Por que o Brasil é estratégico no avanço de corporações sobre a produção de alternativas à carne. Por que isso não é necessariamente saudável. E por que o mercado financeiro chegou com tudo
O mercado de alimentos veganos (e vegetarianos) faz parte de um nicho em ascensão. Basta observar as geladeiras dos supermercados para perceber que a oferta de produtos plant-based é cada vez maior. Segundo pesquisa realizada pela Euromonitor Internacional, os consumidores que desejam reduzir o consumo de produtos de origem animal representaram 40% do mercado global em 2020. O estudo também apontou que a demanda por esses produtos foi impulsionada por conta da pandemia.
“Carnes” produzidas a partir de células. Pós que simulam ovos. Hambúrgueres feitos em laboratório. A nova geração de produtos veganos mira bem além do público vegano, bebendo na fonte das preocupações crescentes com bem-estar animal e com a insustentabilidade ambiental da pecuária. Essas questões aparecem em um relatório feito pelo pelo The Good Food Institute, uma organização que promove alternativas ao consumo de matéria-prima animal.
O documento aponta o Brasil como um candidato ao protagonismo na produção de “carnes” e produtos de matérias-primas vegetais no mundo justamente por ser um grande consumidor de bois, porcos e frangos. Além disso, por contraditório que possa parecer, o modelo do agronegócio de produção e exportação de alimentos é algo que coloca o país à frente nessa corrida — são produzidos aqui 250 milhões de toneladas de grãos, em particular a soja e o milho, importantes na produção de processados e ultraprocessados vegetarianos ou veganos.
Corporações da carne e do leite, dos ovos, fundos de investimentos, consultorias estratégicas: todos estão de olho no crescimento de um setor que mira em pessoas que querem reduzir a compra de produtos de origem animal.
É preciso, então, que haja grandes investimentos financeiros em empresas de tecnologia voltadas para suprir todas essas demandas. “Com o amadurecimento da indústria, o mercado de investimentos aprendeu como analisar esses fatores e entendeu que o potencial de retorno financeiro é gigantesco”, aponta o estudo, e complementa: “O interesse do setor financeiro cresce proporcionalmente ao desenvolvimento desse mercado, fazendo com que fundos deixem de dar apoio apenas monetário para também se tornarem parceiros estratégicos de empresas no setor.”
Dados de um estudo lançado recentemente pelo The Business Research Company estimavam que o mercado vegano global cresceria de 14,80 bilhões de dólares, em 2019, para 15,12 bilhões em 2020 – 2,3%. A aposta é que esses números atinjam a marca de 20 bilhões de dólares em 2023. Grande parte ligada ao mercado de carnes criadas por meio da tecnologia baseada em células.
A Memphis Meats, empresa de tecnologia de alimentos com sede nos Estados Unidos, recebeu um financiamento de 161 milhões de dólares por meio de alguns investidores, como a Cargill — uma multinacional dos setores alimentício, agrícola e farmacêutico — e a Tyson — uma das maiores produtoras de carne do mundo. Outra gigante internacional, a Unilever, comprou a The Vegetarian Butcher, uma empresa de produtos à base de soja que foi criada no início dos anos 2000, na Holanda, em dezembro de 2018. Segundo o site da empresa, os produtos da Butcher são vendidos em mais de 4.000 lojas em 17 países e chegaram ao mercado brasileiro em outubro de 2020.
Olhando para os Estados Unidos, a Nielsen, uma das principais empresas de pesquisa de comportamento de consumo, conduziu um levantamento no qual concluiu que 61% dos entrevistados queriam reduzir a ingestão de carne, enquanto 22% tinham intenção de se tornar veganos ou vegetarianos. Em 98% dos casos, pessoas que procuraram por alternativas plant-based eram, também, compradoras de carne. “As marcas precisam claramente e consistentemente demonstrar por que seus produtos melhor se encaixam no estilo de vida e nas aspirações de saúde do usuário final”, menciona a consultoria.
Em dezembro de 2020, a empresa Eat Just criou barulho com uma carne criada a partir de células de aves. Com o nome de “frango premium”, a startup norte-americana, sediada em San Francisco, teve o seu produto aprovado pela Agência de Segurança Alimentar da Cingapura, o que torna o país o pioneiro em comercializar carne feita inteiramente em laboratório.
De acordo com uma reportagem publicada pelo The New York Times, um restaurante do país asiático ofertará os nuggets de “frango”. Não há informações sobre qual será o valor do produto, mas se sabe que apenas o custo de produção fica em 50 dólares por porção. Esse não é o primeiro produto vegano da empresa: a East Just já oferece no mercado uma maionese e um “ovo” à base de feijão.
Produtos lançados nos últimos anos abriram uma fenda na discussão sobre os propósitos do veganismo e em relação às opções alimentares que existiam antes. Itens como o Futuro Burguer ganharam espaço rapidamente ao tentar simular textura, cor e sabor de carne. São produtos relativamente caros – a caixa com duas unidades desse hambúrguer (230g), por exemplo, custa R$ 19, em média. E são ultraprocessados, ou seja, formulações alimentícias à base de aditivos, algo que o Ministério da Saúde recomenda evitar.
