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Anvisa abre brecha para circulação de embalagens que não estão adaptadas à nova rotulagem

Decisão sai no dia em que venceu o prazo de adequação e atende a um pedido da indústria. Atas obtidas pelo Joio mostram que Ambev teve ao menos sete reuniões em cinco meses. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor acionará Justiça

A indústria de alimentos ganhou mais um presente de consolação para a adaptação às novas regras de rotulagem. Na última segunda-feira (9) – dia em que a fase mais relevante da implementação entrou em vigor – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou o uso de embalagens estocadas, que não estão em conformidade com as novas regras, até outubro do ano que vem. A resolução assinada pelo diretor-presidente, Antonio Barra Torres, altera a normativa original – discutida desde 2014 e aprovada em 2020 – e prevê um alargamento do prazo de adequação, que já era extenso. 

Desde 2014, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) acompanha as discussões sobre rotulagem, mas dessa vez a sociedade civil foi surpreendida. “Nós, do Idec, não tivemos acesso ao processo e tal condução em segredo levanta a suspeita de que a decisão não atenda à primazia do interesse público”, alerta o diretor de Relações Institucionais do Instituto, Igor Britto, em nota encaminhada ao Joio nesta quarta-feira (11). O Idec vai entrar com uma ação contra a prorrogação de prazo para a implementação das novas regras. “Vamos acionar a Diretoria da Anvisa na Justiça, denunciar eventuais condutas de agentes públicos por desvios de finalidade, se houver, e cobrar a manutenção dos prazos de adequação tal qual haviam sido aprovados”, explica Britto.

Antes da decisão tomada no apagar das luzes, diretores da Anvisa tiveram uma série de encontros com representantes do setor privado. A Ambev, por exemplo, fez uma verdadeira peregrinação na Agência. Entre maio e setembro deste ano, a empresa solicitou pelo menos sete reuniões, com diferentes setores.

Atas obtidas pelo Joio, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que nesses encontros a Ambev pediu mais seis meses para escoar embalagens desatualizadas, que já estavam estocadas. A resolução publicada pela Agência acabou saindo melhor que a encomenda. 

E não é só a Ambev que se beneficia disso: a decisão se aplica a todos os produtos que já estavam no mercado e deveriam estar adaptados às novas regras a partir da última segunda-feira (9). Com a nova resolução, os estoques comprados até 8 de outubro de 2023 poderão circular em desacordo com as novas regras por mais um ano.  

Em uma das reuniões, que aconteceu em junho, representantes da Ambev alegaram à Gerência-Geral de Alimentos que 2,6% do estoque de embalagens de cervejas da empresa não seria consumido dentro do prazo-limite para implementação dos novos rótulos. 

Entramos em contato com a Anvisa, para pedir esclarecimentos sobre a decisão, questionando quem fiscalizará os estoques e a data de compra das embalagens, mas a Agência respondeu por meio de uma nota publicada no site oficial, na qual deixa respostas vagas a essas questões. Diz que “a fiscalização de alimentos e da rotulagem é realizada de forma descentralizada pelos estados e municípios” e orienta o consumidor a acionar as autoridades locais caso desconfie de que uma norma não esteja sendo cumprida. 

“A decisão da Agência considerou, sobretudo, os impactos da pandemia no setor de alimentos, incluindo os desequilíbrios na cadeia logística de suprimentos, bem como a variação do poder de compra dos brasileiros e consequente reflexo no consumo realizado de produtos”, disse a Agência. 

Nas atas obtidas pelo Joio, é exatamente essa a justificativa dada pela indústria ao pedir mais tempo de adequação: os impactos da pandemia no setor. Ironicamente, a própria Ambev alegou ter sido muito afetada pela pandemia – mesmo com os dados mostrando um aumento do consumo de bebidas alcoólicas neste período

Atas de reuniões com representantes da Anvisa e Ambev, obtidas pelo Joio via Lei de Acesso à Informação, mostram que empresa pediu alteração no prazo de implementação da nova rotulagem, alegando impacto da pandemia no setor.

Durante a reunião, representantes da Ambev ainda afirmaram que, se não fossem utilizadas, essas embalagens gerariam R$ 40 milhões em prejuízo e duas toneladas de lixo. Vale registrar que só nos primeiros seis meses deste ano a Ambev teve quase R$ 4 bilhões de lucro líquido. E que ela está em primeiro lugar no ranking feito pela ONG Break Free From Plastic, das empresas que mais poluem o Brasil com embalagens plásticas que não têm a destinação correta. 

De acordo com a ata da reunião, a gerente-geral de Alimentos da Anvisa, Patrícia Castilho, informou à empresa que a decisão sobre esse tipo de excepcionalidade caberia à Diretoria Colegiada da Anvisa. Ainda relatou que “outras situações com esse impacto, motivações e abrangência, foram contextos de negativa”, mas que cada caso seria avaliado individualmente.

