Foto: Lucas Guarnieri Marteli

Não culpe a pandemia e a guerra pela inflação dos alimentos no Brasil

Hegemonia do agronegócio, governo ausente, câmbio alto e crise econômica criam tempestade perfeita para tornar a comida mais cara

Lista na mão, semblante tenso, postura hesitante e carrinho vazio: a ida ao supermercado tornou-se um momento delicado para muitos brasileiros. Fantasma de um passado não tão distante, foi chegando sorrateira até se instalar de vez como uma realidade concreta na mesa: a inflação está de volta. E vem atingindo com mais força os alimentos.   

A justificativa de que a alta dos preços é um fenômeno global vem sendo repetida à exaustão pelo governo de Jair Bolsonaro, reverberada por seus apoiadores e também por boa parte da imprensa brasileira. Mas é possível culpar a pandemia, o comportamento das commodities e a guerra na Ucrânia pelo descontrole da inflação dos alimentos no Brasil?

O que a cenoura, a batata, as frutas, a carne, o açúcar, o óleo de soja e o café produzidos e consumidos aqui têm a ver com isso? Como explicar uma inflação que parece fora de controle no país que é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo? Em 16 anos, os alimentos acumulam alta de 230%, bem acima dos 141,5% registrados pelo IPCA neste mesmo período. 

Embora tenha impactado os preços por aqui, o cenário internacional não dá conta de explicar características próprias da inflação brasileira. A dinâmica de formação dos preços dos alimentos está relacionada, em grande medida, a fatores internos. 

Política cambial, primarização do comércio exterior, desindustrialização, saldo da balança comercial, concentração de terra e mercado de commodities podem soar como um balaio sortido de um economês incompreensível para a maioria das pessoas. 

Mas é o conjunto desses fatores e a interrelação entre eles que impacta, direta ou indiretamente, o preço e a disponibilidade da comida que chega na mesa. Ou seja, o buraco é bem mais embaixo. E, sem entender esse buraco, não há como sair dele. Aliás, no curto prazo não há nada no horizonte que permita ter otimismo quanto ao fim desse ciclo inflacionário.

“São dois problemas conexos, mas distintos. Existe um problema conjuntural externo e existe um problema estrutural brasileiro na própria relação do Brasil com o mundo”, avalia Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). “Do ponto de vista conjuntural, essa chamada volatilidade dos preços agrícolas não é nenhuma novidade, isso sempre houve. Você tem ciclos de ascensão dos preços externos, depois ciclos descencionais. O problema brasileiro essencial é que, há pouco mais de duas décadas, o país ingressou em um chamado movimento de primarização do seu comércio exterior. Esse é o nó da questão”. 

Em linhas gerais, a condução do Brasil de volta ao destino histórico de país exportador de produtos primários (agrícolas e minérios), somado aos efeitos perversos de uma política econômica neoliberal ao longo dos últimos seis anos, tornaram essa nova pressão inflacionária muito maior que uma onda, mas um tsunami de efeitos devastadores e consequências de longo prazo.  

Em março, o índice de preços de alimentos da ONU, calculado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), atingiu um novo pico, chegando ao pior resultado desde 1974. 

O Brasil já aparecia entre os países em desenvolvimento com as piores expectativas de inflação em todo o mundo, segundo projetou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDEem setembro do ano passado. A projeção não apenas se confirmou, como deve se agravar em 2022. 

Em abril, o Brasil teve a pior inflação para o mês desde 1996, período de implementação do Plano Real. No ano, o IPCA acumula alta de 4,29% e, nos últimos 12 meses, de 12,13%, todos os indicadores muito acima dos resultados anteriores. As maiores altas foram dos transportes, seguido pelo grupo de alimentos e bebidas. 

Brasil enfrenta inflação de alimentos há 15 anos

Para entender por que, mesmo sendo o maior exportador líquido de alimentos do mundo, o Brasil enfrenta uma alta descontrolada no preço da comida, é preciso dar alguns passos atrás e olhar o quadro como um todo. E o cenário que se revela não é nada bom. 

Um dos nove grupos que compõem o IPCA é o Índice de Preços de Alimentos e Bebidas (IPAB). Ele se divide entre alimentação fora de casa e no domicílio, que, por sua vez, se subdivide em itens (carne, legumes, etc) e subitens (músculo, cenoura, etc). Quando o IPAB sobe acima do IPCA, temos a inflação dos alimentos. 