A discussão se desenvolve até mesmo em torno da nomenclatura. A indústria se divide entre investir nesse novo cenário e brigar para que esses produtos não possam receber nomes como carne, ovos e leite. As agências regulatórias têm promovido discussões para entender como devem nomear esses produtos e qual o processo de liberação dos mesmos, já que há dúvidas em termos de impacto à saúde.
Mais barato
O perfil Vegano Periférico, criado em 2017, tem hoje 354 mil seguidores no Instagram. Os irmãos gêmeos Eduardo e Leonardo Santos postam receitas e outras dicas sobre alimentação, além de refletir sobre o mercado capitalista. “Quando me tornei vegano, estava desempregado e a única opção viável era consumir legumes e vegetais. E eu percebi que era mais saudável consumir isso”, conta Eduardo, que já tinha uma visão prévia dos problemas a respeito dos malefícios de consumir ultraprocessados.
“Se a gente pensa em satisfazer o nosso paladar com produtos químicos ‘saborosos’ e muito coloridos, estamos com uma visão estreita do que é alimentação.” Ele ainda ressalta que o veganismo atua na raiz dos problemas e é contra todo tipo de exploração. “O produto de origem vegetal incentiva a produção da empresa, pois tanto o hambúrguer vegetal quanto o resto vai para a mesma finalidade.”
No Brasil, o crescimento de produtos feitos por corporações para o mercado plant-based é notório. Em menos de dois anos e com lucros perceptíveis, marcas como Seara, Sadia e Taeq (do Grupo Pão de Açúcar) lançaram congelados à base de vegetais. O Grupo Pão de Açúcar fez a sua estreia nesse nicho em janeiro de 2020 e a Sadia se lançou no mercado com produtos veganos e vegetarianos em março de 2020.
Outro produto que em breve chega aos supermercados é um substituto em pó para ovos mexidos e omeletes. A novidade foi criada pela startup Novo, que pertence ao Grupo Mantiqueira, que está entre as 12 maiores granjas do mundo e é o maior distribuidor de ovos da América Latina, segundo a Forbes. Ao todo, são 11,5 milhões de galinhas, distribuídas em quatro unidades no Brasil, como informa o site do grupo. Uma linha de maioneses veganas completa os produtos da startup, na proposta de expandir seus negócios para consumidores veganos, flexitarianos e alérgicos.
Um exemplo marcante da estratégia de difusão desses novos produtos é o da norte-americana Beyond Meat, que não distribuía suas carnes vegetais no setor de produtos veganos, já que o objetivo é atrair quem continua consumindo carne convencional.
A Danone também cita essa estratégia com o objetivo de ampliar o alcance dos iogurtes e dos leites à base de plantas, diante do crescimento do público flexitariano, conforme informado no site da corporação. Os flexitarianos também são alvo dos produtos da Seara, que lançou a linha veggie em maio de 2019, assim como a Fazenda Futuro.
Em setembro de 2020, a Fazenda do Futuro, responsável pelo Futuro Burguer, finalizou uma segunda rodada de captação de investimentos, contabilizando um montante total de US$ 29,8 milhões. Se em 2019 havia conseguido US$ 8,5 milhões, dessa vez as apostas do mercado financeiro se multiplicaram. A venda do hambúrguer teve início em maio de 2019 e, agora, a corporação diz ter mais de 8 mil pontos de venda. A segunda onda de captação atraiu gigantes como BTG Pactual (banco de investimento), Turim MFO (escritório de gestão familiar, cujo único investimento é na Fazenda Futuro) e ENFINI Investments, que pertence ao Grupo PWR Capital, empresa que investe em outros oito negócios ligados a tecnologia e alimentação.
“Essa captação reforça ainda mais o potencial do Brasil para ser um hub de produção plant-based para o mundo. Para isso, vamos intensificar nossa operação comercial e de marketing na Europa e acelerar a nossa chegada nos Estados Unidos. As pessoas estão começando a entender que não há mais planeta se mantivermos o consumo exagerado de carne animal”, afirma Marcos Leta, sócio-fundador da startup.
O setor passa por um processo muito semelhante ao de outras áreas, como transportes e hospedagem. Fundos do mercado financeiro fazem apostas pesadas no crescimento de empresas nascidas há meses ou há poucos anos. A Eat Just, por exemplo, tem apenas 11 funcionários, e já recebeu aportes de US$ 220 milhões.
Uma pesquisa encomendada em 2018 ao Ibope tentou estimar a presença de vegetarianos dentro da população brasileira. Entre os 2.002 entrevistados, 8% declararam “concordar totalmente” com a afirmação de que são vegetarianos, enquanto 6% concordam “parcialmente”. A interpretação da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) é de que 14% dos brasileiros seguem uma dieta exclusivamente à base de vegetais.
