O ESG pode nos salvar do apetite das grandes empresas?

O mercado financeiro trata o ESG como uma revolução. Quem acompanha o passo a passo dessa história aponta fragilidades e risco de se perder de vista uma agenda ampla de sustentabilidade.

Net zero, tripple bottom line, stakeholders, frameworks, demanda top down, unicórnios. Quantas palavras vamos precisar aprender ou ressignificar para decifrar o mundo em que vivemos? 

Nos últimos anos, três letras começaram a aparecer cada vez mais frequentemente nos relatórios de grandes corporações investigadas pelo Joio: ESG. E, de environmental; S, de social; e G de governance. Às vezes a sigla também aparece em sua versão traduzida, ASG. Em muitos casos, ela está substituindo uma palavra que já é uma velha conhecida: sustentabilidade.

O termo “é forjado dentro do mercado de capitais”, explica a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e diretora de mercado de capitais ESG da PwC, Melissa Velasco Schleich. A sigla foi utilizada pela primeira vez no início dos anos 2000, em um relatório do Banco Mundial e do Pacto Global – braço das Organizações da Nações Unidas (ONU) cuja missão é engajar empresas a adotar princípios básicos de direitos humanos, trabalho, meio ambiente e anticorrupção. 

“Mas ela ficou ‘famosa’ só cerca de dez anos depois, quando foi trazida de volta à tona por alguns investidores proeminentes, que começaram a buscar dentre os seus investimentos aspectos não financeiros relacionados à sustentabilidade, seja de âmbito ambiental, social ou de governança”, continua Schleich. “É o que a gente chama de demanda top down.” 

“Não é uma agenda social ou ideológica. Não é ‘justiça social’. (…) Nós nos concentramos em sustentabilidade não porque somos ambientalistas, mas porque somos capitalistas.”

Vamos ver, então, o que tem a dizer sobre ESG quem está no topo. Em uma carta ao mercado, Larry Fink, o CEO da maior gestora de fundos do mundo, a BlackRock, disse o seguinte: “Não é uma agenda social ou ideológica. Não é ‘justiça social’. É capitalismo, conduzido por relacionamentos mutuamente benéficos entre você e os funcionários, clientes, fornecedores e comunidades dos quais sua empresa depende para prosperar. Nós nos concentramos em sustentabilidade não porque somos ambientalistas, mas porque somos capitalistas e fiduciários para nossos clientes.” 

Talvez você não esteja reconhecendo a BlackRock, pois para entender o mundo financeirizado não precisamos só expandir o vocabulário: também precisamos aprender a desvendar quem é quem por trás da teia de megacorporações donas de um sem-fim de marcas. Mas você com certeza já cruzou com a BlackRock por aí. É bem possível que já tenha até dado algum lucro a ela, que é acionista de Ambev, Coca-Cola, Walmart, JBS, Marfrig, Kellogg’s, Bünge, Monsanto e Syngenta. Seus investimentos estão ligados ao desmatamento e à invasão de terras indígenas. Muy sustentable.

“Os próximos 1.000 unicórnios não serão mecanismos de busca ou empresas de redes sociais, eles serão inovadores sustentáveis”, profetizou Fink. Os unicórnios a que ele se refere, por óbvio, não são o animal mitológico: são startups proeminentes e bilionárias. 

“Não se engane, a busca justa pelo lucro ainda é o que anima os mercados.”

O mercado financeiro trata o ESG como uma revolução que pode inaugurar uma nova fase do nosso sistema econômico: o capitalismo de stakeholders. Um modelo no qual as empresas não se preocupariam exclusivamente com seus lucros, mas também com questões ambientais, sociais e de governança corporativa. 

O curioso é que em todos os relatórios lidos para essa reportagem – e não foram poucos – essas questões todas são tratadas como iniciativas que agregam valor de longo prazo à empresa. Valor que se converte em mais prestígio no mercado e, consequentemente, em mais investimentos, que certamente serão convertidos em mais lucro, pois, como bem disse Larry Fink em sua carta: “Não se engane, a busca justa pelo lucro ainda é o que anima os mercados.”

Na prática, muitas dessas questões que estão sob o guarda-chuva do ESG não são novas. Há pelo menos trinta anos discute-se a responsabilização das empresas pelos impactos negativos ao meio ambiente ou à saúde coletiva. A novidade é que agora os investidores resolveram sentar à mesa. Justo agora, quando alguns dos impactos da crise climática que vivemos já atingiram níveis irreversíveis, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). 

Revolucionário ou não, o hype do ESG fez com que as empresas começassem a se movimentar para continuar no jogo – assumindo publicamente o compromisso com o tema e apresentando metas em ESG. Mas, como bem lembrou o ambientalista Fábio Feldmann, em entrevista ao Joio, “uma coisa é assumir o compromisso e outra é fazer”.

