Centro financiado por Heineken e Ambev representa caso emblemático do ‘sucesso’ do setor em mobilizar a ideia de que as empresas podem se autorregular

Durante décadas, a indústria do tabaco financiou pesquisas, patrocinou médicos e criou campanhas de “responsabilidade social” para evitar restrições ao cigarro. Hoje, a história se repete com o álcool. As corporações do setor mobilizam o discurso de responsabilidade social para frear a adoção de políticas públicas de restrição a cervejas, vinhos e destilados. Por trás das campanhas de consumo moderado, a ideia contraditória de que as empresas podem se autorregular. Contam, para isso, com a produção de evidências científicas, artigos e entrevistas sob medida a seus interesses.
“A academia foi a primeira a ser comprada. A indústria do álcool aprende tudo o que a do tabaco faz”, complementa a psiquiatra Ana Cecília Marques, membro da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD) e pesquisadora na área de álcool.
Em um artigo de 2016, um grupo de pesquisadoras se propôs a sistematizar os principais métodos utilizados globalmente por empresas do setor, como a produção de relatórios supostamente científicos não revisados por pares, o patrocínio de eventos científicos e a disseminação de mensagens ambíguas sobre os riscos do consumo.
Entre as estratégias figura ainda a criação de centros de pesquisa conhecidos como organizações de relações públicas da indústria – Social Aspects Public Relations Organizations, na nomenclatura adotada internacionalmente. São entidades mantidas pela indústria para proteger a reputação de setores controversos, como das bebidas alcoólicas, tabaco, açúcar e jogos de azar.
No Brasil, um dos exemplos mais emblemáticos dessa lógica é o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA). Fundado pelo psiquiatra Arthur Guerra, o centro é financiado pelas gigantes Ambev e Heineken, mas se apresenta como uma organização não governamental independente e de interesse público.
Desde sua criação, em 2004, tornou-se uma das principais fontes de informação sobre álcool na mídia e na opinião pública. Um estudo publicado no Journal of Studies on Alcohol and Drugs aponta que o CISA divulga publicações próprias, sem revisão científica, com metodologias pouco claras e resultados alinhados aos interesses de seus financiadores. O relatório “Álcool e Saúde dos Brasileiros: Panorama 2020”, por exemplo, minimiza medidas de controle recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como restrição de marketing, aumento de impostos e regulação dos pontos de venda. Em vez disso, promove a ideia da autorregulação da indústria como política eficaz. O documento cita mais de 120 vezes a OMS, criando a aparência de alinhamento, mas omite qualquer menção ao financiamento privado e aos conflitos de interesse de sua diretoria, que inclui acadêmicos e representantes do setor de bebidas.
Dentro da ideia da autorregulação da indústria, está o discurso “beba com moderação”. Mas a realidade é que a moderação nem sustenta o modelo de negócios nem protege a saúde pública: pesquisas na Inglaterra e nos Estados Unidos mostram que a maior parte da receita da indústria vem justamente dos bebedores pesados. Ainda assim, a narrativa se mantém porque funciona como estratégia de marketing.
“Essa é uma ideia fantasiosa e injusta com as pessoas, porque parte do pressuposto de que o ser humano, por um simples ato racional, consegue se controlar. É uma visão liberal que ignora contextos e estruturas. É como culpar o obeso pela obesidade, sem considerar todos os fatores que a influenciam”, explica Guilherme Messas, psiquiatra e professor livre-docente da Santa Casa, ao Joio.
O CISA
Desde sua origem, o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) é financiado pela Ambev e conta com representantes da própria empresa, do Grupo Heineken e do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv) entre seus sócios e associados.
Em resposta ao Joio, Arthur Guerra afirmou que a presença da indústria “jamais impactou as pesquisas e publicações realizadas pelo centro”. Apesar disso, reconheceu que o tema vem sendo discutido internamente e informou que há um planejamento para a retirada dos representantes da indústria a partir de 2026. Confira aqui a íntegra da resposta de Guerra.

O think tank se apresenta como um centro de saúde para conscientizar e prevenir o uso nocivo de bebidas alcoólicas, mas, na prática, enfatiza dúvidas e incertezas sobre o consumo de álcool, seguindo o roteiro identificado em estudos internacionais.
Na aba “pesquisa” do site do CISA, é possível encontrar diversas tentativas de minimizar os efeitos nocivos do álcool, como os artigos: “Estudo sugere que o ‘efeito matriz’ do vinho potencializa benefícios dos polifenóis além do álcool isolado”, “Pessoas inteligentes bebem mais álcool?”, “Consumo de álcool pode ajudar a combater uma intoxicação alimentar?”, “O consumo leve a moderado de álcool protege do risco de doenças cardíacas?”, “Ser bonito te faz beber mais?”

