Foto: Wenderson Araujo

Mudanças climáticas e falta de planejamento público: por que entender a inflação da cenoura é importante

Afetada por temporais e geadas, a produção de um dos alimentos mais triviais na mesa dos brasileiros vai da escassez total ao excesso, e deixa os agricultores em situação difícil

Um alimento até então trivial na mesa do brasileiro ganhou notoriedade inédita no começo deste ano: a cenoura esteve no noticiário, nos memes na internet e no pescoço de Ana Maria Braga depois de bater R$ 15 o quilo entre os meses de fevereiro e abril. 

Entender o que houve com o preço da cenoura é ter uma ideia do cenário desafiador que se avizinha para a produção de alimentos no Brasil nos próximos anos. São fatores que vêm atingindo de um modo geral os preços dos alimentos in natura e minimamente processados, mas que afetam de uma forma bastante específica os hortifrutis. 

O pico observado no começo do ano fez com que o tubérculo liderasse por alguns meses a inflação dos alimentos medida pelo IPCA. Em fevereiro, o preço da cenoura subiu 55%. Em março, o aumento foi de 31,47%. Em abril, a cenoura acumulava alta de 166% em doze meses. 

É verdade que o aspecto sazonal da produção desses alimentos causa uma esperada flutuação de preço, mas o caso da cenoura merece destaque pela dimensão do problema e por acender um alerta vermelho para o que está acontecendo no campo. 

Verduras, legumes e tubérculos são alimentos de cadeia curta, voltados para o mercado interno, com custo alto de produção comparado a outras culturas. E que trazem muitos riscos para o agricultor. Riscos ambientais, mas também mercadológicos: enquanto grãos podem ficar guardados por meses à espera do melhor preço, esses alimentos perecem em poucos dias.

O motivo mais evidente da alta recorde da cenoura foi uma grave crise de oferta causada por um volume de chuva nunca visto em 40 anos. Entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano, um temporal atingiu Minas Gerais e São Paulo, regiões que produzem este alimento em larga escala e abastecem boa parte do país.  

Além da perda da cenoura que já estava na terra, o solo encharcado impossibilitou novos cultivos. Isso causou um vazio na oferta, como explica Claudinei Barbosa, diretor técnico operacional da Ceasa Campinas. “Não bastasse o comprometimento da qualidade de toda aquela que estava no chão no meio de janeiro para a colheita, inviabilizou qualquer possibilidade de plantio por cerca de 20 a 30 dias. Houve comprometimento daquilo que teríamos para o comércio em janeiro e fevereiro, uma perda de qualidade absurda a ponto de reduzir 70% da oferta.”

A cenoura leva entre 90 a 120 dias para ser colhida. Os efeitos do excesso de chuvas sobre a produção só foram sentidos alguns meses depois. “No final de fevereiro e março, tivemos falta do produto, ainda que já não estivéssemos no ciclo da chuva, mas sob os seus efeitos. Isso fez com que ela permanecesse por volta de 60 dias como desencadeante de alta de preços no varejo”, acrescenta Barbosa. 

Com a queda brusca na oferta de cenoura nos mercados, o preço subiu na mesma proporção. A cenoura chegou a ser vendida em algumas localidades por até R$ 20 o quilo.

Custo mais alto, menos plantio  

Mas o temporal na virada de 2021 para 2022 foi apenas um “tiro de misericórdia” em uma cultura que já estava no vermelho. “O custo de produção das hortaliças e do agronegócio como um todo sofreu muito com a questão cambial. Todos os insumos, fertilizantes, agrotóxicos, sementes, combustível e energia elétrica subiram. Como a política atual do atual governo é indexada ao dólar e ao mercado internacional, isso fez com que os custos de produção se tornassem elevados”, explica Marisson de Melo Marinho, gerente de Mercados Hortigranjeiros e da Sociobiodiversidade da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Soma-se ao impacto da alta do dólar o aumento no preço da energia elétrica (utilizada para a irrigação das lavouras) em consequência da crise hídrica causada pela estiagem prolongada ao longo do ano passado. 

“A cenoura teve um balanço negativo ao longo do ano de 2021. Pegando a média dos nossos produtores, o prejuízo foi da ordem de R$ 12 mil por hectare na média do ano. Isso desestimula os plantios. No primeiro trimestre deste ano se plantou menos cenoura do que no ano passado. Não bastasse isso, que por si só já reduziria a produção, nós tivemos esse excesso de chuvas”, explica Guto Magalhães, superintendente agrícola da Cooperativa Agropecuária do Alto Paranaíba (Coopadap).

A Coopadap reúne os principais produtores do Alto Paranaíba, em Minas, um polo que se formou em torno da cidade de São Gotardo e que hoje concentra parte significativa da produção de hortifrutis em larga escala no Brasil. Produzem cenoura, mas também alho, batata, abacate, cebola. Só de cenoura, são cerca de 1.500 hectares, com produtividade média de 60 toneladas por hectare. Para dar uma ideia do que isso representa, um hectare equivale a um campo de futebol.  

Houve alta de 93% nos custos dos produtores dessa região entre janeiro de 2021 e julho de 2022. 

