Governo Trump quer impor cláusula que evite a adoção de advertências em rótulos de alimentos com altos níveis de sal, gordura e açúcar, atingindo também os interesses do Canadá
– Eu acredito… que eu diria, deputado, que para nós…há mais nuances do que isso – titubeou o embaixador Robert Lighthizer, representante de Comércio dos Estados Unidos. Durante os três ou quatro minutos em que foi interpelado, ele raramente levantou a cabeça, gaguejou várias vezes, coçou a cabeça.
– Apenas responda. Essa medida está sendo levada adiante pelo governo Estados Unidos? – interrompeu Lloyd Doggett, do Partido Democrata do Texas, durante uma audiência na última semana na Câmara de Representantes.
– A ideia de colocar limites na habilidade de países de colocar advertências ou símbolos nos produtos… é algo com que estamos preocupados.
– Então é correto que essa medida está sendo levada adiante por nossos negociadores?
– Eu não… quero dizer… não posso comentar em termos precisos. Eu não tenho o artigo frente a mim, mas o tema me preocupa. O outro lado… Seu ponto de vista é excelente e eu concordo. Por outro lado, há exemplos de vários países que estão usando essa brecha basicamente para criar um ambiente protecionista – finalizou Lighthizer.
Demorou, mas finalmente se conseguiu avistar a unha afiada da águia sobrevoando as políticas da América Latina que tentam colocar um freio na epidemia de obesidade. Agora, é esperar pelo ataque.
Uma coalizão de ONGs mexicanas alertou sobre uma cláusula que os Estados Unidos tentam impor na renegociação do tratado de livre comércio com México e Canadá, o Nafta. Uma denúncia comprovada por documentos. Não satisfeito em desmontar as políticas nacionais que buscam uma saída para os problemas causados pela obesidade, o governo Donald Trump quer agora garantir que os vizinhos sejam impedidos de colocar sinais de advertência nos rótulos de alimentos ultraprocessados com altos teores de sal, gordura e açúcar.
Os países latino-americanos estão à frente de uma agenda criativa que tenta desencorajar o consumo de produtos associados à obesidade e às doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, câncer), uma das maiores causas de mortes no século 21.
O México adotou um imposto especial sobre o açúcar, medida que cruzou a fronteira e vem sendo adotada por estados e cidades dos Estados Unidos. O Chile colocou, em 2016, octógonos pretos nos rótulos que alertam os cidadãos sobre o excesso de calorias, sal, gordura e açúcar. O Peru e o Uruguai têm tudo para serem os próximos na lista. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ainda avalia qual modelo adotar, e o sistema chileno é uma das possibilidades.
O sistema do país sul-americano é inédito tanto por trabalhar com advertências, numa expressão clara do que deve ser evitado, como por ser de adoção obrigatória pelas empresas. De lá para cá, a indústria de alimentos mundo afora trabalha para desacreditar os sinais de alerta.
No México, deu certo, e o governo acabou adotando um sistema chamado GDA, que é o sonho dos fabricantes: todas as evidências científicas mostram que as pessoas não entendem de que se trata. Nos últimos meses, setores da sociedade têm conseguido aumentar a pressão para que a medida seja revista e que se adote o modelo chileno.
Mas é aí que o governo Trump quer matar dois coelhos numa paulada só. A tentativa de usar o Nafta para proibir a adoção de advertências mira também ao vizinho do Norte. O Ministério da Saúde do Canadá começou a discussão alguns passos adiante: partiu do pressuposto de que o modelo chileno é o que melhor funciona. Recentemente foi aberta uma consulta pública, e a expectativa é de que o design do símbolo de alerta seja definido ainda este ano. Se os emissários de Trump deixarem.
Foi o sinal mais forte de interferência direta do governo dos Estados Unidos na política regulatória contra a obesidade. “Espero que você esteja firme na proteção dos interesses dos investidores americanos, mas não de um mecanismo que os permita invadir a soberania, como você corretamente notou, e subverter e minar a saúde”, lamentou Lloyd Doggett na conversa com o representante de Comércio.
Anteriormente, havia sinais de interferência das corporações dos Estados Unidos no Uruguai e no Chile. A Coca-Cola avisou a Montevidéu que o levará à Organização Mundial de Comércio (OMC) caso siga adiante na intenção de copiar o modelo de Santiago. A indústria de refrigerantes tampouco poupa esforços para desacreditar a aplicação de impostos especiais.
Julios Salazar, assessor jurídico da ONG mexicana El Poder del Consumidor, que denunciou as negociações via Nafta, alertou que os esforços dos Estados Unidos violam os tratados internacionais. “Os acordos comerciais reconhecem a supremacia dos direitos humanos e da saúde sobre os interesses e os direitos comerciais”, afirmou, em comunicado divulgado pela organização.
A alegação do governo Trump de que os sinais de advertência têm sido usados de forma protecionista não resiste a um exame da realidade comercial. O Chile não tem grandes fabricantes capazes de tirar proveito de uma mudança, a exemplo da maior parte dos países do mundo, que simplesmente comem o que é fabricado por corporações dos Estados Unidos e da Europa.
A associação que representa os fabricantes de ultraprocessados nos EUA afirmou trabalhar por um sistema de rotulagem que não seja “enganoso”. Ao jornal The New York Times, a Grocery Manufacturers Association afirmou querer uma decisão que esteja “fundamentada na ciência, minimize barreiras desnecessárias ao comércio e beneficie os consumidores nos três países”.
Se os países fossem rotulados com os octógonos chilenos, os Estados Unidos receberiam a inscrição “Alto em lobby”.