Em outra ocasião, o CISA também foi alvo de críticas em uma reportagem do Intercept por defender uma dose padrão 40% acima do considerado pela OMS. A “dose padrão” é usada como base para orientar o consumo moderado, avaliar riscos e fazer campanhas educativas. A recomendação do CISA pode contribuir para minimizar os danos associados ao álcool, reforçando narrativas convenientes para as grandes fabricantes de bebidas.
Ao Joio, Arthur Guerra afirmou que o centro seguia as diretrizes do instituto norte-americano NIAAA (National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism), alvo de críticas de especialistas internacionais por seus vínculos históricos com a indústria do álcool. Segundo o presidente do CISA, à época o Brasil não possuía uma definição oficial sobre o tema e, desde a publicação da nota técnica conjunta do Ministério da Saúde, em dezembro de 2024, que estabeleceu a dose padrão de 10 gramas de álcool, o centro passou a adotar essa nova referência em seus trabalhos.
Como surgiu o CISA
O CISA foi criado por Arthur Guerra, psiquiatra e professor da Universidade de São Paulo (USP). Em 2004, o jornal Folha de S. Paulo chegou a classificar o CISA como uma “ONG da Ambev”, contando como a maior corporação do setor havia apoiado a criação. Na época, a iniciativa enfrentou diversas críticas de especialistas, principalmente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), que alertaram para o óbvio conflito de interesse e para a ligação do médico com a indústria.
A reportagem da Folha também conta que, anteriormente, o Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea), fundado por Guerra na USP, havia recebido um auxílio de US$ 35 mil da indústria via Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe).
Para o médico Guilherme Messas, há uma coincidência entre a atuação do CISA e o desvio do foco da pauta sobre álcool no Brasil. De acordo com o especialista, nos anos que seguem a fundação do CISA em 2004 e a implementação da Política Nacional sobre o Álcool (PNA), de 2006, houve um declínio dos estudos em álcool, sobretudo daqueles ligados a políticas públicas.
A PNA foi lançada pelo Ministério da Saúde com o objetivo de reduzir o consumo nocivo de bebidas alcoólicas e regular a oferta e a publicidade, priorizando a proteção de grupos vulneráveis, como crianças e adolescentes. Mas nunca saiu plenamente do papel. A pressão da indústria, especialmente das fabricantes de cerveja, esvaziou pontos-chave da proposta, como o aumento de impostos e a restrição à propaganda. Um dos exemplos mais emblemáticos foi a manutenção do limite de 13°GL (graus Gay-Lussac) como critério para aplicação das regras de publicidade – isso significa que a cerveja fica livre de restrições.
“A política não era contra o álcool, era uma política de controle. Baseada em evidências, nas mesmas recomendações que a OMS e a ONU fazem até hoje: redução da disponibilidade, aumento do preço, restrição da propaganda, prevenção qualificada. Na prática, essa política foi sabotada”, afirma Ana Cecília Marques, uma das responsáveis pela elaboração da PNA, que contribuiu tecnicamente com o Ministério da Saúde e presidia, à época, a Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas.
Enquanto a política era deixada de lado, a indústria passou a ocupar o espaço do debate público com iniciativas próprias, como o CISA. “O especialista Arthur Guerra, que já falava muito de álcool, continua falando de álcool, mas agora pela instituição do CISA. E aí o CISA começa a ser a voz, o speaker, simultaneamente da indústria do álcool e formador de opinião da indústria do álcool”, diz Messas.
Para ele, trata-se de uma estratégia para tirar um tema da agenda pública não pelo silêncio direto, mas pela manipulação discursiva e pela criação de uma falsa sensação de debate plural, quando na prática há um discurso único controlado.
Arthur Guerra
A ligação de Arthur Guerra com a indústria do álcool não se limita ao CISA. Ana Cecília Marques relata que, quando ela presidia a ABEAD, o médico foi convidado a se retirar da associação.
“Chamamos ele e falamos, escolhe: ‘a indústria ou a Abead’. Ele escolheu a indústria”, narra.
Guerra, por sua vez, afirma que, ao criar o CISA, considerou mais adequado se desligar da associação.
