Amostragem feita pela nossa reportagem aponta que muitos bebês recebem fórmula infantil antes de conhecer o seio materno. Corporações aliciam profissionais de saúde e incrementam estratégias digitais sobre o composto lácteo em tempos de pandemia
O Joio já contou histórias de como a indústria se propõe a substituir o leite materno agenciando profissionais de saúde e passando por cima da legislação para conseguir emplacar produtos. Para entender como essas investidas chegam ao público-alvo das corporações do setor, fizemos uma pesquisa com mais de 600 mães do Grupo Virtual de Amamentação (GVA), uma rede de apoio a mulheres que desejam amamentar, existente há mais de 15 anos.
Além do rico compartilhamento de experiências, as moderadoras oferecem orientações baseadas em recomendações do Ministério da Saúde, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e em trabalhos científicos sem conflitos de interesses.
Na pesquisa do Joio, realizada entre 14 e 21 de outubro, mais da metade das mulheres relatou ter sido desestimulada a amamentar por um profissional de saúde. Quase 75% recebeu a recomendação médica de usar a fórmula infantil e 42% declarou ter usado o produto antes da criança completar seis meses de idade, período em que o ideal é a amamentação exclusiva. Nestlé e Danone estão na dianteira das marcas mais utilizadas, seguidas pelas estadunidenses Mead Johnson e Abbott.
“Minha bebê nasceu de baixo peso e disseram [no hospital] que meu leite não era suficiente pra ela, que precisava complementar. Já deram [fórmula] na maternidade, sem minha autorização. Saí de lá com a prescrição médica de que [marca] deveria comprar. Não comprei, mas, em casa, minha bebê chorava muito e muito forte. Só melhorou quando compramos a fórmula. Ela não tinha força suficiente pra sugar o peito e já tinha se acostumado com a fórmula na maternidade”, relata uma mãe.
A professora da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan), Enilce Sally, explica que nesse caso são dois problemas aparentes. Um é a administração da fórmula ocorrer sem autorização da mãe, outro é o uso de complementos na maternidade ocorrer sem um critério médico justificável.
“Se no ambiente do hospital onde havia toda uma estrutura e suporte para a amamentação exclusiva a fórmula funcionou, imagina em casa, onde, às vezes, ela [a mãe] está sozinha, tendo que lidar com a insegurança e as preocupações do cuidar do bebê”, alerta.
Essa história não foi a única a abordar imposições e arbitrariedades por parte de maternidades.
“Dias antes do meu bebê nascer, tive um treinamento com a equipe da Danone dentro do hospital [em que trabalhava], cuja intenção era que nós [profissionais] indicassem a nova fórmula deles. Na época, era o Aptamil Profutura e eu achei a fórmula o máximo”, conta uma mãe, técnica em enfermagem, que usou a fórmula por influência direta da indústria. O resultado foi o desmame precoce do filho, aos quatro meses de idade.
“Eu, profissional da saúde, com grande experiência em amamentação, fui enganada facinho pela indústria alimentícia”, diz a enfermeira.
Outra mãe conta que o bebê nasceu com 2,5kg e, segundo o pediatra, teria hipoglicemia. A fórmula foi oferecida ainda no centro cirúrgico. Ela insistiu em amamentá-lo, mas era muito pressionada no hospital, então, decidiu tirar o filho de lá e procurar outro médico.
“Só assim ele [o pediatra] deu alta pro meu bebê, dizendo que ele poderia dormir e não acordar, que eu tinha que dar fórmula”.
Com o outro médico ela conseguiu dar continuidade na amamentação. O bebê ganhou peso e cresceu. Ficou a revolta com a insistência pelo uso da fórmula na maternidade. “Vi que dão para praticamente todos os bebês nascidos lá”, explica.
O ganho de peso ideal da criança foi um critério muito utilizado por pediatras para justificar o uso da fórmula infantil. Mas Enilce Sally explica que o leite materno sozinho tem a capacidade de garantir um desenvolvimento “ótimo”, de acordo com os critérios da curva de crescimento da OMS.
