Pandemia poderia ter exposto necessidade de cobrar a conta das corporações associadas a doenças crônicas, mas serviu para o contrário: marketing no lugar de políticas públicas
Em outubro de 2018, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) remeteu à Anvisa um documento em forma de ameaça. A fabricante de ultraprocessados projetava a perda de 200 mil postos de trabalho diretos (mais de 10% do setor) se a agência de saúde adotasse alertas na parte frontal dos rótulos com a finalidade de informar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras. Ao menos R$ 77 bilhões iriam pelo ralo em termos de faturamento (12,5%), o que teria um impacto sobre a arrecadação de impostos.
A conta estava completamente furada: pressupunha que todas as pessoas contrárias aos alertas simplesmente deixariam de comer. Mas exerceu a pressão corriqueira sempre que se fala em adotar políticas públicas. Corporações como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, Unilever, Mondelez, Danone e Bauducco não hesitam em jogar o peso econômico nas costas dos agentes públicos e da sociedade.
Em muitas ocasiões, esse peso é usado justamente para evitar a arrecadação de impostos – sempre sob a ameaça de que postos de trabalho serão fechados e empresas irão embora do país se tiverem de fazer o óbvio, que é arcar com suas obrigações. Essa estratégia, comum entre corporações de quaisquer setores mundo afora, vende por vezes a ideia de que se trata de um mal necessário: como se tivéssemos de escolher entre economia e saúde.
A força dessas corporações transforma em permanentes os subsídios públicos que deveriam servir apenas como um impulso inicial. O caso mais escandaloso é certamente o da Zona Franca de Manaus, onde Coca-Cola e Ambev fincaram bandeira graças a bilhões de reais obtidos anualmente de forma suspeita, e sempre sob contestação da Receita Federal – você pode ler nossa série de reportagens a esse respeito.
Em meio à pandemia de covid-19, essas corporações reforçaram o discurso que aposta em substituir políticas públicas por filantropia. Mas a conta não fecha. E é por isso que decidimos colocar na ponta do lápis todos os artifícios utilizados por essas corporações para evitar o pagamento de impostos.
Não há dúvidas de que a pandemia se tornou mais grave graças à enorme incidência de doenças como diabetes, enfermidades cardiovasculares e câncer. Nós deveríamos, portanto, estar discutindo a maneira de responsabilizar as corporações que levaram à explosão dos índices das doenças crônicas. Mas seguimos na contramão.
O especial “A conta da indústria” constitui um mapeamento inédito das manobras utilizadas por corporações para evitar o pagamento de impostos e garantir isenções que custam muito caro a todos nós. Se você está procurando um motivo para ficar indignado, damos logo meia dúzia.
Para dar um exemplo: a Ambev declara ter doado R$ 1,5 milhão em balões de oxigênio, bolsas térmicas, álcool e alimentos, mas em somente um dos processos analisados por nós a empresa deve R$ 2,5 bi à União, num caso que se arrasta há duas décadas.
Quer ajudar?
Por isso, decidimos lançar a campanha “Quer ajudar? Paga imposto”. Os últimos anos trataram de escancarar uma guerra em campo aberto pelos recursos públicos. Uma guerra absolutamente desigual, já que corporações têm recursos virtualmente ilimitados para promover lobby. Sempre que uma corporação fizer publicidade em cima de filantropia, cobre-a a pagar impostos.
O teto de gastos de Michel Temer, o desmonte de empresas públicas, a revogação de direitos trabalhistas e até de nossa aposentadoria, apenas para mencionar alguns exemplos, mostram uma voracidade sem limites na concentração de recursos. Não é por acaso que o 1% mais rico da população já detém quase metade das riquezas do Brasil – contra 44% no começo do século.
É hora de colocar um freio nesse trator. E esse freio só é possível se entendermos as engrenagens. Ao longo dos últimos 6 meses, o repórter Marcos Hermanson fez um grande esforço por traduzir fatos, números e documentos que são realmente complexos de entender.
Essa tarefa penosa é uma das explicações para a dificuldade em nos contrapormos à apropriação do orçamento público por uns poucos atores privados que dispõem de recursos humanos e monetários quase infinitos para atingir essa tarefa, ao passo que nós, mortais, temos de trabalhar cada vez mais para fechar as contas no final do mês.
Decidimos investigar apenas as fabricantes de bebidas e alimentos ultraprocessados. Este setor, conectado e dependente do agronegócio, é o fabricante final de mercadorias que se tornaram onipresentes nas últimas décadas, e hoje representam quase 30% da ingestão calórica diária dos brasileiros. O impacto desses produtos para o SUS não entrou no nosso cálculo.
