O Joio e O Trigo

Indústria do tabaco tenta passar ilesa pela reforma tributária

Vídeos e documentos obtidos pelo Joio revelam bastidores da movimentação que já dura dois anos

“O tabaco vai ser prejudicado. Eu acho que nós temos que discutir aqui como que a gente pode evitar que aumente o imposto”.

A frase é de Iro Schünke, presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), entidade que reúne algumas das multinacionais que dominam o ramo, como British American Tobacco (BAT), Philip Morris e Japan Tobacco International (JTI).

Foi dita em outubro de 2020, em uma das ocasiões em que os representantes dos interesses das empresas de fumo discutiram – a portas fechadas – a reforma tributária. 

Enquanto associações da sociedade civil e entidades médicas vêm apresentando seus argumentos pró-tributação dos produtos derivados do tabaco de maneira aberta, em audiências e eventos públicos, a indústria se movimenta bem longe das vistas da sociedade.

O lobby contra o aumento da carga tributária se desenrolou ao longo dos últimos dois anos de forma nada transparente, não raro com o auxílio de estruturas do governo Bolsonaro usadas contra propostas da sua própria equipe econômica. Parte desses bastidores são revelados agora pelo Joio, graças a documentos e vídeos obtidos por meio da LAI, a Lei de Acesso à Informação.

Iro Schünke insta a indústria da fumaça a “evitar que aumente o imposto” na reunião da Câmara Setorial do Tabaco em outubro de 2020

As propostas na mesa

A necessidade de uma reforma no sistema tributário brasileiro é um daqueles assuntos que é consenso na teoria, mas não na prática. Quando parece perto de sair do papel, alguma coisa sempre acontece. Parte considerável da pressão contrária vem dos setores econômicos.

As últimas investidas para emplacar a reforma remontam a 2019, quando foram apresentadas duas propostas de emenda à Constituição (PECs) que angariaram amplo apoio no Congresso Nacional. 

As PECs 45 e 110 atacam de maneira muito parecida um dos problemas do sistema, que é o fato de União, estados e municípios administrarem tributos semelhantes, mas com regras que variam muito entre si. 

O caminho da simplificação, adotado nessas PECs e preferido pelo campo liberal, propõe unificar muitos desses tributos em um só IBS, ou Imposto sobre Bens e Serviços.

As duas propostas também incluem a criação de um Imposto Seletivo, aplicado pelo governo federal nos casos em que é necessário desestimular o consumo de alguma coisa que faz mal à saúde ou ao meio ambiente. É o caso do fumo, originalmente citado nos dois textos. 

Em fevereiro de 2020, Senado e Câmara formaram uma comissão mista para analisar essas propostas. 

Em paralelo, o ministro da Economia – que não é exatamente conhecido pela modéstia – tinha sua própria ideia de reforma tributária. 

Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e Paulo Guedes em coletiva no Congresso no dia da entrega do PL da CBS Foto: Pedro França/Agência Senado


A despeito da articulação parlamentar que já acontecia junto a governadores, prefeitos e empresários, Paulo Guedes queria mexer apenas nos tributos da União, incluindo o Imposto de Renda.

Ao mesmo tempo, o chefe da equipe econômica se distanciava de posições controversas adotadas por colegas de governo – caso do ex-juiz e agora presidenciável Sergio Moro (Podemos) que, entre março e agosto de 2019, promoveu no Ministério da Justiça o debate dos sonhos da indústria do fumo: diminuição de impostos como arma contra o mercado ilegal de cigarros. (A conclusão foi de que a carga tributária atual deveria ser mantida até que mais estudos fossem feitos.)

Ao contrário, Guedes deixou claro que a sua reforma desagradaria as indústrias de tabaco e bebidas alcóolicas. 

“O cara fuma muito? Bebe muito? Então taca imposto nele. Porque, se fuma muito, vai ter problema de pulmão lá na frente. Vai ocupar hospital público. Então põe logo um imposto nele. Vício tem que ser caro, para ver se desincentiva”, afirmou o ministro em novembro de 2019.