Selo vegano
Existem algumas certificações que indicam se determinado produto não realiza testes em animais ou é totalmente livre de matéria-prima desses seres. Uma dessas certificações foi desenvolvida pela SVB a partir de um programa que confere ao produto o Selo Vegano, criado em 2013. De acordo com a ONG, qualquer empresa pode solicitar o selo, pois somente o produto em questão é avaliado, e não as práticas corporativas em geral.
Ao ser questionada sobre frigoríficos produzirem alimentos veganos, a SVB pontuou que acredita “que todos temos um papel fundamental na construção de um mundo melhor, mais justo, ético e sustentável, não só como pessoas, mas também como organizações e empresas. Infelizmente, nossa sociedade foi moldada em cima de um consumo errôneo e cruel, mas hoje, é evidente que não dá mais para seguir de acordo com os padrões antigos daquilo que acreditávamos ser uma alimentação saudável”.
A SVB também reforçou que apoia “qualquer iniciativa de uma empresa em colocar no mercado um produto que não tenha gerado nenhuma demanda animal. Sabemos do potencial que os microempreendedores e startups possuem em inovar e trazer uma visão totalmente diferente e nova do que estamos acostumados, mas também reconhecemos a responsabilidade que as grandes corporações possuem em fazer realmente parte do movimento, e gerar impactos positivos, nesse caso, na oferta de produtos a base de vegetais, o que significa uma revisão de seus valores quanto à sustentabilidade (e tudo o que está relacionado a ela) de seus processos”.
No site do Selo Vegano estão listados 1.112 itens, entre sapatos, cosméticos, doces, castanhas, farinhas e alimentos congelados. Esses produtos são distribuídos em supermercados, restaurantes e lojas especializadas, como o Vegan Sisters, inaugurado em maio de 2019, em Belo Horizonte. Paula Gomes, proprietária e “faz-tudo” do negócio, sentiu a necessidade de abrir o empório vegano quando percebeu a dificuldade de encontrar alguns produtos na cidade. “Os itens passam por uma curadoria. Eu experimento tudo antes de trazer, vejo qualidade e custo-benefício, além dos diferenciais de cada um”, relata. Com investimento de R$ 150 mil e despesas fixas de R$ 8 mil, o comércio tem lutado para sobreviver durante o período da pandemia. “Ficamos alguns meses fechados e ainda não tivemos lucros, os últimos meses foram só prejuízo”, conta.
Um levantamento feito pela Associação Brasileira de Startups, a pedido da reportagem, informou que há 12 “soluções” veganas – na interpretação da organização, “soluções” são empresas que oferecem inovações reais. Uma delas é a Natural Science, uma empresa sediada em Curitiba que nasceu em 2012, a partir da criação de produtos vegetarianos. Atualmente conta com cinco produtos diferentes no catálogo, entre queijos em pó e doces. Em 2016, a startup participou da versão brasileira do programa Shark Tank e recebeu um investimento de R$ 400 mil de Carlos Wizard, empresário próximo ao bolsonarismo e dono da rede Mundo Verde.
Os leites vegetais têm conquistado destaque entre os produtos veganos, pois algumas marcas pretendem atingir o público celíaco e intolerantes à lactose, vendendo a ideia de colocar no mercado opções mais saudáveis para o consumidor.
A Nestlé, por meio do Programa Scale-Up Endeavor Alimentos e Bebidas, é uma das investidoras da NoMoo, produtora de laticínios à base de castanhas. Segundo notícia divulgada no portal da empresa suíça, entre 2017 e 2019, foram investidos mais de R$ 15 milhões em produtos plant-based. Uma das linhas que faz parte da companhia é a Nature’s Heart, que além de atuar no seguimento dos leites, também produz lanches e refeições semi-prontas.
Se frigoríficos entraram nesse mercado, não haveria por que a empresa-símbolo dos produtos lácteos ficar de fora. A Danone lançou em 2018, no mercado brasileiro, a linha Silk de leites vegetais, após uma transação, finalizada em 2017, em que a multinacional francesa adquiriu a Whitewave (uma empresa americana de produtos orgânicos) por US$ 12,5 bilhões. No fim de 2020, a corporação expandiu a linha de produtos à base de plantas a partir dos produtos da Alpro (de bebidas e comidas vegetais) e da Vega (linha de suplementos alimentares).
Segundo uma reportagem publicada pela Reuters, um dos executivos da Danone, Emmanuel Faber, declarou estar preocupado com o rumo que as grandes indústrias alimentícias estão caminhando. Em um encontro de varejistas das maiores empresas de produtos industrializados do mundo, em Berlim, Faber destacou que as pessoas estão cozinhando cada vez mais, e que os consumidores deixarão de consumir os produtos industrializados se as empresas não começarem a enfrentar questões como obesidade, desigualdade e mudança climática.
Ainda segundo a reportagem, ele declarou: “A revolution is cooking, what are we going to do about it?”. Traduzindo: uma revolução está cozinhando, o que vamos fazer em relação a isso?