Instituto alega captura da agência por corporações e cobra revogação de decisão de outubro. Documentos obtidos pelo Joio mostram que área técnica da agência foi desrespeitada pelos diretores
O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) protocolou esta semana uma ação judicial contra a decisão tomada pela diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em outubro passado, de dar mais um ano para a indústria se adaptar às novas regras de rotulagem.
O documento protocolado na 13ª Vara Cível Federal em São Paulo fala em captura corporativa da agência reguladora e diz que o interesse privado violou o interesse coletivo. O instituto quer uma liminar que suspenda a resolução, além de pedir a revogação definitiva da mesma.
Em uma reunião em outubro, os diretores acolheram a argumentação das corporações do setor de que precisavam escoar embalagens antigas antes de adotar as lupas na parte frontal que avisam sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. Com isso, na prática o Brasil passou a ter um prazo de adaptação de 48 meses, muito acima do que foi adotado por outros países da região.
Informações obtidas pelo Joio via Lei de Acesso à Informação demonstram que a decisão ignorou contribuições da área técnica e incorporou argumentos usados pela indústria, em uma série de reuniões e pedidos de escoamento de embalagens que não estão de acordo com as novas exigências.
“Esta ação precisou ser promovida por dois grandes motivos. O primeiro deles é a defesa do direito à informação dos consumidores sobre produtos ultraprocessados, que a diretoria da Anvisa resolveu ignorar totalmente nessa decisão, deixando de lado um trabalho de quase dez anos da sua área técnica e da sociedade civil”, avalia o diretor de Relações Institucionais do Idec, Igor Britto.
“O outro é porque não podemos deixar que diretores de uma agência reguladora tomem uma decisão em benefício das empresas que deveriam estar fiscalizando, sem base em qualquer evidência, pesquisa e dados. Ou seja, não podemos admitir que a diretoria de uma agência tão poderosa e importante como a Anvisa se submeta totalmente aos interesses dos empresários, que não tiveram a competência de se adaptar à nova regra no largo tempo dado pela agência.”
Já havíamos mostrado que a Ambev fez uma verdadeira peregrinação pela Anvisa. Seus representantes se reuniram com diferentes setores – inclusive com o alto escalão – para influenciar “a edição, a revogação ou a alteração” do texto que estabelece as novas regras de rotulagem, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 429/2020.
Atas obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que a empresa pediu mais tempo para usar cerca de 7.300 rótulos de cerveja, que não estavam em acordo com as novas regras, mas ainda estariam no mercado após o fim do prazo de adaptação de três anos previsto na RDC.
E a Ambev não foi a única. Associações que representam a indústria também foram bater à porta da Anvisa e mais de 100 empresas pediram para usar rótulos desatualizados, por períodos de tempo diversos. A Predilecta, por exemplo, solicitou um ano para escoar embalagens de doces, catchup, maionese e outros molhos. Já a Polenghi pediu quase três anos. Mas o caso mais estridente é o do laticínio D’Allora, que vende misturas lácteas para restaurantes e outros estabelecimentos: a empresa pediu um prazo de 25 anos.
A ação proposta pelo Idec reforça essa excepcionalidade criada pela resolução da agência. Na visão do instituto, o processo judicial visa a restaurar o interesse público, em detrimento do interesse privado, e garantir que as decisões regulatórias tenham de tomar como base evidências livres de conflitos de interesses. No caso em questão, a documentação avaliada por nossos repórteres mostra que a única variável levada em conta pelos diretores da Anvisa foram os argumentos das corporações do setor, sem qualquer checagem quanto à veracidade das informações apresentadas.
O Idec chama atenção para o fato de que os diretores promoveram uma decisão apressada para que entrasse em vigor no dia em que a adoção das lupas nos rótulos passaria a ser obrigatória. “No apagar das luzes, a Anvisa – em detrimento da supremacia do interesse público – fez sua opção para atender os interesses econômicos e lucrativos de empresas que, provavelmente, foram ineficientes e descompromissadas com os direitos do público-consumidor e desinteressadas em cumprir uma importante política pública regulatória, sobretudo porque é sabido que a indústria alimentícia lucra com a venda de produtos promocionados como se saudáveis fossem, sem permitir que o consumidor – em sua plenitude – compreenda ao que está sendo exposto, prevalecendo-se, assim, da sua hipervulnerabilidade.”
Chama atenção a cronologia dos acontecimentos. A resolução foi inicialmente proposta no dia 6 de outubro, ou seja, a apenas três dias do início da vigência da nova etapa da norma aprovada em 2020. A diretora-adjunta Suzana Yumi Fukimoto assina o despacho às 17h27, justamente no momento em que estava reunida com a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad).
No dia 9 de outubro, o diretor-presidente, Antônio Barra Torres, assinou às 15h58 o despacho para publicação da resolução no Diário Oficial, ou seja, antes mesmo da aprovação formal da norma.
“Portanto, a Diretoria Colegiada da Anvisa, contrariando as conclusões de notas técnicas da própria Agência, baseou sua decisão unicamente nos documentos da indústria de ultraprocessados, atendendo ao lobby em flagrante favorecimento de interesses privados e cedendo às estratégias de pressão e influência política corporativa”, lamenta o Idec.