No pacote prometido por Guedes havia um “imposto do pecado” que substituiria o IPI – que corresponde a mais ou menos 30% da carga tributária dos cigarros hoje. 

E uma CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços) que prevê a unificação do PIS/Pasep e da Cofins, dois tributos que incidem sobre os cigarros e representam cerca de 11% da carga tributária do produto.  

O projeto de lei da CBS foi enviado ao Congresso em 21 de julho de 2020 como sendo a primeira de quatro partes componentes da reforma tributária do governo Bolsonaro. 

É aqui que a nossa história começa. 

“Pela defesa do agro”

Logo depois de Paulo Guedes colocar no tabuleiro essa primeira peça da reforma tributária, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) criou, sem alarde, um grupo de trabalho para discutir as propostas em análise no Congresso. 

O Joio obteve por meio da LAI os vídeos das três reuniões desse GT. E a primeira coisa que chama atenção é a influência do IPA, o Instituto Pensar Agro. 

O IPA foi criado em 2011 como uma espécie de think tank do agronegócio. Mas diferentemente de outras instituições a serviço de empresas que se dedicam a produzir dados para influenciar agentes públicos, o instituto parte de uma vantagem e tanto: os agentes públicos já estão lá dentro.   

Como o Joio mostrou no especial O agro é lobby, o IPA se organiza em comissões nas quais parlamentares da bancada ruralista atuam ao lado de funcionários e consultores do instituto para influenciar Legislativo, Executivo e Judiciário nos mais diversos temas. E tributação, é claro, não fica de fora.

Extrato do documento obtido com exclusividade pelo Joio que deu origem à série “O agro é lobby”.

Graças a essa ligação direta entre interesses privados e Estado que o agronegócio conseguiu fazer no Brasil, quando parecia que a reforma tributária ia vingar foi para o IPA que o Ministério da Agricultura olhou. 

De cara, os participantes – integrantes das câmaras setoriais e temáticas que existem dentro do ministério e são majoritariamente compostas por representantes de interesses empresariais – foram avisados de que a pasta não partiria do zero para elaborar um documento “com cara de Ministério da Agricultura” sobre o assunto. 

Ao abrir as atividades do GT, Luis Eduardo Rangel – então diretor de Análise Econômica e Políticas Públicas e hoje diretor de Programa da Secretaria Executiva da pasta – fez questão de dizer que a avaliação do IPA seria o ponto de partida. 

“Foi minha inspiração”, disse ele, que já havia participado meses antes de uma reunião do instituto que tinha como pauta a reforma

O técnico responsável pela comissão tributária do IPA marcou presença na reunião. Eduardo Lourenço informou que o instituto já atuava desde 2019 junto aos parlamentares da comissão mista da reforma tributária tentando influenciar principalmente seu relator, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). 

A principal bronca do IPA era com a PEC 45 que não permitia a concessão de benefícios tributários para o agronegócio. Nesse sentido, informou Lourenço, a PEC 110 seria mais adequada à “realidade do campo”.

Coincidência ou não, a PEC 110 vingou (mesmo que aos trancos e barrancos), enquanto a PEC 45 morreu na praia, como veremos adiante.

Outra prioridade do IPA em 2021, segundo documento interno obtido pelo Joio, era impedir que a CBS passasse com a alíquota proposta pelo time de Paulo Guedes, de 12%.

Mas entre os ruralistas tinha um pessoal mais contrário às propostas de reforma tributária do que a média. 

É o caso de quem lucra em cima de ‘quem fuma muito, bebe muito’, para usar a expressão do ministro da Economia. 

Ao longo das três reuniões do GT do Ministério da Agricultura o principal ponto de dissenso foi o imposto seletivo. 

A posição da pasta comandada por Tereza Cristina começa razoável. Representando o ministério, Luis Eduardo Rangel admitiu que o imposto seletivo seria um “ponto polêmico”, mas defendeu a legitimidade da aplicação do mecanismo para desestimular o consumo de produtos que fazem mal à saúde.

“Como é o caso do tabaco”, exemplificou.