“Existem situações em que a dificuldade na retirada do leite pelo bebê pode ser interpretado como se o leite não fosse suficiente para fazê-lo ganhar o peso esperado. Essa dificuldade pode levar a um volume menor de leite ingerido e está relacionada, na maioria das vezes, à pega e/ou posição para mamar inadequada. O bebê fica desconfortável, faz um esforço demasiado, fica cansado, irritado e extrai menos leite. A má pega, por sua vez, machuca o mamilo, provoca dor e leva a mãe a buscar uma alternativa para alimentar o bebê”, afirma a professora.
O que também pode dificultar a amamentação é o uso de bicos, chupetas e mamadeiras, produtos cuja promoção comercial é proibida, assim como as fórmulas para crianças de até um ano, pela Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCal). Porém eles se mostraram campeões de infrações à norma, no último monitoramento realizado pela Ibfan. Em especial, as mamadeiras, com 73 casos, e as chupetas, com 66.
“Fiquei muito triste, porque não tinha apoio de ninguém para amamentar e ouvia muito que não tinha leite ou que era fraco, e que eu tinha que dar a fórmula pro meu filho não morrer de fome, entãom desisti [de amamentar]”, enfatiza outra mãe na pesquisa feita no GVA.
A professora do Departamento de Nutrição Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ana Carolina Feldenheimer, explica que o leite materno é um alimento extremamente complexo. E se a mãe tem vontade e condições ideais para amamentar, ele sempre será suficiente em termos nutricionais.
“Esse negócio de que o leite é fraco, que a mãe não dá conta, isso é balela. Existe uma simbiose muito grande entre mãe e filho. E isso vai gerar, inclusive, um leite específico para aquela criança. Pra você ter ideia, o leite materno tem até células tronco.”
O que o leite materno não tem é um rótulo bonito listando os ácidos graxos “x” ou “y”. Na outra ponta, a indústria de substitutos do leite materno dispõe de um imenso aparato especializado em propaganda de produtos alimentícios.
Negando as aparências e disfarçando as evidências
Aproximadamente 37% das mulheres receberam a recomendação médica de usar o composto lácteo na alimentação da criança, o que não é recomendado pelo Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de Dois Anos, publicado pelo Ministério da Saúde. Em muitos casos, foi para substituir a fórmula infantil depois de um ano de idade.
Contudo também há relatos de mães que misturam o composto com a fórmula, “para melhorar o sabor” ou que, na hora da compra, confundiram as embalagens. Uma mãe lembra que “quando chegava em casa, percebia que não era o leite mesmo”. E acrescenta: “minha mãe e marido confundem muito. Leite Ninho não acho mais como leite normal, somente composto lácteo”.
Cerca de 68% das participantes disseram já ter sentido dificuldade em diferenciar embalagens de fórmulas infantis e compostos lácteos da mesma marca. A esmagadora maioria, 89%, não considera os rótulos compreensíveis e acessíveis. A dificuldade também é explicada pelo varejo: os compostos, leites e fórmulas ficam lado a lado nas prateleiras de mercados e farmácias, fazendo com que um consumidor desatento compre gato por lebre.
“Eu realmente comprava o Ninho fases achando que era leite”, diz outra mãe do GVA.
As fabricantes e comerciantes de compostos lácteos são notificadas, anualmente, pela Ibfan, em um monitoramento que busca por infrações à NBCal, dispositivo legal que visa a proteger o aleitamento materno a partir de uma série de diretrizes que tentam, justamente, coibir práticas abusivas da indústria. Os resultados mais recentes estão aqui.
Uma vez notificado, o ramo de produção e comercialização diz que o composto lácteo não está abarcado na lei, que não está enquadrado na categoria de “alimentos de transição”. No entanto os setores que monitoram a NBCal discordam, até porque o produto é publicizado e direcionado especialmente ao público infantil. Na prática, percebe-se que há um grande esforço da indústria para associar fórmulas e compostos. E as embalagens são as provas mais robustas disso.