O instituto argumenta que a resolução é marcada por uma série de ilegalidades. Primeiro, não houve qualquer consulta à sociedade, como determina o regimento interno da agência, e nem sequer a Anvisa se deu ao trabalho de justificar o porquê de não haver cumprido com este rito. Segundo, a Procuradoria Federal só foi consultada após a publicação da resolução, o que também fere o regimento. Terceiro, a resolução viola os princípios da impessoalidade e da isonomia, uma vez que prejudica as empresas que conseguiram se organizar para dar cumprimento à medida dentro do prazo.
Procurada, a Anvisa respondeu que “não comenta questões em andamento na Justiça. Adicionalmente, todas as informações referentes à norma estão disponíveis em votos públicos emitidos pelos membros da Diretoria Colegiada”
Atropelos
Novos documentos obtidos pelo Joio mostram que os setores da Anvisa especializados em alimentos e fiscalização emitiram pareceres contrários aos pedidos da indústria, mas foram ignorados pela Diretoria Colegiada. A ação do Idec expõe ainda que os votos dos diretores omitiram essa informação e manipularam argumentos para dar a entender que havia um aval das áreas técnicas ao adiamento.
Em nota, a coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, Laís Amaral, afirma que a Anvisa prestou um desserviço à sociedade. “Essa prorrogação do prazo para a adequação dos rótulos causa dúvida e confusão. As pessoas vão encontrar alimentos e bebidas processados e ultraprocessados, cujo consumo está associado ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes tipo 2 e hipertensão, com e sem a lupa. E poderão se equivocar ao levar para casa um produto com muito açúcar adicionado, gordura saturada e sódio, porém, sem o selo, pensando que aquela é uma opção mais saudável.”
Quando os primeiros pedidos da indústria chegaram, a Gerência de Inspeção e Fiscalização Sanitária de Alimentos, Cosméticos e Saneantes (GIASC) e a Gerência Geral de Alimentos (GGALI) começaram a elaborar notas técnicas para cada um dos pedidos. Ainda que a resposta fosse, em geral, a mesma. “Assim, os pareceres acima informados foram elaborados para um pedido específico, mas são representativos a todos os demais pedidos”, afirmou a GIASC, via LAI.
Sendo assim, vejamos o caso da Stella D’oro, que produz molhos, condimentos, conservas e sobremesas. Em agosto do ano passado, a empresa pediu um ano para escoar embalagens desatualizadas. No mesmo mês, a GIASC emitiu uma nota concluindo que “não é legítima a concessão de prazo para esgotamento de embalagens além do período de adequação expressamente previsto na norma, a fim de prevenir tratamento com privilégios a determinadas empresas”.
O texto da área técnica ainda argumenta que “o descumprimento às normas de rotulagem nutricional não resulta em dano imediato à saúde do consumidor, mas se contrapõe à Política Nacional de Alimentação e Nutrição, que integra os esforços do Estado Brasileiro para respeitar, proteger, promover e prover os direitos humanos à saúde e à alimentação”.
No entanto, a GIASC explicou, via LAI, que “as áreas não mais produziram pareceres para cada processo”. Porque “a decisão da Diretoria Colegiada da Anvisa foi de não atuar nos pedidos específicos, mas sim de fazer uma análise geral”, considerando a aproximação do fim do prazo de adequação às novas regras.
Então, todos os pedidos recebidos pela Agência foram agrupados em um único processo – ao qual o Joio teve acesso.
A documentação mostra que, também em agosto, a GGALI se manifestou sobre o processo. O texto lembra que as discussões que resultaram na publicação das novas regras “cumpriram todos os requisitos de boas práticas regulatórias” e que, por isso, “não se justifica a ampliação do prazo de adequação”. Também lembra que as empresas podem usar etiquetas adesivas para corrigir eventuais erros: não é como se todos os rótulos inadequados precisassem ser jogados no lixo.
“Neste contexto, a GGALI não pretende propor à Diretoria Colegiada a alteração da Resolução RDC nº 429/2020, para prorrogar de forma geral e abstrata os prazos para adequação aos novos requisitos sobre rotulagem nutricional”. O texto conclui reiterando “a relevância desta intervenção regulatória” e “o amplo prazo de adequação já fornecido”. Ainda defende que pedidos de esgotamento de embalagens continuem sendo avaliados caso a caso pelo setor responsável.
A GIASC afirma que esses pareceres da área técnica “foram considerados na tomada de decisão da Diretoria Colegiada”. Mas o voto de um dos diretores, Romison Rodrigues Mota, não passa a mesma mensagem.
Ele cita os pareceres, mas frisa que “era impossível antever ou ter governabilidade sobre uma pandemia de escala global” e que por isso “o argumento do setor regulado quanto aos impactos da pandemia na economia e no modo de consumo há de ser considerado, visto que as evidências são incontestáveis”.
A diretora Meiruze Freitas, que coordena, dentre outros setores, a GGALI, que havia se manifestado contra a concessão do prazo adicional, estava de férias no dia da votação. Todos os outros diretores estavam presentes e foram favoráveis à decisão.