“E é inevitável que a gente continue nesse sentido, considerando inclusive o perfil do Congresso Nacional”.

Os representantes da indústria chiaram. 

Para Alexsandra Cerqueira, presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça e gerente sênior de relações corporativas para América Latina da Diageo, multinacional que detém marcas como Ypióca e Smirnoff, o Mapa deveria “reavaliar sua posição”. 

Já para Carlos Galant, diretor-executivo da Abifumo, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo, qualquer aumento na carga tributária derrubaria “toda a cadeia produtiva”. 

Dada a polêmica, foi criado dentro do GT um subgrupo para debater o imposto seletivo. A conclusão? 

“Toda a cadeia do agro tem que ser protegida do imposto seletivo”, resumiu Cerqueira. 

Foi cunhado o seguinte lema: “pela defesa do agro, contra o imposto seletivo”. 
Alexsandra Cerqueira apresenta a ideia de que “toda a cadeia do agro tem que ser protegida do imposto seletivo” na terceira reunião do GT do Mapa


O subgrupo concluiu que se a ideia de criar um imposto seletivo prosperasse no Congresso, o Mapa deveria se esforçar para que a emenda à Constituição resultante não citasse os setores sujeitos ao tributo. 

E isso parece ter dado certo. 

O substitutivo da comissão mista da reforma tributária, lido em 11 de maio de 2021 pelo deputado Aguinaldo Ribeiro, mantém a previsão de um imposto seletivo sobre produtos do tabaco.

Já no substitutivo da PEC 110, apresentado pelo senador Roberto Rocha (PSDB-MA) em outubro passado, esses produtos sumiram. 

O texto fala em “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente” sem citar quais. Originalmente citava “cigarros e outros produtos do fumo”, além de bebidas alcóolicas.

Procurado pela reportagem, Rocha respondeu, por meio da sua assessoria de imprensa, que “por uma questão de princípio” retirou do texto “qualquer menção a apenas alguns poucos produtos que geram externalidades negativas”. Segundo o senador, que informou ter ouvido tanto empresas do fumo quanto “grupos antitabagistas”, a alteração respeita a natureza perene da Constituição.

Outra demanda do subgrupo do Mapa foi a de que a instituição do imposto seletivo não signifique aumento da carga tributária. 

O mecanismo deveria funcionar como uma substituição de seis por meia dúzia – o que, claro, barra qualquer tipo de avanço nas políticas de proteção da saúde e do meio ambiente.  

Roberto Rocha tem garantido que não haverá aumento da carga tributária – embora as alíquotas tanto do IBS quanto do imposto seletivo precisem ser definidas mais na frente, por leis complementares. Sobre esse ponto, o senador afirmou à reportagem que “essa é uma discussão que ocorrerá no tempo certo”.

Um terceiro ponto defendido pelo subgrupo é que esse imposto seletivo deveria ter um prazo de validade, na medida em que as razões para a sua criação deixassem de existir.  

Como o cigarro e o álcool são alguns dos principais fatores de desenvolvimento de doenças crônicas fica difícil vislumbrar o dia em que o consumo desses produtos vai deixar de adoecer e matar a população.  

De 36 câmaras setoriais e temáticas, apenas uma se posicionou a favor do imposto seletivo: a Câmara Temática de Orgânicos.

Pouco depois, Carlos Galant relataria que “até no grupo do Mapa tem cadeias produtivas defendendo que o imposto seletivo seja aumentado para o nosso setor” e proporia que a indústria do tabaco armasse “uma defesa com mais ênfase” dos seus interesses.


As movimentações do tabaco

Isso porque, além do imposto seletivo, a turma da fumaça tinha mais com o que se preocupar. 

O projeto de lei 3.887, que inaugurou o pacote tributário do Executivo e institui a CBS, prevê um regime especial para o tabaco.

Ao invés dos 12% da alíquota geral, os produtos derivados do fumo teriam uma alíquota de 22% a ser cobrada sobre o maior preço de varejo que as empresas estabelecem para cada uma de suas marcas de cigarro no país. 