Custos mais altos e retração no consumo levam o produtor a plantar menos. Esse aumento  de custos se reflete mais rapidamente em cadeias curtas, como a da cenoura, em comparação com outras culturas. “Houve redução de área no primeiro trimestre do ano na ordem de 30%. E 46% mais chuva, com quebra de produtividade da ordem de 27%. Quando se alia essa quebra de produtividade, com redução de área, isso afeta mais do que a metade da produção. Foi o que ocasionou aqueles preços extraordinários”, explica Magalhães. 

A região do Alto Paranaíba é responsável por entre 20 a 25% da cenoura comercializada no Brasil – apenas a Coopadap responde por 7%. A produção dessa região é escoada para todo o Sudeste, Norte e Nordeste. 

Bahia, Goiás e parte da região Sul do Brasil também têm produção relevante de cenoura. “Hoje há quatro ou cinco regiões produzindo em torno de 80% da cenoura do Brasil. E aí você tem um restante da produção que é bastante pulverizada”, acrescenta Magalhães. 

O excesso de chuvas no começo do ano não foi o único desafio para os produtores. Além dos efeitos da estiagem sobre o preço da energia elétrica, as geadas entre julho e agosto, que destruíram plantações de café, milho e cana, também afetaram parte da produção de cenouras. 

“Vivenciamos um advento climatológico muito grave, que foi uma geada generalizada no Arco Sul do Brasil. Passando uma linha do Mato Grosso até o sul do Rio de Janeiro, passando pelo sul de Minas, Sul de Goiás e São Paulo e pegando toda a região sul do Brasil, todos sofreram com as geadas naquelas duas semanas”, observa Marisson de Melo Marinho, da Conab. 

Essas geadas atingiram também o chamado cinturão verde de São Paulo. “Não bastasse o que nós enfrentamos em 2021, um ciclo de longa duração de estiagem, crise hídrica e durante o período dessa crise hídrica, depois de mais de 20 anos, nós sofremos um ciclo triplo de geadas na grande maioria do cinturão produtivo, especialmente o que atende a Região Abastecedora da nossa Central”, observa Claudinei Barbosa, da Ceasa Campinas. 

Preço mais baixo não é exatamente uma boa notícia 

Com o salto histórico no preço no começo do ano, produtores de outras regiões resolveram apostar na cenoura. Esses novos plantios, colhidos três meses depois, somados à regularização nos polos produtores, causaram um excesso na oferta de cenoura. “O resultado são preços muito baixos e prejuízo para o produtor. Se ele tiver um ciclo produtivo de excesso, ele não tem valor econômico. Mas a produção continua sendo cara. E pode acontecer o inverso, você ter um produto altamente valorizado, mas uma baixa demanda de mercado. Em face do risco, muitos produtores têm optado por produzir em áreas menores”, explica Barbosa. 

O preço da cenoura recuou bastante, mas não voltou ao patamar anterior. Em agosto, é possível encontrar o quilo por entre R$ 3 a R$ 4, em média, nos supermercados, feiras e hortifrutis de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. 

A falta de estímulo para a produção desses alimentos, com custos cada vez mais altos e um mercado consumidor empobrecido, tem feito com que esses cultivos diminuam, ao mesmo tempo que a produção de grãos voltados ao mercado externo avançam. Como já mostramos no Joio, é o que vem acontecendo com uma série de alimentos voltados para o abastecimento interno: arroz, feijão, tomate, mandioca e por aí vai. 

Produtores grandes, como os da região de São Gotardo, têm mais fôlego para segurar os períodos no vermelho e consequências de eventos climáticos inesperados. A compensação acontece, em parte, com o cultivo de grãos, necessários para recuperar a saúde do solo. 

O que acontece nesses polos impacta com muita força a oferta e consequentemente o preço. Isso acende um sinal de alerta uma vez que os efeitos das mudanças climáticas já são uma realidade para a agricultura no Brasil. Um mesmo fenômeno pode atingir mais de um polo produtor ao mesmo tempo, como ocorreu com a seca e as geadas em 2021, e desestabilizar todo o sistema alimentar. 

Os 20% restantes da produção de cenoura no Brasil estão pulverizados em diferentes regiões por agricultores familiares, que vêm sofrendo com o desmonte de políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional no Brasil. A agricultura familiar também sofre com uma estrutura tributária que onera o pequeno e privilegia os grandes cultivos de diferentes formas, como já mostramos no Joio.

“Não é uma produção em escala a ponto de chegar para fornecer em Ceasas. É uma produção muito para subsistência. O excedente, muitas vezes é vendido em feiras, que têm um papel muito importante no abastecimento agroalimentar do Brasil”, conclui Marisson de Melo Marinho, da Conab. Agrônomo de formação, ele pondera, no entanto, que é preciso levar em conta as características climáticas e de solo que tornam uma região mais ou menos propícia para determinados cultivos, além da importância de haver uma rede de suprimentos e logística necessária para escoar esses alimentos. 

“Não adianta querer incentivar a cenoura no agreste do sertão do Piauí. É difícil fazer isso no sertão do Ceará. As condições climatológicas não são favoráveis. Mas existem outras regiões que podem ser potencializadas. Por exemplo, a região do Centro da Bahia, o Rio Grande do Sul, a Serra Catarinense, o Campo de Cima da Serra do Rio Grande do Sul, o entorno de Brasília. Potencializar outras áreas que já têm essa característica no seu DNA, já têm cadeias de suprimento”, sugere. 

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