O Joio e O Trigo

Brasil avançou pouco em alimentação saudável, diz ex-ministro petista

Figura central na campanha de Lula e ministro da Saúde no governo Dilma, Alexandre Padilha diz que regulação de ultraprocessados parou no Congresso e é preciso melhorar acordos voluntários com indústria

A alimentação é sem dúvida um dos principais temas destas eleições. Afinal, 33 milhões de brasileiros passam fome e 125 milhões fazem malabarismos para conseguir colocar comida na mesa. E, no entanto,  aspectos importantes dessa discussão parecem estar fora do radar dos candidatos à Presidência. É o caso da regulação de produtos ultraprocessados, agenda que já avançou em países como Chile, Peru, Uruguai, México e Argentina, mas, por aqui, caminha como naquele samba do Martinho da Vila: “devagar, devagarinho”.

Do ponto de vista do governo federal, o último passo decisivo nesse sentido foi dado em 2014, com a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, pelo Ministério da Saúde. O guia se baseia na classificação nacional conhecida como NOVA, que revolucionou o debate sobre nutrição no mundo ao cunhar o termo ultraprocessados – produtos que, como recomenda o Guia, devem ser evitados por serem prejudiciais à saúde.

Para debater alguns desses assuntos, esquecidos no contexto eleitoral, conversamos com Alexandre Padilha, um dos responsáveis pelas propostas de saúde da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência mais bem colocado nas pesquisas.  

Deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e candidato à reeleição, Padilha foi ministro da Saúde no governo Dilma Rousseff em um momento-chave da agenda da regulação dos ultraprocessados. Foi ele quem levou para a pasta parte da equipe responsável pela criação da NOVA, mas, ao mesmo tempo, sua gestão promoveu acordos voluntários com a indústria, considerados problemáticos por especialistas.

O primeiro desses acordos, sobre gordura trans, foi firmado na gestão de José Gomes Temporão. Na gestão de Padilha, esse acordo não foi monitorado. Literalmente, sumiu – como o O Joio e O Trigo mostrou. E, no período, a pasta firmou outros dois acordos: sódio e açúcar.

Questionado se essa composição com a indústria continuaria sendo uma aposta num eventual governo Lula, Padilha defende que se coloque os pés em duas canoas: acordos voluntários e regulação. Segundo ele, “o ideal é regulação” mas “depende muito da correlação de forças no Congresso”. Ele argumenta ainda que é preciso avançar no monitoramento dos acordos, com “envolvimento de universidades e redes de pesquisa”.

O ex-ministro também falou sobre o problema da fome e da piora do padrão alimentar como “duas faces da mesma moeda que [Jair] Bolsonaro impôs ao povo brasileiro”, mas admite que “alimentação saudável é um dos temas em que o Brasil não avançou muito” – mesmo nos governos do PT.

Confira a entrevista.


Em uma reportagem publicada ano passado, o Joio mostrou que o primeiro acordo voluntário com a indústria não teve monitoramento por parte do Ministério da Saúde. Feito em 2007, e renovado em 2010, na gestão José Gomes Temporão – deveria ter sido reavaliado em 2013, já na sua gestão, mas isso nunca aconteceu. Em paralelo, outros acordos foram firmados. Hoje, tanto especialistas quanto a própria Opas [Organização Pan-Americana da Saúde] têm uma leitura de que essa via do voluntarismo não é tão efetiva quanto a via da regulação. Qual a sua visão sobre isso?

Eu concordo com essa avaliação. O ideal é regulação. Mas, ao invés de ficar cinco, seis anos lamentando que a gente não consegue avançar na via da regulação no Congresso, em paralelo, podemos buscar outros mecanismos que possam fazer avançar. Aprimorar os acordos é exatamente aprimorar o monitoramento. Acho que a gente pode avançar muito, criar participação ativa da rede de pesquisa e construir soluções mais claras, mais evidências… Eu acho que a gente precisa avançar das duas maneiras: no Congresso Nacional – mas, para isso, precisa de voto, precisa que as pessoas discutam isso com mais firmeza quando forem votar para deputado e senador. E, em paralelo a isso, buscar melhorar os mecanismos de monitoramento dos acordos voluntários. Não digo nem voluntários porque a indústria sabe também que, quando o governo assume a construção do acordo, ela sabe que está diante de um ator institucional que tem mecanismos – através da Anvisa, de agências reguladoras, capacidade de diálogo com a sociedade – para ações regulatórias coercitivas que façam com que os acordos sejam cumpridos. Ali era uma agenda de primeiros acordos sendo construídos, mas a gente pode avançar mais no monitoramento efetivo, e com envolvimento de universidades e redes de pesquisa, que não tinha na época.