É importante dizer que um trabalho 100% preciso sobre o custo dessas empresas ao poder público é impossível ou muito difícil de se fazer. Primeiro, porque parte dos valores são desconhecidos, uma vez que deixam de ser arrecadados em impostos na forma de remessas a paraísos fiscais, créditos tributários e outras manobras legais ou ilegais. Segundo, porque em alguns casos essas corporações têm contado com a complacência e silêncio de governos federal, estaduais e municipais; não sabemos, por exemplo, quais são os pacotes de isenções oferecidos para a instalação de fábricas em determinados lugares – e recebemos uma dezena de negativas das Secretarias de Fazenda em fornecer esses dados. Para que se tenha uma ideia, em 2018 o portal The Intercept revelou que só a Ambev receberia incentivos de até R$ 840 milhões por uma única unidade de fabricação de bebidas no Paraná.
Nossa investigação tampouco entra nos custos relacionados a infrações trabalhistas. Apenas a M. Dias Branco, uma das maiores fabricantes de biscoitos do Brasil, lista em seu relatório mais recente um total de quase três mil ações trabalhistas, num total estimado em R$ 388 milhões. Sem falar nos casos de trabalho escravo relacionados a fornecedores dessas marcas, como o relatado recentemente pelo El País a respeito de Ambev e Heineken.
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Ao longo do tempo, ultraprocessados vêm se tornando cada vez mais baratos, o que cria um novo fator de pressão sobre o poder público e a sociedade: como garantir que as pessoas comam alimentos in natura se os sistemas alimentares foram completamente remodelados para atender a essas corporações? Cresce, em todos os lados, o debate para que os preços finais incluam todos os impactos socioambientais dessas empresas. As fabricantes de refrigerantes e sucos estão entre as maiores poluidoras do mundo graças às garrafas plásticas – Coca-Cola e Nestlé no topo da lista.
Além disso, sem tantas benesses, esses produtos seriam tão baratos? Em 2019 mostramos que apenas o BNDES havia subsidiado em mais de R$ 10 bilhões a indústria de ultraprocessados. As contrapartidas ambientais são pequenas. As trabalhistas, vagas. As sociais, inexistentes.
E nós com isso?
A ideia de que essas empresas são boas pagadoras de impostos também merece, no mínimo, algumas ressalvas. São elas que pressionam para que o Brasil se torne “competitivo”, uma expressão que oculta a intenção de tornar mais fácil a remessa de dinheiro a paraísos fiscais e às matrizes. É assim, com cada vez mais manobras para garantir que os recursos migrem antes que possam se tornar arrecadação de impostos, que um punhado de pessoas enriquece cada vez mais.
Uma das nossas reportagens analisa um caso relacionado à Ambev, uma corporação “exemplar” no uso de paraísos fiscais – são dezenas de endereços em países como Luxemburgo, Holanda, Ilhas Cayman e Panamá.
É importante lembrar que o Brasil é um dos países que mais perdem na dura concorrência com paraísos. Uma reportagem recente da revista Piauí mostra que, apenas em Luxemburgo, brasileiros ou residentes no Brasil mantêm ao menos R$ 723 bilhões – esses são os recursos que conseguimos enxergar. Não é nenhuma surpresa saber que os donos da Ambev são os detentores das duas maiores empresas, com um total estimado de R$ 376 bilhões.
Parte desses recursos migra de maneira legal a paraísos fiscais? Sim. O que não quer dizer que as empresas não tenham se utilizado de manobras clássicas para evitar o pagamento de impostos (tax avoidance, como é conhecido). Essa série de artifícios foi aperfeiçoada nas últimas décadas para fazer com que mais recursos ficassem nas mãos de corporações – consequentemente, menos recursos chegam até nós na forma de serviços públicos. Por exemplo: em 2019, uma das engarrafadoras da Coca-Cola no Brasil, a Spal, relata uma receita líquida de R$ 12,6 bilhões, mas, antes que o governo federal e os estados pudessem cobrar impostos, esse montante já havia sido reduzido a R$ 861 milhões.
E você com isso? Esse volume todo de recursos deveria chegar até nós por meio de serviços públicos. Se faltam recursos para o SUS, para as escolas, para as forças de segurança, é porque eles estão indo parar em outros lugares. “A conta da indústria” oferece uma amostra de táticas usadas para nos deixar mais pobres. Boa leitura.