‘É a hora de salvar vidas’, afirma o representante do Programa Mundial de Alimentos no Brasil, Daniel Balaban, em entrevista; para ele, é necessário manter o auxílio emergencial
Em cena, o professor anuncia para um grupo de estudantes: “O conceito de ‘estratégia’… Em grego, strategia; em latim, strategi, em francês stratégie (…), em inglês, strategy; em alemão, strategie; em italiano, strategia; em espanhol, estrategia…” A palavra em destaque de uma das mais célebres passagens do filme “Tropa de Elite” (2007) não é uma exclusividade do jargão militar, ela também é uma ideia-chave para pensar as políticas públicas de alimentação de um país.
Pelo menos, é assim, com ênfase no caráter “estratégico”, que Daniel Balaban, o representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP), braço da ONU agraciado com Prêmio Nobel da Paz em 2020, e também o Diretor do Centro de Excelência contra a Fome, define a importância da existência de programas para promover a segurança alimentar e nutricional nos países.
Ele concedeu uma entrevista por videoconferência para O Joio e O Trigo em janeiro deste ano para comentar, entre outros assuntos, o aumento no preço de alimentos no país. Na conversa, Balaban reafirmou a necessidade de ampliar o apoio aos pequenos produtores rurais. Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, os agricultores familiares, incluídos neste segmento, respondem por 48% da produção de café e banana no país, 80% da mandioca, 69% do abacaxi e 42% do feijão.
“Todos os governos”, afirmou, “têm que agir estrategicamente. Não conheço país no mundo que deixa a questão agrícola à mercê das leis do mercado. Em todos os países do mundo existe uma interferência e uma organização estratégica do Estado, porque esse setor [dos pequenos produtores] é fundamental.”
O representante do programa vencedor do Nobel também fez um apelo pela continuidade do auxílio emergencial, adotado como uma medida de proteção aos brasileiros que perderam renda com a pandemia de Covid-19. “Estamos passando realmente por uma emergência. Então, não é —em qualquer país do mundo, não somente no Brasil— o momento de pensar em equilíbrio orçamentário. Esse é o momento de salvar vidas.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
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Pergunta — Alguns fatores levaram o preço dos alimentos e bebidas a uma alta que, segundo o IPCA do IBGE, ficou na faixa de 14% em 2020. Alguns alimentos, como o arroz e o óleo de soja, subiram de preço em mais de 75%. A seu ver, esses elementos podem se repetir em 2021, levando a uma nova alta?
Resposta — Tudo vai depender agora de como vai se comportar principalmente o câmbio. No Brasil, um dos problemas relacionados à falta de oferta interna de alimentos é a exportação. O produto brasileiro está muito barato no exterior. E no exterior, por conta da Covid e de outras questões, houve um aumento da necessidade de importação de alimentos para vários países.
Então o agronegócio, principalmente brasileiro, mas o de outros países também, teve um dos maiores crescimentos da história. O nome agronegócio é exatamente esse por isso, porque é um negócio. Para eles, é muito melhor vender um alimento lá fora, por exemplo, o arroz, do que vender aqui dentro. E o arroz pulou para quase R$ 40 o pacote de cinco quilos, que custava R$ 15 — aumentou mais de 70%, mas ao longo do ano aumentou mais de 100%.
O problema todo é você levar em conta que o Brasil hoje está com o câmbio extremamente supervalorizado e que não tem mais os estoques reguladores, que serviam para equacionar essas altas que havia nos preços por conta de oferta e demanda. Isso também vai acabar fazendo com que fiquemos à mercê dos picos de alimentos por conta da oferta e demanda. E pode acontecer qualquer coisa ao longo do ano. Pode acontecer de ter vários picos ao longo do ano.
Além dos fatores que eu citei, você vê algo específico para 2021 que pode levar à elevação do preço dos alimentos?
Hoje, por enquanto, as safras estão todas consolidadas. Não há qualquer quebra de safra. O problema brasileiro não é produção, porque nós produzimos alimentos e a cada ano batemos recordes de produção. O problema está relacionado justamente à falta de estoques, que não existem mais — isso te deixa à mercê dos picos de oferta e demanda.