A essa altura, a gente já tem tantos exemplos concretos de países que investiram na regulação –  Chile, Peru, Uruguai, México – e até a Argentina, que fez pressão no Mercosul contra a adoção da rotulagem, aprovou regulação nesse sentido. A impressão é de que o Brasil está ficando para trás quando poderia ter sido vanguarda, tanto pela capacidade científica, já que a classificação NOVA é fruto da ciência nacional, quanto pelo próprio Guia Alimentar, que inspirou o Uruguai a fazer o seu próprio e, junto, regular os ultraprocessados. Esses esforços aconteceram também em contextos com correlações de forças não favoráveis, caso do México, que aprovou impostos sobre bebidas adoçadas no governo do [Enrique] Peña Nieto, de direita. Você acha que é mais difícil no Brasil? O que caracteriza exatamente o nosso problema?

Porque o sistema político é completamente diferente nesses países. Em todos esses países que você citou, ao ganhar a eleição, o presidente conquista a maioria do Congresso. São raras as situações em que essa coalizão [vencedora] não tem a maioria do Congresso.

Infelizmente, o sistema político brasileiro tem um grau de fragmentação partidária, do ato do voto, distribuição não proporcional em relação aos estados, que é completamente diferente.

Então eu credito essa situação exatamente a isso que você falou: não falta no Brasil produção acadêmica sobre isso, não faltam no Brasil políticas públicas tanto no governo federal quanto nos municípios, não falta sistema universal de saúde ou de assistência social, mas falta no Brasil uma correlação de forças no Congresso que possa ser favorável à aprovação de medidas regulatórias nesse sentido.

As pessoas precisam saber que não são o presidente, o governador ou o prefeito que vão tomar essa decisão – sobretudo quando é de agenda regulatória. A gente precisa de um Congresso Nacional que pense diferente.

Mas acho que é possível, sou sempre um otimista, e sou parlamentar porque acho que esse é um espaço que precisa ser disputado. Mas depende muito da correlação de forças no Congresso para a gente poder avançar, e alimentação saudável é um dos temas em que o Brasil não avançou muito.

O que teria mais chances de avançar, pensando em regulação?

No ambiente do Congresso Nacional, a agenda da primeira infância tem hoje um apelo muito grande. Reforçar a associação da agenda de alimentação saudável com a agenda da primeira infância pode ser uma forma de quebrar resistências e vencer interesses econômicos dentro do Congresso Nacional.

Temos condições, sim, de avançar na regulação do ambiente escolar. Tem algumas cidades e estados que já avançaram nisso, e acho possível avançar nas escolas e ir para outros espaços.

Eu acho que se tem maioria hoje no Congresso Nacional para avançar na tributação de bebidas alcoólicas, de tabagismo e talvez de agrotóxicos. Agrotóxicos talvez a gente não tenha ainda maioria, mas acho que ela pode ser construída.

Eu acho que nós podemos fazer um debate sobre taxação de bebidas açucaradas. Não é um debate que a gente tenha a maioria no Congresso Nacional hoje, por lobbies relacionados a algumas indústrias e também a regiões do país, como a Zona Franca de Manaus. Mas eu acho que a gente pode fazer um esforço e avançar nisso.

E a gente não pode desistir de buscar a regulação da publicidade e garantir uma boa rotulagem. A oportunidade que nós temos é a ligação dessa agenda com a primeira infância.

O Guia Alimentar para a População Brasileira começou a ser construído na sua gestão no Ministério da Saúde, mas foi lançado alguns meses depois da sua saída da pasta para disputar o governo de São Paulo. Arthur Chioro, ministro à época do lançamento, relatou ao Joio que sofreu pressão da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) para não lançar o documento baseado na classificação NOVA, que separa os alimentos pelo grau de processamento industrial e recomenda que se evite o consumo de ultraprocessados. Você sofreu algum tipo de pressão da indústria?

Eu nunca sofri pressão. Nós sabemos que tinha setores que eram contra a afirmação do Guia Alimentar. Contra a postura firme do Ministério da Saúde. Contra a gente dar publicidade para a classificação NOVA e informar a população, formar profissionais do SUS e orientar também a formação de futuros profissionais de saúde.

Eu acredito que o grande temor da indústria de ultraprocessados reside no didatismo da classificação, na grande potência que ela tem de traduzir de forma muito prática o que é alimentação saudável. Seja para o agente comunitário de saúde, seja para a pessoa que está no supermercado escolhendo o que vai comprar para comer ou a equipe responsável pela alimentação escolar…

Eu nunca recebi pressão, mas sabia que tinha setores que eram contrários a isso – o que, em nenhum momento, fez com que a gente recuasse nos passos para a preparação do Guia Alimentar, com debate público e consulta pública. Quando ele vai para publicação [em novembro de 2014, já na gestão Arthur Chioro], o Guia já tem uma grande rede de apoio. E, até hoje, acho que é um dos instrumentos mais efetivos do SUS e da promoção da alimentação saudável.

