Análise: Anvisa toma caminho positivo, mas há armadilhas

Sugestão de adotar alertas em alimentos ultraprocessados é coerente com as evidências científicas. Porém, decisão final e implementação não estão asseguradas

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deu um passo importante esta semana. A decisão preliminar de colocar alertas em rótulos de produtos com excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas respeita o que as evidências científicas mostram. Vínhamos batendo nessa tecla desde 30 de outubro, quando nossa página foi lançada.

E, por incrível que pareça, nesses poucos meses surgiram mais alguns estudos capazes de reforçar a convicção de que os sinais de advertência são o sistema mais eficaz para levar nossa alimentação para fora do reino dos ultraprocessados. Todos sabemos que isso não é suficiente para prevenir e conter a obesidade, mas é um primeiro passo importante.

O caminho até a efetiva implementação da medida, porém, é longo. E há muitas armadilhas. Se mantiver a toada, a agência entrará para a lista de formuladores de políticas públicas mundo afora que estão adotando medidas efetivas na tentativa de conter um dos grandes problemas de saúde do século 21. Essa relação cresce a cada dia, com regras sobre publicidade de comida-tranqueira e impostos sobre bebidas adoçadas.

Durante os últimos meses, a Anvisa não oferecia indicações de qual trilha estava pegando. Se por um lado isso garantiu certa proteção do debate, por outro criou apreensão e especulações. Nas únicas exposições públicas do tema, o tom adotado pela agência foi dúbio ou favorável ao setor privado.

Ter deixado para trás o semáforo proposto pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) foi uma importante demonstração de respeito às evidências científicas. Se o próprio criador desse sistema de rotulagem, Mike Rayner, de Oxford, diz que não funciona, é difícil imaginar qualquer decisão em favor da iniciativa do setor privado.

Nos próximos 45 dias, a agência receberá sugestões da sociedade e das empresas. Será o momento de definir o design das advertências, os prazos de implementação e o perfil de nutrientes, ou seja, os limites a partir dos quais um produto é considerado “Alto em” sal, açúcar e gorduras saturadas.

1. Perfil de nutrientes

Esse é um dos grandes riscos de transformar uma medida efetiva em algo inócuo. Se a Anvisa adotar uma nota de corte muito frouxa, a maior parte dos produtos escapará aos sinais de advertência. Isso seria um tiro no pé, porque acabaria por dar legitimidade a itens que não devem ser consumidos no cotidiano – e que ficariam sem selos.

O relatório publicado esta semana parece praticamente excluir do páreo o perfil de nutrientes da Organização Panamericana de Saúde (Opas), mais rigoroso, pelo qual ao menos 60% dos produtos receberiam algum selo – em algumas categorias, a quase totalidade teria ao menos um alerta.

A agência indicou a adoção do próprio perfil de nutrientes. Mas, entre as duas propostas possíveis, deixou de lado a mais frouxa e ficou com a mais rigorosa. Bom sinal. A admissão de que esses parâmetros precisam de aperfeiçoamento também é positiva porque claramente algumas categorias de produtos sairiam beneficiadas com os índices adotados até aqui. Ou seja, pode haver uma distorção que precisa ser corrigida.

2. Prazo de implementação

Essa é outra armadilha que está no caminho pelos próximos 45 dias. É certo que as empresas precisarão de um prazo de adaptação. A necessidade agora é descobrir qual o intervalo realmente necessário. Uma das possibilidades é adotar padrões escalonados, como fez o Chile, dando tempo para que as empresas reformulem produtos e escapem das advertências.

Uma outra possibilidade, que certamente será buscada pela indústria, é a de jogar o início da implementação para o mais longe possível. O Canadá, a despeito de ter adotado alertas, prevê a adoção integral apenas em 2022. É muito tempo, pensando na urgência que o assunto demanda.

3. Adoçantes

A decisão da agência de não definir alertas para o uso de adoçantes demanda atenção. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) previu essa medida prevendo a reformulação de produtos. A tendência no mundo todo é de que as empresas corram para reduzir os índices de sal, gordura e açúcar, que estão na mira.

Mas essa trinca explica apenas uma parte (muito importante) do problema. Trocar açúcar por adoçantes, por exemplo, não é boa ideia. A Anvisa está certa ao dizer que ainda não há conclusões sobre os males provocados pelos edulcorantes. Mas os sinais que vêm se acumulando tampouco são positivos.

Talvez nesses 45 dias se possa pensar em como comunicar a presença dessas substâncias, em como evitar que a indústria faça um movimento massivo em direção a elas e em como dialogar com a população a esse respeito. No Chile, por exemplo, as vendas de produtos light em algumas categorias aumentaram após a adoção dos alertas.

4. O design

Essa decisão também tem a capacidade de fazer toda a diferença no sucesso da medida. Embora agora a escolha esteja restrita ao sistema de alertas, o design cumpre um papel importante em comunicar à população que determinado produto não deve ser consumido – ou pelo menos não deve ser consumido com frequência.

Os estudos feitos até aqui mostram uma pequena superioridade dos triângulos defendidos pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável em comparação com os octógonos chilenos. Mas é uma diferença muito sutil. O que se tem permite imaginar que qualquer desses dois sinais teria a mesma chance de êxito.

