acaso. Os morros são impeditivo para o estabelecimento de latifúndios. É de Venda Nova do Imigrante também o deputado Federal Evair de Melo (PV/ES), autor da Lei do Selo Arte, polêmica e que, apesar das conquistas, acaba sendo criticada tanto por veterinários quanto por defensores da produção artesanal.

E assim chegamos aqui ao quarto episódio desta série de reportagens que mostra como a legislação sanitária de alimentos, desenvolvida ao longo do século 20 no Brasil, foi prejudicial aos pequenos produtores de alimentos. Legisladores, técnicos e empresários por muito tempo atuaram – e continuam atuando – de modo conjunto para a promoção de normas nas quais a promoção da saúde e a promoção dos interesses próprios muitas vezes se confundem e passam despercebidos.

A começar pela colcha de retalhos que constitui a legislação para produção, inspeção, regularização e comércio dos alimentos, sobretudo aqueles feitos com matéria-prima de origem animal. São séries de leis, decretos, instruções normativas e até mesmo decretos-lei da época da ditadura que dificultam a vida dos que buscam se adequar às normas. Um modelo que torna invisível ao Estado grande parte de um setor baseado em relações de confiança entre produtor e consumidor, e cuja escala e técnicas tradicionais diminuem os riscos associados à saúde.

O maior produtor de socol de Venda Nova do Imigrante é Edines José Lorenção, descendente dos Lorenzon do Vêneto. Há 25 anos, Lorenção produz o embutido comercialmente, mas há apenas 12 conseguiu obter o certificado de inspeção estadual. “Foram seis anos de dor de cabeça e pelo menos R$ 150 mil investidos por exigência do Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo]”, conta Lorenção, que também é presidente da Associação de Produtores de Socol de Venda Nova do Imigrante (Assocol). Apesar de inspecionada e certificada, a produção de aproximadamente dez toneladas mensais não podia cruzar legalmente as divisas de Espírito Santo pelas limitações impostas pelo Riispoa.

Até sexta-feira, 1º de maio de 2020. “Hoje mesmo recebi meus rótulos com o Selo Arte”, contava animado o agricultor. “Já entrei em contato com um comerciante do Rio de Janeiro que vai começar a vender minha produção por lá”, dizia, ainda preocupado com a enorme redução do consumo diante da pandemia do novo coronavírus. Para ele, o Selo Arte, que possibilita a venda em todo o país de produtos artesanais inspecionados pelos órgãos estaduais ou federais, é uma conquista dos produtores da região. Especialistas, no entanto, veem de forma diferente.

O selo da discórdia

Cinco copas do mundo de futebol vencidas pelo Brasil. A construção e a derrubada do Muro de Berlim. A passagem de 19 presidentes pelo comando do país, incluindo uma ditadura. O início e o fim da Guerra Fria. Todos esses fatos ocorreram no Brasil e no mundo enquanto a legislação para inspeção de produtos de origem animal ficou sem mencionar ou fazer referências aos pequenos produtores ou a alimentos artesanais. Foram 65 anos em que, segundo o diretor de Legislação do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Rodrigo Noleto, “muito pouco foi alterado na visão ultrassanitarista do setor regulador e da relação umbilical entre a indústria e os legisladores brasileiros”.

Decreto publicado em 2015 determinou que o Ministério da Agricultura “estabeleceria normas específicas de defesa agropecuária a serem observadas pelas indústrias tocadas pela agricultura familiar”. Naquele mesmo ano, foi apresentado o Projeto de Lei 3.859/2015, que, três anos mais tarde, se tornaria mais conhecido como a Lei do Selo Arte.

O texto original, apresentado em 2015, é sucinto. Limita-se às agroindústrias artesanais de embutidos. “A legislação, construída na década de 1950, dificulta imensamente a atividade das agroindústrias artesanais, que acabam restritas a mercados municipais ou, ainda pior, a mercados informais, de baixa renda”, defendeu o deputado federal Evair de Melo (PV/ES), autor da proposta. “A situação é injusta e está na contramão do esforço legislativo que tem sido feito para fomentar a produção dos agricultores familiares do país, por isso, propomos regras simplificadas e a liberação do comércio interestadual.”

O projeto rodou em círculos entre salas e comissões do Congresso Nacional durante dois anos. Até a edição de 2017 do festival Rock in Rio. Naquele setembro, Roberta Sudbrack, eleita melhor chef da América Latina, foi obrigada a se desfazer de 160 kg de linguiça e queijos artesanais que usaria em uma estande no evento. “A vigilância sanitária decretou que meus fornecedores há pelo menos 20 anos não são bons o bastante para comercialização; jogaram fora mais de 80 kg de queijo dentro da validade, assim como 80 kg de linguiça fresca e previamente aprovada pelo controle do evento Rock in Rio,  todos inspecionados pelos órgãos sanitários dos estados”, reclamou a chef, à época. Os produtos, fabricados artesanalmente em Pernambuco, possuíam inspeção estadual, mas não a federal, o que permitiria o consumo no Rio de Janeiro.

“É um contrassenso: equivale a afirmar que um alimento ‘presta’ para a população de um estado, mas não para a de outro”, comenta Leomar Prezotto, agrônomo e ex-membro do finado Ministério do Desenvolvimento Agrário.

