Contra os gigantes, um David

David Millions jamais se apegou ao ensino formal. E não tem qualquer problema em admitir isso. Ao contrário: o português de 33 anos o faz com a mesma naturalidade com que critica fortemente os laços entre a indústria e as ciências nutricionais e de alimentos em Portugal. Ele abre a conversa e logo saca a informação de que a escola de modelo tradicional pouco lhe atraía desde criança. Independente, tornou-se um pesquisador, ou investigador, como ele prefere ser chamado, do ramo da  malacologia (parte da biologia que estuda os moluscos, incluindo a taxonomia, a fisiologia e a ecologia desses animais). Morador da cidade do Porto, fez as malas e viajou pelo mundo para perseguir tal trabalho. A bagagem voltou maior ao país de origem, mas não pelo excesso de compras. O que pesou não esbarrava nas burocracias alfandegárias ou nos detectores de metal dos aeroportos: a fartura vinha em ideias.

A partir das investigações sobre os pequenos animais, o interesse se expandiu à pesquisa sobre os modos de vida e a saúde dos seres vivos de maneira mais abrangente. Uma década de estudos  – boa parte, como autodidata – o fez perceber que a nutrição era peça essencial nessa empreitada. David, então, sistematizou os conhecimentos adquiridos e criou o site Compreender Nutrição. Nascido da constatação de que a Internet é uma plataforma “mais eficaz” para difundir informações, o conteúdo, inicialmente, foi pensado para um livro. “Mas a Internet conduziu à progressiva adaptação ao formato atual”, explica Millions.

– Mas todo esse trabalho é feito só por você, David?, provoco.

– O trabalho é elaborado por uma única pessoa, eu. E é inteiramente independente, responde, com uma frase direta e seca que não deixa margens para o assunto prosseguir. Resumindo, ele é editor, revisor e colunista do projeto. Ou seja, toca o trabalho – que não é pouco – sozinho, voluntariamente, sem patrocínio, já que ganha a vida com outras atividades.

A página tem pegada evidentemente vegana, mas, além disso, é uma fonte em potencial de argumentos e pesquisas científicas sobre nutrição e alimentação saudável. Ao final de cada artigo, são apresentados links de diversas fontes de “informação científica independente”, segundo o estudioso. “É para que não restem dúvidas de que se trata de informação autêntica e sem a influência de corporações que visam apenas ao lucro”, reforça, no site.

O Compreender Nutrição é, ainda, um espaço de contundentes questionamentos às parcerias ciência/indústria.“Os patrocinadores do mais recente congresso da Associação Portuguesa dos Nutricionistas [realizado em maio deste ano, na cidade de Lisboa] incluíam a Nestlé, a Coca-Cola e a Parmalat, além de empresas de venda de planos de emagrecimento insanos”, revela Millions.

E ele não está só. Mesmo a mídia portuguesa mais tradicional tratou do tema. Pudera: em 2016, até o McDonald’s estava entre os parceiros do congresso da associação.

Patrocinadores do congresso da Associação de Nutricionistas Portugueses deste ano

Conclusão deste repórter: a briga que David arrumou foi contra um “Golias”, com perdão do trocadilho. Uma briga pela liberdade de pesquisa, ou, melhor dizendo, uma defesa de pesquisas livres de influência das corporações, algo já tratado em reportagem de O joio e o trigo sobre o cenário na América Latina.

A seguir,  a entrevista completa que, certamente, dá muito no que pensar:

O joio e o trigo – Quais são os pilares do Compreender Nutrição em termos de missão e princípios?

David Millions – O propósito é de servir, por meio do conhecimento, algumas das necessidades mais prementes da existência humana, como a alimentação saudável.

Você tem uma linha baseada em referenciais teóricos e práticos?

O sítio apresenta uma síntese de informações, baseadas em ciência, que prima pela congruência: um fator determinante para corroborar a fidedignidade das conclusões.

No Brasil, o debate sobre alimentação saudável e adequada ainda é muito norteado por visões “mainstream” da ciência, inclusive ciência financiada por institutos e transnacionais nada amigáveis a dietas saudáveis. Como é o cenário em Portugal? 

De fato, essas visões nem sempre são baseadas num direcionamento científico descomprometido, mas tendem a resultar de uma confluência de interesses que respeitam, igualmente, ao padrão comportamental das massas e às ambições corporativas. Esse é um cenário global, característico da transnacionalidade das corporações e da crescente convergência cultural.