Esse processo se agravou durante a pandemia, mas já vem sendo registrado de forma consistente desde 2007 no Brasil, revertendo tendência anterior de queda. 

Historicamente, as flutuações nos preços dos alimentos são comuns. O que muda é a capacidade de cada país em absorver esse impacto e manejar a política econômica no sentido de proteger o mercado interno e garantir que a comida chegue à mesa. 

Entre os anos 1960 até o começo dos anos 2000, os alimentos vinham se tornando gradativamente mais baratos no Brasil e no mundo. Depois disso, foram dez anos de alta. 

“Esse aumento dos preços dos alimentos começou no Brasil por volta de 2007. No mundo, isso já estava se manifestando anteriormente, em 2003. Só que entre 2003 e 2011 a moeda brasileira tendeu a se valorizar, uma valorização considerável”, explica José Giácomo Baccarin, professor da Unesp e membro do Instituto Fome Zero, organização criada em outubro de 2020 para promover e apoiar políticas de combate à fome.

“A partir de 2011 e até 2018 o índice de preços da FAO começa a cair, mas a moeda brasileira vai na contramão: começa a se desvalorizar”, acrescenta o professor, que coordena uma pesquisa sobre a inflação dos alimentos no Brasil. 

De fato, os efeitos dessa pressão inflacionária no bolso do consumidor foram bem distintos ao longo dos últimos 15 anos e se relacionam com os rumos da política macroeconômica e o desempenho da economia. Olhando o comportamento da inflação no Brasil, é possível distinguir três momentos. 

Entre 2007 e 2014, a alta dos alimentos foi compensada pelo real forte. “O câmbio pode acirrar ou diminuir essa transição para o mercado interno. Se você tem um processo de valorização da moeda nacional, os preços externos são transmitidos mais fracamente para os preços internos. Se você tem uma desvalorização, os preços externos são transmitidos mais fortemente para o mercado interno”, explica Baccarin. 

Entre os anos 1960 até o começo dos anos 2000, os alimentos vinham se tornando gradativamente mais baratos no Brasil e no mundo. Depois disso, foram dez anos de alta.

Real forte, emprego e renda compensaram alta até 2014

Além da questão cambial, a inflação dos alimentos até então era compensada por uma série de fatores:

  • índices de geração de emprego e melhoria na renda
  • política de reajuste do salário mínimo acima da inflação
  • programas como o extinto Bolsa Família
  • mecanismos regulatórios, como os estoques públicos de alimentos 
  • uma série de políticas voltadas à segurança alimentar. 

Entre 2015 e 2019, com o agravamento da crise econômica e o início de uma trajetória de forte desvalorização do real, os consumidores passaram a sentir essa alta com muito mais força. O enfraquecimento dos setores industrial e de serviços no Brasil, somado à condução ultra liberal da economia e ao desmonte de políticas públicas, criaram a tempestade perfeita. 

A chegada da pandemia, em 2020, e um novo ciclo de alta global dos alimentos, e a instabilidade nos mercados internacionais com o novo conflito mundial, encontram um Brasil de pires na mão. 

Entre janeiro de 2020 e março de 2022, quatro grupos de preços tiveram aumentos acima da inflação. Enquanto o IPCA subiu 18,9% neste período, o grupo alimentação e bebidas liderou a alta, com 30,21%, seguido dos transportes (+26,91%), artigos de residência (+24,15%) e habitação (+20,9%).

Durante a pandemia e até março passado, os alimentos que subiram de preço num ritmo muito acima da inflação geral, já num patamar bem alto, foram tubérculos, raízes e legumes (+126,3%); óleos e gorduras (+95,4%); hortaliças e verduras (+80%); frutas (+46,3%); cereais e leguminosas oleaginosas (+43%), aves e ovos (+40,4%); açúcares e derivados (+35,6%); leite e derivados (+32,8%) e carnes (+30,9%).    

A alta do óleo de soja, das aves, das carnes e mais recentemente das frutas está diretamente relacionada à exportação desses alimentos e/ou insumos. Mas, como explicar o comportamento dos demais alimentos produzidos e consumidos por aqui? 

Mais soja, milho e cana, menos arroz e feijão

Quanto mais lucrativas se tornam as commodities (soja, milho, cana de açúcar e carne, por exemplo), a pressão sobre o uso da terra aumenta. Os grãos para exportação competem diretamente com a produção de alimentos para o consumo interno. Sobra menos espaço para arroz, feijão, mandioca e companhia.  