Além disso, o texto prevê uma cobrança a mais, por embalagem, no valor de R$ 1,10. 

Na tentativa de derrubar essa ideia, a indústria primeiro teria apelado ao próprio ministro da Economia. 

Uma carta assinada por várias associações do setor teria sido encaminhada a Guedes em agosto de 2020. O Joio pediu o documento por LAI, mas o Ministério da Economia respondeu que não encontrou nenhum registro por lá.  

Na sequência, começou a se armar uma operação de pressão sobre outros pontos, por assim dizer.

Na época, o PL 3.887 ainda não tinha relator. Mas um dos maiores aliados da indústria na Câmara dos Deputados, Heitor Schuch (PSB-RS), prometeu que trabalharia juntinho do setor para alterar o texto.

Essa promessa foi feita no dia 16 de setembro de 2020, em uma conferência virtual que é um caso à parte.

Schuch usou a posição de presidente de uma das frentes parlamentares da agricultura familiar do Congresso Nacional (existem duas) para promover o evento, que mais parecia um convescote das fumageiras. 

No encontro, realizado por Zoom, houve até expulsão de representantes de entidades da sociedade civil – caso da ACT Promoção da Saúde.

Um técnico do Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão do governo federal que toca os trabalhos de uma das maiores fontes de dor de cabeça da indústria do fumo – a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro (Conicq) – relatou ao Joio que conseguiu acompanhar a reunião, mas só porque entrou na sala identificado por suas iniciais. 

“Todos que se apresentaram com nome completo e representavam críticas à indústria do tabaco foram expulsos”, diz. 

O episódio é mais um exemplo de como interesses privados se apropriam do que é público. 

As frentes são associações de parlamentares que se reúnem em torno de certos temas, mas não fazem parte da estrutura do Congresso. Apesar disso, o setor de comunicação da Câmara – pago por todos nós – foi usado para cobrir o evento.

Nesse clima nada democrático, as empresas ficaram livres para dizer o que bem entendessem – basicamente as mesmas coisas de sempre. 

O principal argumento mobilizado é batido: uma maior carga tributária favoreceria o mercado ilegal de cigarros. 

Os números são os da pesquisa do Ibope Inteligência de 2019 que chegou à conclusão – contestada por especialistas – que, naquele ano, 49% dos cigarros consumidos no Brasil vinham contrabandeados do Paraguai e 8% era fabricados por empresas nacionais cujas licenças são contestadas pela Receita Federal por sonegação de impostos.

Na opinião de Romeu Schneider, secretário da Afubra, a Associação dos Fumicultores do Brasil – entidade-chave no lobby da indústria – esse total de 57% poderia chegar a 90% com a aprovação da CBS. A Afubra queria a “reavaliação” do PL.

Na sequência, o assunto foi debatido pela Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, em 29 de outubro de 2020.

No vídeo obtido pelo Joio por meio da LAI dá para perceber que o cenário assustava. 

“Tudo pode acontecer”, resumiu Carlos Galant, o diretor-executivo da Abifumo que também é consultor do colegiado governamental.

Para ele, dentre as “muitas dificuldades” no horizonte estava a possibilidade de que a reforma se transformasse em “uma colcha de retalhos” na qual “alguns setores vão pagar a conta e outros vão ter benefício”. Foi nessa ocasião que Iro Schünke, do alto do sexto mandato consecutivo à frente do SindiTabaco, soltou a frase que abre essa reportagem. E instou os colegas: “O que a Câmara [Setorial] pode efetivamente fazer para ajudar nesse sentido, de não aumentar o imposto? Senão vamos ficar só na conversa.”

O colegiado decidiu formalizar suas preocupações. Em 28 de janeiro de 2021, enviou um ofício à ministra Tereza Cristina. 

Segundo Romeu Schneider, que além de secretário da Afubra é presidente da Câmara Setorial, a ideia era que o documento – também enviado à Frente Parlamentar da Agricultura – servisse para fazer pressão sobre o ministro da Economia. 

Nas palavras dele, Tereza Cristina e a FPA teriam “influência direta” sobre Guedes.