E também tem uma questão que eu falo muito, que é o pequeno agricultor familiar. Ele não tem todos aqueles programas que havia nos anos anteriores de estímulo. Os pequenos agricultores são extremamente importantes para os produtos internos brasileiros. Quanto mais tivermos oferta de produtos por parte dos pequenos agricultores familiares, isso pode fazer com que o valor [dos alimentos] diminua.
Se os nossos pequenos produtores agrícolas, familiares, não produzirem o que podem produzir, a situação pode se agravar.
Por que é tão importante o apoio ao pequeno agricultor?
O pequeno agricultor é extremamente suscetível a quebras de safra ou a problemas relacionados a questões climáticas. Se tiver uma seca, por exemplo, ele não tem poupança para aguentar um período como esse. Ele precisa muito do apoio do Estado através das políticas públicas.
Quais são essas políticas? São o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de apoio financeiro aos pequenos agricultores; o Programa de Aquisição de Alimentos, que já teve um orçamento muito maior; o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que compra do pequeno agricultor para as crianças nas escolas; o programa de cisternas, que é importante para ajudar os pequenos produtores a pegar água da chuva e aguentar o tempo de seca.
Todos esses programas diminuíram o orçamento ao longo dos últimos anos. O que é que a gente prega? Que esses orçamentos voltem a ficar robustos e que se volte a dar um olhar maior do Estado, seja nas políticas públicas federais como também nas estaduais e nas municipais, para os pequenos agricultores familiares.
Por que eles não têm o apoio que precisam?
O pequeno agricultor não tem muita força política. Logicamente, são pequenos, são pobres, estão nas suas glebas de terra, não se organizam como deveriam e têm uma força política muito menor do que, por exemplo, o agronegócio, que chega a ter bancadas de apoio no Congresso. Hoje você conta pouquíssimos deputados que realmente lutam por esses agricultores, sejam nas assembleias estaduais, municipais ou federais.
Quando você não é bem representado em bancadas, o orçamento é um bolo, e todo o mundo grita por um pedaço daquele bolo. O pequeno produtor não tem voz para conseguir pegar um pedaço, e cada vez mais o pedaço dele vai diminuindo mais e mais.
Só que ele é fundamental, não somente para o crescimento agrícola brasileiro, mas para a base de sustentação dos produtos e também para a formação de preços no país. A maioria dos alimentos que a gente consome internamento vem deles. Se eles não estão estimulados a produzir, diminui também a produção e aumenta o preço.
Como o governo poderia agir hoje para evitar que os preços dos alimentos disparem, como foi no caso do arroz?
Eu não vejo, não conheço, nenhum país no mundo que conseguiu se desenvolver de forma plena sem o apoio ao pequeno agricultor familiar. Eles são os que têm as glebas menores e que têm a Declaração de Aptidão ao Pronaf. Hoje são 4,5 milhões mais ou menos de famílias consideradas pequenos agricultores familiares, e eles são a base de sustentação e de produção para o consumo das famílias brasileiras.
O agronegócio é importante para a balança comercial. Agora, quando você fala em termos de consumo e de alimentação, são os pequenos agricultores que estão nessa base.
Eu sempre digo o seguinte: existe ação e existe reação. Quando você cria políticas públicas e coloca um orçamento do lado daquela rubrica condizente, consegue ter os resultados daquilo que está fazendo. Quando corta simplesmente, e corta os valores que seriam para fomentar essas políticas públicas, logicamente os resultados são decepcionantes e você acaba prejudicando uma parcela imensa da população.
Todos os governos, e o governo brasileiro, como qualquer outro de qualquer outro país no mundo, têm que agir estrategicamente. Não conheço país no mundo que deixa a questão agrícola à mercê das leis do mercado. Em todos os países do mundo existe uma interferência e uma organização estratégica do Estado, porque esse setor é fundamental.
Uma quebra no setor agrícola leva a quê? Leva à fome.
Que impacto você vê que a provável não continuidade do auxílio emergencial pode ter sobre o acesso à alimentação no país?
Eu sou um defensor do auxílio não-emergencial, perene, não somente nos países em desenvolvimento, mas em todos os países —em desenvolvimento e desenvolvidos— do mundo.