A repercussão do caso ressuscitou o projeto de lei. E também despertou a atenção do deputado federal Luciano Bivar (PSL/PE). Hoje, líder do antigo partido do presidente Jair Bolsonaro, e investigado pelo caso dos laranjas nas eleições de 2018, Bivar alegou que:

“É inaceitável que continuemos a conviver com situações como a enfrentada por Sudbrack no Rock in Rio, cujos trabalhos foram inviabilizados pela ação da vigilância sanitária municipal, que, em cumprimento de formalidades burocráticas estabelecidas por uma legislação claramente obsoleta, apreendeu linguiças e queijos porque não tinham o selo de inspeção federal.”

O texto defendia que órgãos de agricultura e saúde de municípios e estados seriam responsáveis pela inspeção de produtos de origem animal para venda em todo país, limitando o Ministério da Agricultura àqueles destinados a exportação.

Ao final, a Lei 13.680/2018 aponta somente que “é permitida a comercialização interestadual de produtos alimentícios produzidos de forma artesanal, desde que submetidos à fiscalização de órgãos de saúde pública dos estados e do Distrito Federal”.

 “Nós pedimos que a inspeção pudesse ser feita também por municípios, mas o Ministério da Agricultura não abre mão da centralidade do processo. Os produtores, agora, até podem ser inspecionados pelo município que possua SIM e podem vender no Brasil, mas precisa ir até a capital do estado em muitos dos estados, para solicitar a regulamentação, o que é muito caro para um produtor familiar”, defende Prezotto.

Médicos veterinários, por outro lado, questionam seu papel na fiscalização desses produtos, uma vez que a inspeção passa para os órgãos de saúde do estado. “Como os órgãos estão preparados para realizar essa fiscalização? A atuação dos agentes da Anvisa e da vigilância sanitária é totalmente diferente daquela dos fiscais agropecuários do ministério”, afirmou o médico veterinário e professor da Universidade Federal de Viçosa Luís Augusto Ner, ao site de defesa do agronegócio Milkpoint.

Afirmação rebatida por Michelle Carvalho, engenheira de alimentos, que afirma que o corporativismo dos médicos veterinários impede que profissionais como os engenheiros de alimentos atuem na fiscalização com tanto ou mais competência.

No mesmo artigo do Milkpoint, a médica veterinária Vanerli Beloti, da Universidade Estadual de Londrina, questiona as inspeções municipais, que não estão equiparadas à federal por meio do Sisbi-POA, como é conhecido o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal.

No entanto, até maio de 2020, três estados, 22 municípios e três consórcios que englobam 58 cidades conseguiram aderir aos Sisbi em todo o Brasil. Ou seja, 1,2% dos municípios brasileiros. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, apenas 40% das cidades brasileiras possuem Sistema de Inspeção Municipal. O que significa que, no final das contas, a maioria dos pequenos produtores locais são impedidos de vender legalmente os produtos em escala local por falta de inspeção próxima.

O selo da espera

Aprovado em 2018, o Selo Arte foi regulamentado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019 por meio do Decreto 9.918. Determina que o Ministério da Agricultura deverá publicar normas técnicas complementares, necessárias à concessão do Selo Arte, e que aqueles estados que possuam legislação própria de produtos de origem animal reconhecidos como artesanais poderão conceder o selo.

Ocorre, no entanto, que poucos são os estados que possuem leis dessa natureza. Santa Catarina, com a lei de queijos artesanais, e o Espírito Santo, que trata do socol de Venda Nova do Imigrante, são exceções. Enquanto isso, o ministério, que deveria publicar instruções normativas estabelecendo os detalhes para cada cadeia produtiva, redigiu apenas a IN 28/2019, mais geral, que define o padrão estético do Selo Arte. Outras consultas públicas sobre a cadeia de artesanais do leite foram publicadas, mas não resultaram em norma técnica complementar.

Bolsonaro e Tereza Cristina em degustação de queijos após solenidade alusiva aos duzentos dias de governo. Foto: Alan Santos/MAPA

A espera para regularização de produtos como o culatello, primo do socol, já soma agora setenta anos, mas poderia ter sido abreviada ainda no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 1996, foi apresentado pelo deputado José Frisch (PT-SC) o primeiro projeto de lei facilitando a produção e a venda de artesanais no país.

Retirado pelo próprio autor sem justificativa uma semana depois de lido em plenário, o projeto foi retomado no ano seguinte pelo então deputado federal Jaques Wagner (PT-BA).

Em novembro de 2001, após sofrer modificações no texto original, ele seria aprovado e enviado ao Senado, onde foi aprovado. Em julho de 2002, duas semanas após a conquista do pentacampeonato de futebol, Fernando Henrique Cardoso vetou inteiramente o projeto.

A justificativa, amparada por alegações dos ministros da Agricultura, da Saúde, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior alega que “a noção conceitual da agroindústria artesanal, as restrições e as imposições legais viriam a prejudicar milhões de artesãos envolvidos com o beneficiamento e a comercialização de produtos artesanais de origem animal e vegetal em todo o País”.

Após o veto, textos semelhantes foram apresentados. O PL 2.071/2003, de autoria de Walter Pinheiro (então no PT-BA), possui conteúdo muito semelhante ao projeto de Jaques Wagner. Entre as justificativas estão respostas a todos os motivos para o veto presidencial. A proposta nunca foi adiante. Após 18 anos, os artesãos continuam esperando por uma legislação que os contemple como produtores de alimentos.

Navegue por tags

Matérias relacionadas