Isso explica o paradoxo de assistirmos a sucessivos recordes na exportação de alimentos durante os dois anos da pandemia. Enquanto poucos exportadores comemoram lucro recorde com o dólar acima dos R$ 5 em 2020 e 2021, mais da metade da população passou a viver com algum nível de insegurança alimentar, e 19 milhões passam fome. A inflação dos alimentos é especialmente perversa porque atinge a população de forma desigual: quanto menor a renda, maior é o impacto da alta no preço da comida. 

Nos Estados Unidos, país que tem grande produção de alimentos e muita terra agricultável, a inflação dos alimentos também aumentou acima da média durante a pandemia, mas em um ritmo bem menor. “Alimentos e energia são mais vulneráveis aos choques conjunturais, como questões climáticas e a pandemia, por exemplo. Mas, no longo prazo, tende a acompanhar a inflação geral porque os preços oscilam, mas voltam a cair porque a razão da subida é um choque temporário”, explica o professor Valter Palmieri Jr, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp

Nos últimos 15 anos, a inflação dos alimentos nos Estados Unidos subiu 5% acima da média geral de preço, enquanto por aqui essa alta foi de 37%. Isso significa que um alimento que custava US$ 10 em 2006, hoje vale US$ 15. No Brasil, um produto vendido a R$ 10 há 15 anos hoje custaria R$ 33. 

“Os Estados Unidos são grandes exportadores de alimentos e também grandes importadores. Eles têm capacidade de renda pra isso. Fica no país mais alimento do que eles produzem, ou seja, a exportação líquida é negativa. No Brasil se produz muito alimento, mas fica pro brasileiro muito menos do que é produzido. Essa é a diferença”, acrescenta Palmieri Jr. 

A carne é um dos exemplos que sintetiza essa relação do câmbio sobre os alimentos. Quando o real se desvaloriza frente ao dólar, a ração sobe e os custos de produção aumentam, assim como o preço dos animais. Para quem fornece carne para o mercado interno, há dificuldade em repassar esse aumento para um consumidor empobrecido e sem poder de compra. Para o exportador, o custo de produção mais alto é mais do que compensado pela disparada do dólar.

A inflação dos alimentos é especialmente perversa porque atinge a população de forma desigual: quanto menor a renda, maior é o impacto da alta no preço da comida.

A moeda desvalorizada acaba sendo o gatilho para que a oferta deste alimento no Brasil diminua. Soma-se a isso o efeito do câmbio no preço dos combustíveis e, portanto, fretes mais caros. O que afeta também o preço do gás de cozinha, que já acumula alta de 32,34% nos últimos doze meses, segundo o IPCA.

Processo semelhante vem acontecendo com as frutas. Foram dois anos seguidos de recordes de exportação, enquanto o consumo dos brasileiros despencou, como já mostramos no Joio. As frutas estão entre os grupos de alimentos que mais subiram de preço neste período.  

“Estamos sujeitos aos preços internacionais porque não há nenhuma política para tentar amenizar essa transferência para o mercado interno. Isso poderia ser feito, especialmente quando os preços dão esse repique, via imposto de exportação ou via controle cambial”, sugere o professor Baccarin. 

A carne também é um exemplo sintomático pelo peso que exerce no orçamento das famílias. Foi a vilã da inflação até 2019. Em 12 anos, o preço da carne subiu 274%, muito acima da inflação geral acumulada no período, que foi de 103%. 

“O arroz participa com 3,5% da alimentação no domicílio, ou seja, o que a gente compra pra casa. A bovinocultura de corte participa com 18%. Portanto, se há um aumento no preço do arroz e da carne na ordem de 10%, o impacto sobre os gastos vai ser muito mais alto no caso da carne”, explica Bacccarin. 

Soma-se a isso um efeito secundário deste processo: a substituição por cortes mais baratos e a procura maior pela chamada carne de segunda faz com que os preços desses alimentos, voltados ao mercado interno, também disparem. Foi o que houve com o músculo (+201%), acém (+181%) e o fígado (+115) nos últimos dez anos, entre 2011 e 2021. 

Em 12 anos, o preço da carne subiu 274%, muito acima da inflação geral acumulada no período, que foi de 103%.

