A alimentação humana, entre a mudança possível e a necessária

A narrativa de que apenas as corporações que criaram o problema podem ofertar a solução se torna cada vez mais insustentável

Todas as vezes em que um grupo de pesquisadores se reúne para discutir saídas para o problema da obesidade e das doenças crônicas, a mesma questão surge e trava a roda: as empresas são parte da solução ou do problema? Há defensores mais e menos aguerridos de ambas as teses, mas o certo é que no geral o debate não consegue superar essa polarização.

Assistimos a essa discussão inúmeras vezes durante congressos da área de nutrição ao longo dos últimos dois anos – e também em redes sociais e reuniões. Em eventos com maior incidência da indústria, cresce o grupo de cientistas favoráveis à ideia de que apenas essas empresas poderão resolver a questão. Em encontros com menos incidência, outras ideias surgem para competir por espaço.

A necessidade de fazer algo é inegável. As doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, câncer, hipertensão) se tornaram a maior causa de mortes em nível global. E uma parte delas está associada a alimentação.

É na hora de encontrar as soluções que se repete o problema que se dá em qualquer área. A saída se dará por dentro do mercado ou a partir da atuação do Estado e da sociedade sobre esse mercado? De qual mercado estamos falando?

Jeff Collin, professor de Política Global para Saúde da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, ressalta a necessidade de fazer uma distinção entre os diferentes setores empresariais, de modo a deixar claro o papel da indústria de ultraprocessados como causadora de problemas à saúde. Estamos falando daquele pequeno grupo de corporações cujo portfólio é comandado por produtos repletos de aditivos, sal, açúcar, gorduras.

O Congresso Latino-Americano de Nutrição, realizado em novembro de 2018, no México, foi um espaço privilegiado para observar esse debate. A região está oferecendo a agenda mais ousada na luta contra a obesidade. O próprio país-sede adotou impostos sobre bebidas adoçadas, que se tornaram rapidamente uma tendência global. O Chile criou alertas para o excesso de sal, açúcar e gorduras, que mais lentamente está se tornando tendência, mas, também, caminha.

Boa parte da programação do congresso acabou tomada por essa discussão.

Dois santos

“Como fazemos com que essa transformação seja um bom negócio? Porque, se não for lucrativo, não vamos conseguir”, indagou o mexicano Julio Berdegué, representante regional da FAO, que é a agência das Nações Unidas para questões de alimentação e agricultura.

“No mundo contemporâneo, acreditar que vamos passar a um novo entorno regulatório global, integral, 100% contra as empresas, é um sonho. Temos que encontrar uma estratégia de relacionarmos com o setor empresarial que permita que os mercados e as regulações possam distinguir e diferenciar os que fazem bem as coisas dos que fazem mal as coisas. A situação atual castiga quem quer fazer bem as coisas.”

Berdegué teve bastante espaço na programação do congresso. E foi interessante notar que ele fica no meio do caminho: uma espécie de misto entre regulação e mercado, reproduzindo a tensão com que trabalha a FAO, entre agronegócio e agricultura familiar, pequenas e grandes empresas, Estado e corporações.

Nós já vimos antes, em situações para além da alimentação, como funciona essa lógica de acender duas velas. No geral, o santo mais forte sai ganhando. E esse santo chama-se mercado.

Um relatório publicado em janeiro pela revista Lancet endereça o problema de forma diferente. O grupo de pesquisadores coordenado por Boyd Swinburn, da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, enxerga uma clara conexão entre mudanças climáticas e problemas de alimentação.

“Reparos superficiais nas bordas não entregarão as mudanças necessárias para o século 21”, declara o documento, enfatizando que iniciativas comandadas pela indústria e projetos para a educação alimentar do consumidor são incapazes de resolver a questão. Em vez disso, sugere-se a criação de um tratado global para regular sistemas alimentares.

Para os pesquisadores, a atuação das grandes empresas é a explicação central para a inércia política: os problemas causados por obesidade e desnutrição são conhecidos há muito tempo, mas as políticas públicas são erráticas, inexistentes ou insuficientes.

O relatório finca um pé no terreno da utopia, deixando claro que, a seguirmos no rumo distópico, pouco sobrará para contar a história. É interessante notar que um estudo de alta relevância está declarando com todas as letras a necessidade de uma transformação sistêmica, sem meias palavras, como único caminho razoável. Irrazoável seria manter a toada de pequenas transformações que nos conduz ao abismo.

Lucros infinitos para corpos finitos

Via de regra, os eventos de nutrição falam sobre nutrição. E só. É pouco comum encontrar pessoas e enfoques de outras áreas, como fez o estudo da Lancet. Economia, ciências sociais, Direito, comunicações raramente marcam presença, ou acabam escanteados na programação. Talvez isso ajude a entender por que há uma premissa básica ignorada por quase todos os defensores da lógica de que o setor privado resolverá a situação: o mercado financeiro.

A maior parte das corporações alimentares tem ações cotadas em bolsa. Ou seja, hoje em dia, embora essas empresas continuem a ter presidentes e diretores, é quase impossível saber quem de fato as controla, já que a divisão acionária é pulverizada e difícil de rastrear. O que é certo é que satisfazer o mercado financeiro requer um aumento incessante nos lucros.