Na alegria e na tristeza, Guerra também parece ter escolhido a indústria. Sua esposa, Daniela Dalle Molle, vem de uma família que construiu sua fortuna na Itália com a criação e venda da bebida Cynar e de outros licores. Neta do famoso Angelo Dalle Molle, Daniela e os irmãos disputam herança no valor de dezenas de milhões de euros. Hoje, a marca Cynar pertence ao Grupo Campari.
Questionado se essa relação poderia configurar conflito ético em sua atuação pública, o psiquiatra respondeu que “relações familiares e postura/credibilidade profissional são assuntos que não se comunicam”.
A proximidade com a indústria também aparece nos registros documentais. Guerra negou que todas as instituições estejam no mesmo local, mas confirmou que as empresas estão registradas no mesmo prédio.
Em um único prédio na Vila Olímpia, bairro nobre de São Paulo, estão vinculados o CISA e vários outros empreendimentos de Arthur Guerra. Segundo os registros, na sala ao lado do centro financiado pela Ambev, está sua clínica particular especializada no diagnóstico e tratamento de pacientes com transtornos psiquiátricos ou histórico de abuso de álcool e outras drogas. Entre os profissionais da equipe está seu enteado, Philippe Albert Dalle Molle Benhayon, que manteve até 2022 uma empresa de comércio de bebidas em seu nome.
Poucos têm condições de pagar pela consulta com Guerra, que dura em média de 40 a 50 minutos e custa R$ 7.000,00. É o caso de Nizan Guanaes, publicitário com extenso currículo em campanhas publicitárias de cervejas. A história de Nizan com o álcool, no entanto, não foi só flores (e muito dinheiro). Os problemas com consumo de álcool e a posterior recuperação foram registrados no seu livro Você aguenta ser feliz?, com coautoria de Arthur Guerra.
No mesmo andar do prédio em que a clínica do psiquiatra e o CISA estão registrados, consta mais uma empresa de Arthur, a Caliandra, que oferece serviços de saúde mental para outras empresas. Como de costume, uma das clientes é a Ambev. São sócios da Caliandra, além de Guerra, a ex-coordenadora do CISA, Camila Magalhães Silveira, a atual presidente do conselho deliberativo do centro, Erica Siu, e o advogado Rodrigo Infantozzi.
Em outros momentos, o médico também ofereceu trabalhos pontuais a Ambev, como na criação da cartilha “Papo em família: como falar sobre bebidas alcoólicas com menores de 18 anos“, junto com os especialistas Dartiu Xavier, Rosely Sayão e Edmilson dos Santos. Além do claro conflito de interesse, a cartilha foi alvo de críticas por não ser eficaz ao estimular o consumo moderado. “A cartilha adota a estratégia da redução de danos. Essa mensagem não serve para os adolescentes e nem para jovens adultos brasileiros”, comenta Ana Cecília.

Conversa com Bial, da emissora Globo. Reprodução: GloboPlay.
Apesar de todas as evidências de proximidade com a indústria do álcool, a USP e a mídia tradicional não parecem se incomodar. Além de participar de projetos institucionais e lecionar sobre álcool na universidade, Arthur é colunista da revista Forbes e do jornal O Globo e, frequentemente, buscado como autoridade sobre saúde e álcool em reportagens sobre o tema.
Além de Guerra, outros médicos próximos a ele aparecem como vozes de autoridade na mídia. Um exemplo recente é o de Guilherme Kortas, psiquiatra que atua na clínica de Guerra desde 2016 e integra o Grea, grupo que já recebeu financiamento da indústria de bebidas. Kortas foi a única fonte científica consultada em uma reportagem do Fantástico sobre o “Ice”, uma extração da cannabis.
A matéria, criticada por especialistas em medicina canabinoide, se alinha ao lobby do álcool, que vê com preocupação a migração de parte do consumo recreativo para outras substâncias.
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Álcool e nutrição
Na Universidade de São Paulo, Arthur Guerra atua em várias frentes sobre álcool, apesar da relação controversa com a indústria das bebidas. Em uma delas, o médico preside o Instituto Perdizes, do Hospital das Clínicas, que incorpora o Grea. Apesar das polêmicas envolvendo o recebimento de dinheiro da indústria, o Instituto oferece tratamento de doenças relacionadas ao uso de álcool e drogas.
Segundo relatórios do CISA, a USP também mantém parcerias com o centro em disciplinas sobre álcool – “Álcool e nutrição” e “Álcool, Saúde e Sociedade” contam com o apoio do centro, além de serem da responsabilidade docente de Arthur Guerra. No entanto, a USP não informa que essas disciplinas sejam realizadas em parceria com o CISA, um conflito de interesse omitido pela universidade.