A comida in natura foi a que proporcionalmente tornou-se mais cara, estimulando que o consumidor com menor renda faça substituições de menor valor nutricional, em um processo já em curso, mas que se acelerou durante os últimos dois anos. Os alimentos frescos ou minimamente processados foram responsáveis por 70% da inflação total da comida que se compra no supermercado ou na feira e se come em casa, entre janeiro de 2021 e março de 2022. Esse grupo se refere a uma centena de alimentos diferentes e essenciais na dieta da população. 

Açúcares e derivados de soja, os maiores vilões da inflação nos últimos dois anos, também registraram alta expressiva de preço. Mas o impacto desses alimentos na composição do orçamento com comida é muito menor do que os demais produtos da cesta alimentar. 

Neste mesmo período, os ultraprocessados também subiram de preço, mas em um ritmo muito menor, tornando-se, portanto, proporcionalmente mais baratos. É o que vem acontecendo, por exemplo, com a substituição da manteiga pela margarina, dois produtos absolutamente diferentes, mas que concorrem no mesmo mercado em condições desiguais, como já mostramos no Joio. Enquanto a margarina usa como matéria-prima uma combinação de óleos vegetais mais baratos e sem tanto oscilação de preço, a manteiga é feita exclusivamente da gordura do leite, alimento cuja produção é totalmente voltada para o mercado interno e, portanto, sem os mesmos incentivos que o milho e a soja. Soma-se a isso, o fato de que dois conglomerados – BRF e JBS – concentrarem mais de 80% do mercado de margarinas, com maior poder de barganha na compra de matérias-primas e maior capacidade de investimento. 

Agro, a indústria pobreza do Brasil

Maximizado por diferentes mecanismos de incentivos e por uma política cambial que deu as costas para os interesses do povo brasileiro, o agronegócio exportador deu as mãos para o mercado financeiro e tornou-se a maior e mais poderosa força econômica e política no Brasil hoje. Não por acaso segue investindo em narrativas que tentam limpar a barra do setor e desassociá-lo da origem do problema. 

Porém, todos os caminhos levam ao agro. 

“O que diferencia a decisão de investimento dos agricultores é o tamanho do mercado. Soja tem um mercado de 7 bilhões de habitantes. Feijão, você está pensando em um mercado de 220 milhões, um pouquinho mais. Isso inibe investimento em produtos que são para o mercado interno. O Brasil tem tradição, tem conhecimento e tem tecnologia. A Embrapa poderia ser chamada. Teria que recuperar a assistência técnica que foi destruída neste país. Ter crédito pra esse tipo de agricultor. E trabalhar com o aumento no consumo desses produtos”, sugere Baccarin. 

Mas exportar alimentos é necessariamente ruim? Depende. Na opinião de Guilherme Delgado, a centralidade do agronegócio exportador no Brasil do século 21 criou uma “arapuca macroeconômica”. Ele explica que na medida em que demais setores da economia foram atrofiados para privilegiar os saldos gerados pela exportação de produtos agropecuários, cria-se um desequilíbrio estrutural que impacta os produtos voltados para o mercado interno, inclusive os alimentos. 

Em conjunturas de crise internacional como a que vivemos agora, esse desequilíbrio se agrava. “O sistema econômico está sendo planejado para crescer a ritmos desiguais. Uma parte do sistema que produz commodities tem um estímulo macroeconômico exacerbado. E setores que não produzem commodities ficam atrofiados”, explica Delgado. “Essa dupla balança – uma catapultada, outra atrofiada – faz com que quanto mais eficiente seja esse processo de ajuste, entre aspas, das contas externas, maior seja a defasagem de crescimento entre o setor produtor de commodities e o de não commodities e aí entram os produtos para abastecimento interno, como os alimentos”, acrescenta o economista.   

Com isso, a balança comercial brasileira torna-se cada vez mais dependente dos resultados das exportações agropecuárias, em uma tentativa de compensar o mau desempenho e o esvaziamento de outros setores importantes da economia, como a indústria, infraestrutura e os serviços, muitos dos quais privatizados e entregues ao capital estrangeiro nos últimos anos no Brasil. 

Para Delgado, se o agronegócio brasileiro é tão autossuficiente como se propaga, deveria funcionar sozinho, sob as regras de mercado. “O agronegócio tem que exportar e não há nada contra isso. Mas o que ele não tem é que ser o setor especializado na exportação em uma economia desse tamanho, com 220 milhões de brasileiros que precisam comer todo dia.” 

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