O documento, também obtido pelo Joio via LAI, pinta um cenário apocalíptico em que o aumento de carga tributária proposta na CBS levaria à “total desregulamentação fiscal e sanitária do mercado”.

O texto defende que a CBS não dê tratamento diferenciado para os cigarros, apesar de o novo tributo substituir PIS e Cofins, que têm recorte específico para o produto.

A indústria do tabaco quer pagar a alíquota geral da CBS, seja ela qual for – pleito que, se aceito, tem tudo para baixar os impostos sobre os cigarros. 

Isso porque Guedes já sinalizou que o governo aceitaria baixar a alíquota de 12% para 10%, no caso da indústria. 

Já a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) defende um percentual ainda menor, de 8,3%, e prometeu “combater” a alíquota de 10%, sinalizada pelo ministro. 

Caso consiga escapar do regime específico da CBS, a indústria do tabaco acabaria pagando menos impostos do que os atuais 11% da soma de PIS e Cofins. 

Uma grande confusão

Mas o governo Jair Bolsonaro ajudou a cadeia produtiva do tabaco de outras formas. 

Quem acompanha os planos da equipe econômica a essa altura já se acostumou com sua trajetória errática. Mais promessas do que ação, mais recuos do que asserção. 

A reforma tributária é um desses temas cheios de idas e vindas. Ou, nas palavras de Carlos Galant, “sobe e desce”. 

“Se a gente projetar uma imagem nas nossas cabeças, nós imaginamos aquele carrinho subindo a montanha e descendo a montanha”, disse ele em 28 de abril de 2021.


Isso porque Paulo Guedes articulou muito mal o seu pacote. 

Mas, ao mesmo tempo, conseguiu apoio para atravancar a discussão das PECs 45 e 110.

Isso aconteceu como efeito direto da aliança de Bolsonaro com o grupo de partidos conhecido como “Centrão”, e a subsequente ascensão de um dos seus líderes, Arthur Lira (Progressistas-AL), ao comando da Câmara dos Deputados.

Aliado do Planalto e atento às prioridades de ocasião do governo, Lira derrubou, como um trator, o edifício que sustentava a discussão. 

Em maio de 2021, ele decidiu acabar com a comissão especial mista que analisava as PECs. Para isso, lançou mão de uma justificativa formal – o estouro do limite de sessões do colegiado – para não estender o prazo da comissão. 

Passou a repetir o mantra da “reforma tributária possível no prazo mais rápido”. Leia-se a reforma proposta pelo governo – que por englobar apenas de tributos federais pode ser aprovada por meio de leis ordinárias que demandam menos votos do que uma PEC. 

É nesse contexto que o PL 3.887, que institui a CBS e pode elevar os impostos sobre os cigarros, finalmente ganhou um relator

O escolhido foi o deputado paulista Luiz Carlos Motta, que é do Partido Liberal de Valdemar Costa Neto – ao qual Jair Bolsonaro se filiaria no final do ano. 

Ele assumiu a tarefa no fim de junho. Um mês depois, já sinalizava que a alíquota de 12% seria “flexibilizada” na única entrevista que deu sobre o assunto, à Folha de S. Paulo

Nessa mesma entrevista, Motta anunciou que já tinha ouvido “praticamente” todos os setores. “Tem setor de aviação, livros, cigarros.”

Questionada, a assessoria de Motta informou ao Joio que ele atendeu representantes da Philip Morris no seu escritório em São Paulo.

O Joio tentou uma entrevista com Motta ao longo de vários meses para entender o que ele pensava sobre o regime especial do tabaco presente na CBS. A assessoria de imprensa do parlamentar afirmou que ele só voltaria a falar com a imprensa na coletiva que daria quando entregasse o relatório do PL a Arthur Lira.

Ah, sim. Também não é possível saber nada sobre o projeto de lei porque ele não segue o rito de tramitação do Congresso Nacional.

Quem olha o andamento do PL no site da Câmara pode pensar que ele está parado desde que Motta foi designado relator. 