Os círculos vermelhos propostos pela Fundação Ezequiel Dias não foram testados na população brasileira. E os outros sistemas são inspirados naquilo que está sendo feito no Canadá. A grande diferença desses em relação ao modelo chileno é a síntese de todos os nutrientes em excesso em um único alerta. Isso tampouco foi testado no Brasil, e é difícil imaginar que o seja em apenas 45 dias. Uma decisão nesse sentido provavelmente tenha de se basear na revisão dos estudos feitos pelos canadenses.

A princípio, a síntese em um único alerta não soa como boa ideia porque força o consumidor a uma leitura extra, e as evidências apontam que as decisões em frente à prateleira são tomadas muito rapidamente. Vamos imaginar uma situação de compras. Usando os sinais canadenses, para decidir entre dois produtos com advertência você teria de ver qual é “Alto em” gorduras e qual é “Alto em” gorduras e sal, por exemplo.

Ao passo que no outro sistema, com um símbolo para cada nutriente, basta ver qual acumula mais sinais. As evidências em torno dos octógonos chilenos mostram que o êxito reside justamente no entendimento instantâneo da mensagem, sem necessidade de interpretação.

Mas concluir pelo funcionamento melhor de um ou de outro símbolo é algo que demanda avaliações criteriosas.

5. O design, parte dois

Uma informação que parece irrelevante, mas não é, são as cores usadas como fundo para os símbolos. O Chile, no primeiro mandato de Sebastián Piñera, chegou a propor as cores da bandeira (vermelho, azul e branco) e a deixar a critério dos fabricantes escolher qual delas utilizar. A Coca-Cola deu risada. Alerta vermelho em lata vermelha?

Foi com muita grita dos pesquisadores envolvidos no assunto que o decreto presidencial acabou revogado. Os estudos mostraram que a cor preta funcionava bem pelo fato de estar associada previamente a advertências e não se confundir facilmente com os produtos. Mas, peraê, e a Coca Light, que é preta? Essa é a vantagem, para o Brasil, de o Chile ter saído na frente: para evitar que o alerta se perca, sugere-se a adoção de uma moldura branca que isola o sinal de advertência.

Se tudo correr bem…

Após a primeira fase de consulta pública, a Anvisa redigirá uma sugestão da resolução que garantirá a implementação dos alertas. Essa minuta será submetida a uma nova consulta pública. Supondo que a agência mantenha a toada e chegue a um bom resultado, há outros caminhos, fora da agência, pelos quais as empresas podem conseguir barrar a iniciativa.

1. O Legislativo

Há projetos em tramitação que preveem a adoção de outros sistemas de rotulagem. Um, em particular, está mais encaminhado. O Projeto de Lei do Senado 489, de 2008, foi apresentado pelo senador Cristovam Buarque (PPS-DF). A proposta é de adotar os semáforos agora rejeitados pela Anvisa.

Quando o parlamentar apresentou a ideia, há dez anos, os semáforos eram praticamente o único sistema disponível. E, naquele momento, as empresas se opunham a esse modelo. Mas o passar dos anos mostrou a ineficácia, e os críticos se transformaram em defensores. Caso se consiga aprovar e sancionar o texto, a Anvisa fica de mãos atadas porque, entre uma lei e uma resolução, prevalece a primeira, fechando as portas para a ação da agência reguladora – que, não por acaso, aproveitou o relatório para reiterar que o Legislativo não deveria interferir nessa questão.

2. O Judiciário

Contestar os poderes da Anvisa na Justiça não seria nenhuma novidade. E os precedentes são bons para o setor privado. A indústria do cigarro conseguiu segurar por anos no Supremo Tribunal Federal uma decisão sobre o uso de aditivos. E, quando finalmente os ministros avaliaram o caso, em 2018, não conseguiram fechar uma posição definitiva.

A própria indústria de ultraprocessados teve êxito ao conter uma resolução sobre publicidade de alimentos com excesso de sal, açúcar e gordura. O texto de 2010 previa restrições à exibição na TV desses produtos. E até hoje não entrou em vigor.

3. O mundo

O Uruguai tem há meses um decreto prontinho para adotar o modelo chileno. Mas um dos obstáculos é a Argentina, que apresentou contestações no Mercosul. O governo de Mauricio Macri entende que as decisões têm de ser tomadas de comum acordo entre os países do bloco. E que os sinais de alerta seriam uma barreira não alfandegária ao comércio internacional, o que poderia levar o caso à Organização Mundial do Comércio (OMC). É o mesmo que foi feito pelos Estados Unidos em relação ao México e o Canadá, usando o Nafta como pretexto para frear mudanças nas leis dos vizinhos.

Uma outra frente de combate é o Codex Alimentarius. Trata-se de um espaço conjunto de decisões sobre comércio internacional de alimentos entre a FAO, agência das Nações Unidas para alimentação e agricultura, e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os parâmetros adotados por esse órgão são incorporados pela OMC. As empresas podem alegar que os alertas ferem as regras do Codex e, de novo, queixar-se de que criam uma barreira não alfandegária.

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