“Os grandes desafios em ESG hoje são de fato encontrar métricas comparáveis e confiáveis.”

Essas iniciativas são voluntárias, assim como a divulgação de informações relativas a elas – por exemplo, o andamento da implementação de cada meta – e ainda não há um padrão para a divulgação desses resultados, nem para quais são os indicadores ideais para avaliar a performance das empresas em ESG. Fica quase impossível verificar e comparar os dados divulgados – tanto temporalmente quanto entre diferentes corporações. 

“Os grandes desafios em ESG hoje são de fato encontrar métricas comparáveis e confiáveis. Hoje a gente tem muitas companhias que divulgam eventualmente informações em ESG que não são asseguradas, que não passam por nenhum tipo de certificação ou asseguração de terceiros, ou seja, a confiabilidade da informação é menor do que uma informação financeira – e não deveria”, afirma Schleich, da PwC. 

“A gente está falando aqui de informações que impactam o valor da empresa, que impactam a estratégia da empresa. São informações que deveriam ter o mesmo nível de governança que uma informação financeira.” A solução para o problema seria algum tipo de regulamentação. Debate que, de acordo com ela, vem ganhando fôlego especialmente nos Estados Unidos e na União Europeia. 

Feldmann acompanha a agenda ambiental há décadas. Participou, como deputado federal, da elaboração do capítulo da Constituição de 1988 que trata do meio ambiente. Foi secretário estadual de Meio Ambiente de São Paulo. Participou da fundação da Oikos, da SOS Mata Atlântica, do Instituto GEA, da Fundação Onda Azul e da Global Reporting Initiative (GRI) – uma das várias iniciativas que propõem conjuntos de indicadores para medir o nível de comprometimento das empresas com o ESG, além de normas para a divulgação dessas informações. 

Para ele, “ainda tem muita discussão [sobre] o que é [o ESG], como você verifica, como não verifica. Eu acho que é um tema que veio para ficar, mas ainda leva um tempo para se consolidar”. Em sua visão, o ESG precisa ser encarado a partir das demandas da sociedade, e não das empresas, dando respostas aos grandes desafios da atualidade: da crise climática e perda de biodiversidade à desigualdade social, racial e de gênero. 

“Acreditar que a ampla disseminação da perspectiva ESG esgota a contribuição do setor empresarial no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável é uma perigosa ilusão.”

Um artigo publicado pelo diretor da ABC Associados, Aron Belinky, que também é parte da equipe técnica do Índice de Sustentabilidade Empresarial da bolsa de valores do Brasil (ISE B3), alerta para o risco do que chama de “tsunami ESG” ofuscar uma agenda mais ampla de sustentabilidade. 

Através de uma metodologia própria, com asseguração por terceiros, o ISE B3 pontua as empresas por suas práticas em ESG, reunindo as melhores em uma carteira de ativos que seriam referência. Eis algumas das quase 50 corporações que compõem a carteira em vigor até o fim do ano:

– Braskem, petroquímica que é uma das maiores produtoras de plástico do mundo e cujo ex-presidente foi condenado por corrupção;

– BRF, que acumula infrações sanitárias e produtos com altas doses de aditivos nocivos à saúde;

– Marfrig, diretamente ligada ao desmatamento e a produção ilegal de gado em terras indígenas;

– M. Dias Branco, dona de marcas como Piraquê, Fit Food, Estrela e Vitarella. Um megazord da indústria de ultraprocessados que arrasta mais de três mil processos trabalhistas na Justiça.

A Bolsa já divulgou a entrada da rede atacadista Assaí, Ambev e Hypera Pharma na carteira do ano que vem.


Para Belinky, as premissas e objetivos do ESG podem até convergir com as da sustentabilidade, mas não a substituem. “Acreditar que a ampla disseminação da perspectiva ESG esgota a contribuição do setor empresarial no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável é uma perigosa ilusão”, afirma em seu artigo. 

“Primeiro, porque gera uma sensação de ‘dever cumprido’, enquanto o problema real da crise planetária criada pela falta de sustentabilidade de nosso modelo de produção e consumo continua longe de ser resolvido; segundo, porque ainda é muito grande a imprecisão do que seja ‘um bom desempenho ESG’. Hoje, o rótulo ESG é aplicado sem distinção quanto à qualidade ou efetividade das práticas adotadas”. 

Impossível não se lembrar do relatório Talking Trash, do qual já falamos aqui. A investigação abrange 15 países, de cinco continentes, e elenca táticas da indústria para minar regulações que podem ser desfavoráveis aos negócios. Dentre elas, estão a retenção e manipulação de dados; além da adoção de compromissos voluntários, que em geral não são cumpridos e desviam a atenção do que realmente importa.

Por Mylena Melo

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