Não houve uma audiência pública. O PL tampouco andou por comissões, nem houve a criação de uma comissão especial onde os debates aconteceriam às claras. 

Três membros do Colégio de Líderes, órgão da Câmara que reúne os líderes de blocos e partidos, relataram ao Joio que o PL nunca foi discutido ali. 

O relatório do PL é negociado nos bastidores com o governo e com o poder econômico. Quem quiser ter alguma ideia de quem são esses interlocutores precisa acompanhar o perfil de Motta no Instagram. 

Nesse quesito, entidades da sociedade civil não encontraram a mesma receptividade que a Philip Morris. A ACT Promoção da Saúde, por exemplo, não conseguiu audiência com o parlamentar. 

A assessoria de Motta confirmou que a intenção é colocar o texto negociado dessa forma em votação diretamente no plenário. 

Mas talvez ele não chegue tão longe. Procurado com esses questionamentos pela reportagem, Motta informou que “aguarda a retomada dos trabalhos legislativos no Congresso Nacional para saber como a matéria será tratada na Casa”. Segundo o parlamentar, “o momento é de redefinição de muitas pautas parlamentares, entre elas, a reforma tributária”.

Próximos capítulos

Mas quando uma porta se fecha, uma janela se abre. Agora, as expectativas estão novamente voltadas para uma das PEC, a 110. 

Isso porque a decisão de Lira de extinguir a comissão especial da reforma tributária não pegou bem no próprio Congresso.

Na ocasião, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), chegou a dizer que teria sido “inteligente” que o colega deixasse a comissão concluir seu trabalho.

No final de maio de 2021, chegou-se a um acordo. Ficou combinado que o Senado debateria a parte da reforma que depende de mudanças na Constituição, enquanto a Câmara privilegiaria os pedaços que fossem sendo lançados pelo governo em sua reforma fatiada. 

Dessa forma, a PEC 110 ganhou uma segunda chance. 

Depois de algumas audiências públicas, o relatório da proposta foi apresentado em outubro pelo senador Roberto Rocha – como dissemos mais adiante. 

Embora a menção a cigarros e bebidas alcóolicas tenha sumido desse texto, especialistas acreditam que o resultado não foi ruim. 

“A gente gostaria que tivesse menção aos produtos, mas também entende que o senador deve ter feito isso para deixar mais genérico e ter menos resistência dessas indústrias ao texto”, avalia Mônica Andreis, diretora-executiva da ACT Promoção e Saúde. 

A ONG defende que o imposto seletivo incida não só sobre cigarros e álcool, mas também sobre bebidas adoçadas e agrotóxicos.

Na avaliação de Marcos Valadão, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que fez estudos sobre as propostas de reforma, não há chances de que os cigarros não entrem na lista de “produtos prejudiciais à saúde”.

As preocupações se voltam para a etapa de regulamentação, quando as alíquotas tanto do imposto seletivo quanto do IBS serão definidas. 

Mas a verdade é que ninguém põe a mão no fogo pela aprovação da reforma tributária. 

“A probabilidade dessa emenda constitucional ser aprovada continua pequena. Pela minha experiência, se não houver um índice muito alto de consenso, a emenda não será aprovada”, diz Valadão.

A matéria ficou cozinhando na CCJ, Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, desde então. Do final do ano passado para cá, os sinais vitais melhoraram. 

O presidente da CCJ, Davi Alcolumbre (DEM-AP), prometeu pautar o assunto na volta do recesso parlamentar, que acontece hoje. 

Uma pesquisa do Congresso em Foco feita no ano passado aponta que 72% dos parlamentares concordam que a reforma tributária deva aumentar impostos sobre tabaco e seus derivados. É o maior índice de apoio entre os produtos que fazem mal à saúde. 

A maioria da população enxerga o aumento de impostos sobre os cigarros como uma forma de desestimular o tabagismo. Segundo o Instituto Datafolha, 68% dos brasileiros são favoráveis à medida. O número alcança 79% quando se leva em conta somente as pessoas com ensino superior no país.

Por Maíra Mathias

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