A Ambev foi à Anvisa advogar por conta própria, mas não está sozinha na batalha. Sete associações que representam a indústria se uniram para pressionar a Agência a prorrogar a implementação das novas regras. São elas: 

  • Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia)
  • Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad)
  • Associação Brasileira da Indústria e Comércio de Ingredientes e Aditivos para Alimentos (Abiam)
  • Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi)
  • Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir)
  • Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab)
  • Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Essenciais, produtos Químicos Aromáticos, Fragrâncias, aromas e afins (Abifra)

Setor unido

Também em junho, em uma reunião solicitada por essas associações, o diretor de Assuntos Regulatórios e Científicos da Abia, Alexandre Novachi, explicou que o setor se uniu após a publicação de um documento com perguntas e respostas sobre os novos rótulos, publicado pela Anvisa em janeiro. Isso porque “ingredientes alimentares que o setor entendia não serem considerados como fonte de açúcares adicionados pela legislação eram assim apontados no documento orientativo” e “neste impasse, as empresas deste segmento ainda não iniciaram o processo de adequação e sinalizam uma dificuldade de atendimento ao prazo de adequação concedido”.

No entanto, a definição de açúcar adicionado que consta no documento orientativo é a mesma da resolução que estabeleceu as novas regras de rotulagem – aprovada e publicada há 3 anos, e discutida há pelo menos uma década, com participação ativa da indústria. O que há de novidade no documento orientativo são somente alguns exemplos de açúcares adicionados. 

De acordo com a ata da reunião, Patrícia Castilho ressaltou na ocasião que “qualquer mudança de entendimento precisa acontecer em um debate ampliado”. Ainda afirmou que, “como estas associações apontaram que as orientações apresentadas pela unidade podem ter extrapolado os contornos legais”, consultaria a Procuradoria Jurídica. 

Cerca de um mês depois, em julho, a Anvisa promoveu uma reunião sobre o assunto, na qual afirma terem participado mais de 500 representantes da indústria, sociedade civil, universidades e órgãos da administração pública federal. Na ocasião, o coordenador de Padrões e Regulação de Alimentos (Copar) da Anvisa, Rodrigo Martins de Vargas, expôs que empresas de consultoria em assuntos regulatórios e outras associações, como a Viva Lácteos, também questionaram a definição de açúcar adicionado. 

Vargas listou uma série de argumentos apresentados pela indústria, que incluem insegurança jurídica, falta de informação sobre açúcares adicionados em insumos adquiridos junto a fornecedores, necessidade de exclusão de alegações como “zero açúcar” do rótulo e de correção da tabela nutricional, que “seria o principal impacto, porque muitos alimentos teriam que aumentar a quantidade declarada de açúcares adicionados”. 

Ele ainda relata que “foi argumentado que as orientações que foram emitidas não estão alinhadas às definições internacionais, sendo mencionadas especificamente as definições dos Estados Unidos, da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), da Colômbia, do México e da Argentina”. O que é curioso, uma vez que essas mesmas associações fizeram de tudo para boicotar o modelo de rotulagem recomendado pela Opas e adotado em Colômbia, México e Argentina. Outra batalha que a indústria também venceu: o Brasil é um dos poucos países latino-americanos que não usa o modelo de alerta sugerido pela Opas, nem os critérios usados pela organização para definir quais alimentos devem levar os selos.

Em resposta aos argumentos da indústria, Vargas disse que houve “muito cuidado” para que a orientação levasse em conta a definição legal de açúcares adicionados e que “não faz sentido nenhum argumentar que a orientação é distinta da definição usada pelos Estados Unidos e pela Opas, porque intencionalmente a gente não adotou a definição usada pelos Estados Unidos e pela Opas durante o processo regulatório”. Ele também frisou que “a argumentação de que os fornecedores não possuem dados também não possui amparo, porque essa é uma obrigação legal dos fornecedores”.  

Ainda assim, a Anvisa decidiu alterar o documento de perguntas e respostas sobre a rotulagem, de forma que não restassem dúvidas quanto à definição e exemplos de açúcares adicionados. Ainda em julho, a nova versão do documento foi publicada.

Na reunião, Vargas afirmou que “se for identificado alguma situação de necessidade de esgotamento de embalagens, por exemplo, para se adequar, a gente faria uma orientação de que as empresas impactadas pela alteração das orientações utilizem os procedimentos excepcionais da Anvisa, para escoamento da embalagem junto à Gerência-Geral de Inspeção e Fiscalização Sanitária (GGFIS)”. Mesmo assim, alguns participantes, representantes de empresas de consultoria em assuntos regulatórios, questionaram se a Anvisa pretendia prorrogar o prazo de adequação às novas regras de rotulagem. 

A gerente-geral de Alimentos da Anvisa, Patrícia Castilho, respondeu que “não há necessidade de fazer nenhum tipo de ampliação desse prazo” e reiterou a orientação de Vargas quanto aos estoques de embalagens. No entanto, três meses depois, na última segunda-feira, a Anvisa publicou a resolução que vai na contramão do exposto por Castilho. Ponto para a indústria.

Atualização – Após a publicação da reportagem, no dia 16 de outubro, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) divulgou ter encaminhado um ofício à Anvisa, no qual afirma ter recebido “com surpresa, indignação e preocupação” a decisão da Agência. Ainda afirma que “a extensão deste prazo significa também o adiamento da garantia dos direitos à alimentação adequada, à saúde e à informação. A não aplicação imediata da norma significa, ainda, que o Estado brasileiro continua promovendo indiretamente o consumo de alimentos ultraprocessados”.

* Nota da redação: Esta reportagem foi atualizada às 11h30 do dia 17 de outubro de 2023, para incluir o box acima, com o posicionamento do Consea.

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