A disciplina “Álcool, Saúde e Sociedade” pode ser encontrada no canal de YouTube do CISA e conta com a participação de vários membros do centro. Entre os convidados, Martino Martinelli, que também é parceiro de Arthur Guerra em outro projeto da Ambev, o Modera-SP.

O Modera-SP é uma iniciativa da Fundação AB Inbev em parceria com a Prefeitura de São Paulo e a USP para promover o “consumo consciente” de bebidas alcoólicas. Além de Martinelli e Guerra, o professor Leandro Piquet Carneiro, que já recebeu recursos da indústria do cigarro, faz parte da iniciativa. Apesar do objetivo nobre, faltam evidências de que o programa tem realmente funcionado na prática.
“Nada foi dito sobre quantas pessoas realmente usaram a plataforma, quantas foram beneficiadas ou se houve mudança concreta no padrão de consumo. Essa é a verdadeira função de programas como o Modera SP para a indústria de bebidas alcoólicas: gerar uma cortina de fumaça em torno da indústria, com o verniz de inovação tecnológica e legitimidade acadêmica“, escreveu a especialista Ilana Pinsky em seu artigo “Indústria do álcool não é ‘parceira’ contra o alcoolismo”.
Além de Arthur Guerra
Outras menções honrosas do CISA vão para Mauro Vitor Homem Silva, vice-presidente de Assuntos Corporativos do Grupo Heineken, Carla Smith Crippa, vice-presidente de Impacto e Relações Corporativas da Ambev, e Rodrigo Moccia, diretor de Relações Institucionais da Ambev. Integrantes do conselho deliberativo do centro, também ocupam cargos no Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv) como presidente, vice-presidente e diretor, respectivamente.
Entre eles, Rodrigo Moccia se destaca como uma figura bastante atuante na indústria do álcool. Está sempre presente em eventos, dá palestras, fecha parcerias para a Ambev e participa de reuniões com agentes do governo. De um lado, defende os interesses da indústria representando a Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), a Ambev e o Sindicerv. De outro, concilia esse papel com sua atuação no CISA, supostamente dedicado a conscientizar e prevenir sobre o consumo nocivo de bebidas alcoólicas. Apesar disso, é mais comum encontrar ele e sua turma articulando estratégias que facilitam o abuso de álcool.

Num artigo científico sobre interferências da indústria do álcool no contexto político brasileiro, a pesquisadora Zila Sanchez relata que o Sindicerv pressionou parlamentares, por e-mail e telefone, a não aprovar um projeto de lei que previa proibir compra, venda, fornecimento e consumo de bebidas alcoólicas em escolas públicas e privadas, incluindo universidades, além de banir festas open bar nessas instituições em todo o estado de São Paulo. O registro da sessão da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia Legislativa de São Paulo, realizada em 24 de fevereiro de 2021, consta, no entanto, como vídeo privado no YouTube.
Mais recentemente, durante a articulação do projeto de reforma tributária, Moccia se reuniu frequentemente com os ministérios da Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e com o vice-presidente Geraldo Alckmin, defendendo o setor alcooleiro em reuniões nada transparentes. Nessas ocasiões, atuou como representante da Ambev, da Abrasca e do Sindicerv.
Pedidos de informação feitos pelo Joio aos órgãos envolvidos, via Lei de Acesso à Informação (LAI), confirmaram que nenhuma ata, resumo ou registro audiovisual foi produzido nessas reuniões. As respostas oficiais se limitaram a indicar que os compromissos constam na agenda disponível nos sites, sem fornecer qualquer detalhe sobre o conteúdo discutido.
Várias das reuniões, inclusive, foram realizadas por meio da plataforma Microsoft Teams, que permite gravação e transcrição com facilidade. A opção por não gravar ou documentar encontros institucionais com representantes do setor privado, em especial quando envolvem temas de alto impacto como a reforma tributária, representa uma grave falha de transparência e afronta os princípios da administração pública, especialmente o da publicidade e da moralidade.
Esse tipo de aproximação entre a indústria e o poder público não ocorre de forma isolada. Ele se soma a uma presença do setor nos espaços de produção de conhecimento e de formulação de políticas. O caso do CISA ilustra como essa inserção se dá em diferentes frentes, com a ocupação de lugares estratégicos em universidades, centros de pesquisa, veículos de comunicação e conselhos governamentais, muitas vezes sem que os vínculos com as empresas do setor sejam claramente divulgados.