Há instituições e associações no Brasil que se declaram científicas ou médicas e que realizam simpósios, seminários, conferências e congressos para, em tese, mostrar as evidências científicas que produzem. No entanto, quando se vai a esses eventos o que se vê, na prática, são grandes feiras de negócios, com palestras pouco ou nada científicas e grandes marcas exibindo produtos. Isso também ocorre em Portugal?

Não é surpreendente que, numa sociedade essencialmente moldada por intuitos financeiros, a indústria seja bem-sucedida na subjugação dos profissionais. Sim, isso ocorre em Portugal, também.

Você pode citar casos emblemáticos? 

Nesse aspecto, o congresso anual da Associação Portuguesa de Nutricionistas é um caso flagrante, uma vez que é amplamente financiado pelos produtores dos alimentos que deveriam constituir o foco de repúdio dos nutricionistas. Infelizmente, esse é um padrão recorrente na área da saúde.

(David interrompe a resposta e, ao mesmo tempo, interfere, pertinentemente, é bom que se diga, na minha próxima pergunta. Ele questiona: “Haverá algum congresso médico que seja independente da indústria farmacêutica?”).

Há outras instituições [além da Associação Portuguesa de Nutricionistas] que caminham no mesmo sentido? Pode citar nomes e casos que mostrem como atuam?

Todas as grandes empresas gravitam no sentido de expandir a esfera de influências e aumentar os lucros. E dispõem de setores especificamente designados para tal. A indústria dos lacticínios é um exemplo peremptório em Portugal e no mundo, uma vez que, por meio da criação de mantras publicitários, interação pública, suborno de profissionais e lobby governamental, consegue normalizar a noção da essencialidade dos produtos que comercializa.

Qual o estágio da pesquisa científica sobre alimentos nas universidades portuguesas em termos de independência da influência das transnacionais?

A investigação sobre nutrição é diversificada e existem áreas de maior e menor independência. No entanto, as organizações acadêmicas são alvos fáceis, tendo em consideração a extensa interação com a indústria e a formação incompetente de profissionais.

E dos governos, qual o nível de atuação e independência para a criação de políticas públicas em Portugal? 

O comprometimento multifacetado dos organismos que deveriam zelar por interesses públicos impede a implementação de medidas verdadeiramente transformadoras. Normalmente, as políticas avançam de acordo com o status quo.

Quais os grupos de pesquisadores independentes na área de alimentos em Portugal?  

Certamente que há uma gama prolífica de profissionais com uma postura mais séria e vanguardista. Recentemente, a Direção-Geral da Saúde (órgão responsável por regulamentar, orientar e coordenar as atividades de promoção da saúde e prevenção da doença em Portugal) publicou manuais de referência para uma alimentação vegetariana que ultrapassam muitos dos preconceitos anteriormente perpetuados pelos profissionais de nutrição e que foram benéficos para criar esclarecimento que já era patente noutros países.

No Brasil, os institutos e empresas que pressionam pela não regulação do setor de alimentos têm colocado a culpa pela obesidade e pela proliferação de doenças crônicas não transmissíveis no cidadão, principalmente no sedentarismo, afirmando, muitas vezes, que a falta de atividade física é mais nociva do que a má alimentação. Resumindo: dizem que se você fizer 30 minutos de exercícios por dia, pode tomar Coca-Cola, entre outras coisas. Como você avalia isso?

Tendo em consideração que há vários pontos de evidência que permitem afirmar com segurança que a proliferação das doenças crônicas possui uma etiologia principalmente alimentar, aparenta que a culpabilização principal de fatores secundários possa constituir uma estratégia de ofuscação. Há, de fato, provas científicas de que o aumento da atividade física é incapaz de amenizar os prejuízos de saúde expressivos que resultam de uma dieta incompetente.

Como Portugal e Europa caminham na questão da regulação de alimentos ultraprocessados? 

Há um intuito crescente em taxar produtos ricos em açúcar, sal e gordura, uma medida que providencia benefícios apenas marginalmente eficazes em relação ao todo que é necessário para proteger a população da epidemia de doenças crônicas.

E qual a solução, na sua visão? 

A solução derradeira reside na causa do problema: cortar, determinantemente, a troca de fundos e favores entre os profissionais e a indústria, e calibrar a matéria acadêmica de acordo com o conhecimento científico que corresponde adequadamente às necessidades do século 21 [sociais, econômicas, humanitárias e ambientais].

 

Por Moriti Neto

É editor e repórter. De preferência, repórter.

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