Imagine que em 2020 quase 70 milhões de pessoas dependiam desses primeiros 600 reais, depois foi cortado para 300 reais, e agora, zero, a partir de janeiro. Imagina o impacto nessas famílias que estão prejudicadas para conseguir os seus recursos. Muitos estão desempregados, com o país batendo recorde de desemprego.
Estamos passando realmente por uma emergência. Então, não é —em qualquer país, não somente no Brasil— o momento de pensar em equilíbrio orçamentário. Esse é o momento de salvar vidas. Nenhum país terá capacidade de sobrevivência se não houver o apoio do Estado.
A sociedade civil cumpriu um papel importante com doações de alimentos ao longo do ano que passou. A seu ver, ela pode suprir o aumento da demanda por alimentos que o fim das medidas governamentais provocará?
A sociedade civil jamais vai conseguir suprir o papel do Estado. Por mais que se esforce, ela é incapaz de atender um contingente tão grande de pessoas. Hoje, teríamos em torno de 40 milhões de pessoas já necessitadas. Como você vai conseguir levar todos os dias 40 milhões de cestas básicas? Sem o papel do Estado, terá apenas um caráter paliativo. Se eu entregar hoje um alimento para um grupo necessitado, amanhã vai precisar de novo, porque o alimento rege a vida.
Você tem que criar sustentabilidade nesse processo. Logicamente, a fome não pode esperar. Mas, junto com isso, temos que trabalhar as políticas públicas perenes, para que as pessoas saiam dessa necessidade e consigam fazer, por si só, a sua vida. Por isso que é um clamor que a renda básica é extremamente importante, porque com esse recurso as famílias vão consumir. Isso também dinamiza a economia, porque é uma injeção de recursos.
Qual o impacto que você avalia do aumento de preços sobre a cultura alimentar brasileira?
Como já falava a rainha [Maria Antonieta]: “Se não tem pão, que comam brioches”. A gente sempre escuta esse tipo de comentário, mas é lógico que tem impacto, porque as pessoas são obrigadas a fazer a substituição por alguma coisa — ou deixar de comer algo por outra coisa.
Muitas vezes, temos um impacto nutricional por conta dessas substituições, porque nem todo mundo é obrigado a entender as questões nutricionais. Você não substitui simplesmente arroz por macarrão. Apesar de estarem dentro de um mesmo componente, não significa que tenhamos os mesmos componentes nutricionais um do outro.
Tem impacto, porque as famílias são forçadas a substituir. Se o arroz custa R$ 40 o quilo, é óbvio que a família mais pobre —com qualquer ajuste de preços, eles têm o dinheiro contado— não consegue mais equilibrar o seu orçamento, após qualquer mudança.
Mas isso não é por aí. O importante é que nós temos um país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, e é inconcebível que não tenhamos alimentos a preço justo para a nossa população.
Um estudo realizado na Universidade Federal de Minas Gerais mostrou que existe uma tendência de barateamento dos alimentos ultraprocessados e encarecimento dos alimentos in natura e minimamente processados. Se esse movimento continuar, a pesquisa prevê que os ultraprocessados se tornem mais baratos do que outros alimentos. Qual seria o impacto disso no Brasil?
Isso é extremamente perigoso, porque os alimentos ultraprocessados não somente não são alimentos, como eles podem matar. Vamos deixar claro. São alimentos muito ricos em gordura, açúcar e sódio e, se consumidos durante muito tempo, levam à diabetes, à hipertensão, ao colesterol alto —doenças que matam. Por isso, aprovamos a codificação dos alimentos que são perigosos.
Mas é óbvio que será mais barato, porque [o alimento ultraprocessado] não é comida, é produto químico. Quando a gente fala de ultraprocessados, eles às vezes têm mais química do que comida. Tem só o cheirinho, com um monte de açúcar. Batata chips não tem batata nenhuma. Bolacha recheada e achocolatados estão entupindo as crianças de porcaria.
Isso vai agravar a situação do sistema de saúde, que vai ter que tratar dessas pessoas devido à má alimentação.
É muito ruim para um país ter o produto ultraprocessado mais barato do que a comida de verdade, o alimento produzido in natura. A gente tem que trabalhar para que esse alimento in natura chegue às pessoas de forma mais acessível. Não adianta lutar por uma alimentação saudável se as pessoas não têm dinheiro para comprar.