A professora da Área de Marketing e Negócios Internacionais do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maribel Suarez, diz que existe um esforço claro da Nestlé de criar essa ponte, “com objetivo de transferir entre esses dois produtos aspectos que foram construídos para a marca da fórmula infantil”. Além disso, a publicidade do composto entra em campo como agente duplo. Faz alusão à marca e a outros produtos da empresa.
A advogada especializada nos programas de Alimentos e de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Mariana Gondo, explica que essa prática é adotada como uma estratégia de fidelização do consumidor, quando a empresa tem um rol grande de produtos para ser utilizado nas diversas faixas etárias da criança. E acrescenta: “essa prática é especialmente preocupante nesses casos, de quando a promoção cruzada acaba servindo à promoção de produtos que têm a promoção e a publicidade vedadas pela lei, como é o caso das fórmulas”.
Vinte por cento das mães que participaram da pesquisa do Joio disseram ter percebido um aumento da publicidade de compostos lácteos nas redes sociais durante a pandemia. Outras 22% perceberam o aumento de publicidade tanto do composto quanto da fórmula.
Maribel Suarez explica que é possível que as empresas tenham percebido uma perda de mercado da fórmula infantil ao longo dos últimos meses e que, por isso, “a alternativa foi oferecer um produto mais barato, ainda que com qualidade inferior”.
Enquanto os compostos custam em média entre R$ 25 e R$ 45, variando entre marcas de uma mesma empresa, as fórmulas começam em R$ 45 e podem chegar a custar, uma lata de 400 gramas, R$ 250.
A tática de oferecer um produto aparentemente semelhante, com preços mais baixos, é especialmente perigosa durante a crise econômica que a pandemia exacerba. E também uma violação do Código de Defesa do Consumidor. Mariana Gondo explica que isso pode ser enquadrado como publicidade abusiva ou enganosa, que se beneficia da falta de informação do consumidor e é capaz de induzir ao erro. Por exemplo, comprar o composto no lugar da fórmula.
Terceirizando a #publi
A publicidade nas redes sociais, intensificada na pandemia, é um desafio novo a ser enfrentado. A indústria patrocina posts nas redes, em suas próprias contas, nos quais exalta a suposta qualidade do composto lácteo e afirma que será benéfico para a imunidade, tema tão sensível para as famílias com crianças, principalmente durante a pandemia e as crises sanitária e socioeconômica que vieram com ela.
Nesse caso, ainda é mais fácil entender que a fabricante é a responsável pela publicidade, mas a Ibfan ressalta que há uma grande dificuldade de fiscalizar o ambiente digital. “Fato é que nem sempre a relação da empresa com a personalidade na rede social fica evidente, como é o caso dos anúncios patrocinados que não são identificados por hashtags específicas”.
É o caso da campanha do composto lácteo Milnutri Profutura, da Danone. A empresa convidou as famílias a postarem fotos com a hashtag #paisprofutura.
Pesquisando pela hashtag, a reportagem encontrou mais de mil publicações no instagram. Nas publicações de influenciadores que tem grande alcance, quase sempre há uma indicação de que é uma parceria paga, mas isso não ocorre nos casos de consumidores comuns.
Maribel Suarez explica que a publicidade via influenciadores é uma tendência utilizada por múltiplos setores do varejo, porque já é percebido que há um impacto direto no comportamento do consumidor.
Além de possuírem bons alcances, essas mães influenciadores que participam de campanhas da Danone, Nestlé e outras marcas possuem contas nas quais um estilo de vida voltado para o cuidado da família está sempre em voga.
A professora explica que “a influência é tanto mais forte quanto mais o influenciado percebe o influenciador como alguém que possui conhecimento especial sobre o produto ou serviço em questão”. E essa ação de influência é transversal e, portanto, tem cada vez mais potencial danoso, já que ocorre no marketing digital e também nos discursos e consultórios dos profissionais de saúde.