Durante o governo Bolsonaro, houve pressão para derrubar o Guia, ou pelo menos a parte dele que recomenda evitar ultraprocessados. Essa campanha foi encampada pelo Ministério da Agricultura, mas não foi à frente. Num eventual governo Lula, haveria espaço para que o Guia fosse usado pelo Executivo como base para medidas regulatórias direcionadas a essa indústria, como o Uruguai fez quando publicou um guia semelhante – inspirado, aliás, no Guia brasileiro?

Em primeiro lugar, só queria reforçar que o Ministério da Agricultura não só encampou, como fez uma campanha fortíssima –inclusive de tentar, via Congresso Nacional, aprovar mudanças em relação ao Guia. Uma campanha que se utilizou dos materiais e dos conhecimentos de setores econômicos que têm interesse na produção e na comercialização dos ultraprocessados. Na condição de deputado, afirmo como foi importante haver atuação da sociedade civil. Tivemos audiências públicas. Este governo quis esvaziar o Guia e acabou com qualquer política do Ministério da Saúde de promoção do Guia e formação de profissionais a partir dele.

Em segundo lugar, acho que temos um grande desafio para o próximo período – um desafio que eu acredito que só o presidente Lula tem condições de enfrentar. Nós temos como prioridade absoluta no próximo governo do presidente Lula o enfrentamento de duas faces da mesma moeda que Bolsonaro impôs ao povo brasileiro: a fome e a piora do padrão alimentar.

De um lado, mais de 30 milhões de pessoas estão passando fome no Brasil. Mas, às vezes, as pessoas vêem o problema da fome e acabam não vendo a outra face, de piora muito preocupante do padrão alimentar. E piorou porque com a perda de renda, com o aumento do preço de gás, com a inflação de alimentos in natura você acaba tendo uma migração, por parte da população, para ultraprocessados – produtos que precisam de menos gás para cozinhar, produtos que se consegue em cestas básicas e nem sempre são os mais saudáveis.

Para [enfrentar] isso, vamos ter que recuperar políticas públicas exitosas que já fizemos – apoio à agricultura familiar, assistência técnica, alimentação escolar, política de estoques via Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], assistência social… E voltar a dar publicidade ao Guia Alimentar. Defendo, até pela minha experiência como professor, que a gente tenha uma ação mais ofensiva para a formação dos profissionais de saúde a partir do Guia. E temos que reconstruir o NASF [Núcleo de Apoio à Saúde da Família, cujo incentivo financeiro foi extinto em 2020]. O Ministério da Saúde acabou com o recurso federal específico para a contratação de nutricionistas.

E acho que a gente tem que avançar, sim, seja nas medidas regulatórias, seja em outras medidas. No Ministério da Saúde nós tínhamos muita dificuldade de avançar no Congresso Nacional sobre a agenda de rotulagem e de propaganda para a primeira infância, não conseguimos avançar com a taxação de bebidas açucaradas…

Quando você estava à frente do Ministério da Saúde houve tentativas para avançar com essa agenda?

Sim.

Apresentando projetos de lei?

Já existiam vários projetos de lei. Eu, como já tinha estado à frente da coordenação política [Padilha foi ministro da Secretaria de Relações Institucionais no segundo governo Lula], sabia que, às vezes, você consegue avançar mais com um projeto que já esteja lá no Congresso do que com um outro projeto do governo, porque você dá o protagonismo para o parlamentar. Nós tentamos avançar com essa agenda, tinham vários projetos de lei no Congresso naquele momento.

Então, como opção, nós construímos o chamado acordo voluntário com a indústria – que foi uma opção feita por outros países e recomendada pela Opas [Organização Pan-Americana de Saúde]. Acho que foi um acordo positivo, no sentido de estabelecer metas de redução de sal, de gordura trans nos alimentos – mas a gente pode avançar muito mais.

Já se passaram mais de dez anos desde o primeiro acordo que o Brasil fez. Tem avanços em outros países.

Eu acho que o Brasil poderia buscar avançar: continuar tentando, no Congresso Nacional, uma agenda regulatória com leis que possam ser mais efetivas em relação à publicidade de alimentação não saudável, avançar na rotulagem, etc. – mas, paralelo, buscar aprimorar o monitoramento dos acordos.

Tem muito para a gente avançar na promoção da alimentação saudável. 

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