editorial
Estamos sequestrados pelo estômago ou pelo coração?
Para forçar apetites e afetos, corporações nos tomam causas e empurram ultraprocessados - e doenças
Faz décadas, a indústria de ultraprocessados trabalha para talhar em madeira firme posições psicoemocionais no debate público, via comunicação. Agressivas, as corporações alimentícias se infiltram no dia a dia das pessoas, se comportando como amigos, ou – quem sabe? -, mães, pais, talvez avós.
Recordemos: na década de 1980 a Coca-Cola lançou, no Brasil, a “Coca-Cola Família”, contendo um litro do perigoso líquido com altas doses de xarope de milho com frutose, muitos açúcares, corante, sal refinado, cafeína e outros itens, alguns não revelados. Reforcemos: essa mistura química associada a várias doenças crônicas carregava o termo “família” no nome. Agora, perguntamos: quem tem um “parente” desses à mesa, precisa de inimigos?
Sem cerimônias, vamos chamar isso pelos nomes apropriados: sequestro de afetos ou de apropriação das dores.
A Coca não é a única, evidente. Há outras representantes do capital por excelência – hoje, também enraizadas no o invisível e onipresente mercado financeiro – que servem de ilustrações poderosas do quão capazes são as transnacionais na captura de afetos, incluídas causas políticas legítimas defendidas por movimentos sociais, coletivos e organizações da sociedade civil.
E, aí, entramos num antigo debate: há como mudar por dentro essa máquina de captura que só tem como finalidade encher os cofres ou valorizar as ações nas bolsas de valores? Ou a mudança só é possível de fora para dentro, com a participação da diversidade social na luta contra essas apropriações?
Muitos acreditam na luta por dentro dessa máquina de moer carne e ossos, mas, convenhamos, isso é mesmo possível quando as marcas ocupam o lugar da luta social para falar de produtos? O que nós interpretamos é que o mais provável é que empresas e marcas se coloquem como a “ativista maior”, uma espécie de liderança dos movimentos.
Algo incompatível, evidentemente. As marcas nunca serão, de fato, líderes de movimentos sociais legítimos, porque associam as lutas apenas a produtos salvadores, como se as conquistas de Direitos Humanos pudessem ser resolvidas pela aquisição de bens de consumo.
Ações de marketing são só uma forma superficial de tratar algo complexo e de vender uma falsa solução para as desigualdades, seja com o Doritos, da PepsiCo, com o símbolo do arco-íris, numa referência às comunidades LGBTQIA+; seja no “Comitê Externo de Diversidade e Inclusão”, resposta do Carrefour após o assassinato de João Alberto Silveira Freitas em uma unidade do supermercado em Porto Alegre (há como mediar com quem mata o povo preto no dia a dia, das mais diversas formas?); no uso da imagem da mulher empoderada pelas mesmas corporações que exploram o corpo feminino em propagandas; ou nos produtos de Coca, Pepsi, Unilever e Nestlé, que estampam nos rótulos mensagens de “preocupações” com a preservação do meio ambiente enquanto seguem como as maiores poluidoras por plástico do planeta (e não só plástico).
Algo que também se estende ao veganismo, uma ideologia política que nasceu a partir do espírito anticapitalista, mas que tem sido apropriada (não totalmente), ora veja, por sua antítese, a indústria da carne. Também pelos agressivos processos químicos do complexo agroindustrial que mata dezenas de espécies silvestres – animais e vegetais – para a fabricação dos “hambúrgueres do futuro” (com essa lógica, haverá futuro?). Acompanhado, ainda, de um limbo sobre o grau de processamento desses produtos, criados nos laboratórios a serviço das corporações para imitar a carne em sabor, consistência e “suculência”.
Esses temas suscitam debates e polêmicas, nós sabemos. Há muitas divisões entre os movimentos que defendem as causas aqui citadas – afinal, dividir para dominar é uma lição antiga para os que detêm o poder. No entanto, o papel do jornalismo, aos olhos do Joio, é, além de informar, o de se posicionar com honestidade intelectual frente às problemáticas dos nossos tempos.
No trajeto da História, o capital se adapta. Se ajusta em forma e conteúdo. Nunca de forma positiva para a maioria. E em época de capitalismo cognitivo, quando ideias e ideais são sequestrados sem cerimônia, as megacorporações de ultraprocessados usam cada vez mais a publicidade e o marketing para fingir que atendem demandas de diversidade, o que fica só no discurso, porque, dentro dessas empresas, a regra segue a ser a desigualdade de gênero, de raça e a aceleração da crise climática.
Com o objetivo de demonstrar essas inconsistências e incoerências da indústria alimentícia, lançamos nesta data um especial sobre apropriações, a começar por três reportagens, feitas pelas corajosas repórteres Nathália Iwasawa e Luísa Sousa, que abordam as causas do veganismo, das comunidades LGBTQIA+ e do ambientalismo, além de uma matéria que apresenta de forma mais ampla o conceito de apropriação e mostra os impactos em outros grupos sociais, como as mulheres.
Pretendemos, assim, colaborar para retirar os disfarces dessas megaempresas, que objetivam tão somente garantir lucros exorbitantes com a concentração da alimentação mundial em um número reduzido de corporações; a alteração do consumo de alimentos in natura e menos processados para o de alimentos ultraprocessados; a devastação de ecossistemas sustentáveis por processos adotados pelo sistema alimentar hegemônico; o apagamento de culturas alimentares originárias e tradicionais; e os impactos negativos na saúde pública.
Não se deixe apropriar. E boa leitura.