Para Jeff Collin, é preciso dar um passo atrás e reconhecer a impossibilidade de pensar em parcerias com o setor privado em boa parte da agenda de saúde pública. “As empresas são legalmente obrigadas a maximizar a receita dos acionistas. Em muitos aspectos, acho que o problema aqui não são corporações – elas fazem o que devem”, ele disse durante um debate online realizado no final de novembro.

“O problema muitas vezes é a ingenuidade na saúde pública, no sentido de não reconhecer realmente as limitações do que pode ser exigido das empresas, por meio de iniciativas e parcerias voluntárias. E, portanto, precisamos pensar em abordagens regulatórias muito mais ambiciosas do que as que foram tentadas [até] hoje.”

A satisfação dos investidores tem sido alimentada desde a segunda metade do século passado mediante a ampliação das vendas e da produtividade. Ou seja, é vender cada vez mais de produtos cada vez mais baratos. Isso levou a um uso massivo de sal, açúcar, gorduras e aditivos, que têm um custo muito baixo. Em suma, à difusão dos ultraprocessados, que já não se parecem com aquilo que costumávamos comer.

“Como a indústria de alimentos transnacional reage às políticas de etiquetado, impostos? Reage dizendo que vai melhorar os produtos”, questiona Carlos Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP que cunhou o termo “ultraprocessados” e tem desde então estudado os impactos desses produtos para a saúde.

“Dizem que vamos diminuir sódio. Vamos trocar açúcar por adoçantes. Vamos adicionar fibras e vitaminas. Mas vamos fazer com que continuem comendo ultraprocessados. Temos que ter muito cuidado com essa reformulação porque no nosso continente pode significar retardar essas políticas. Pode fazer com que as pessoas entendam que não há nenhuma vantagem em deixar os ultraprocessados.”

O estudo da Lancet é bem claro: é necessário e possível deixar de comer aquilo que se parece com alimentos.

Logo em seguida ao Congresso Latino-americano, fomos presenteados com um exemplo concreto do que preocupa Monteiro. A indústria e o Ministério da Saúde do Brasil anunciaram um acordo para a redução de açúcar em produtos processados e ultraprocessados. A medida rendeu aplausos em redes sociais, mas as metas mostraram o claro limite das estratégias voluntárias: menos de 2% do açúcar utilizado nesses alimentos será retirado até 2022.

É muito mais tímido do que aquilo que se precisa. E deixa o poder público de mãos amarradas: afinal, passa-se a ideia de que as corporações estão se oferecendo para ser parte da solução. Só ao analisar as minúcias é de que se dá conta do contrário.

E aí é que podemos voltar à conversa sobre mercado financeiro. Para que as ações dessas empresas valham cada vez mais, precisamos consumir cada vez mais. Não é por acaso que sucessivas pesquisas mostram que a explosão no consumo de ultraprocessados em nível global está casada à curva de obesidade. Há uma tensão impossível de resolver entre corpos finitos e a demanda por lucros infinitos.

Mudanças comportamentais

Uma das pessoas que captou essa mudança foi Barry Popkin, professor da Universidade de Carolina do Norte. Ele cunhou o conceito de “transição nutricional” para falar sobre sociedades que passam de um consumo majoritário de alimentos in natura para uma alta ingestão de ultraprocessados.

Ele não escondeu a contrariedade com a abordagem de que mudanças de atitude não são o caminho para resolver o problema. É comum ouvir defensores da tese da indústria dizerem que as empresas estão simplesmente atendendo a uma demanda criada pelos consumidores. “Olha para décadas de marketing das empresas. Precisamos pensar em regular esse marketing se queremos que mudanças comportamentais aconteçam.”

Isso não significa olhar para o indivíduo, ou seja, apostar numa mudança feita um por um com base numa espécie de “consumo consciente”. Significa, na visão de Popkin, que o Estado precisa agir para garantir mudanças individuais com foco em alterações na sociedade como um todo.

Tim Lobstein, diretor da Fundação Mundial sobre Obesidade, foi na mesma linha durante o debate online que mencionamos. “Nós realmente não temos a escolha que achamos ter. Andando pelo supermercado, é, na verdade, muito difícil conseguir os tipos de coisas que queremos, com saúde, a um bom preço.”

Para ele, é hora de superar a expressão “doenças crônicas não transmissíveis”, que remete à ideia de que enfermidades causadas por estilos de vida são culpa dos indivíduos. Na visão de Lobstein, está claro que esses problemas de saúde têm um vetor: os alimentos ultraprocessados. E, por isso, é hora de falar sobre o ambiente que estimula a obesidade.

Robert Marten, da London School of Tropical Medicine, enfatizou a superação de um paradigma favorável às parcerias público-privadas. Para ele, no horizonte anterior, do Objetivo dos Desenvolvimentos do Milênio, esse tipo de cooperação com empresas era mais fácil porque a agenda de superação da fome, de doenças históricas, de mortalidade infantil não conflitava diretamente com alguns segmentos privados.

Mas, agora, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são inalcançáveis sem enfrentar os interesses de corporações. “A agenda dos ODS é muito mais ampla. Inclui o tratamento de doenças crônicas, [combate a] drogas, álcool, reduzir pela metade o número de acidentes e mortes no trânsito, garantir serviços de saúde reprodutiva e sexual, alcançar assistência médica universal, reduzir o número de mortes e doenças causadas pela poluição.”

Mudanças sistêmicas

Durante o congresso no México, outro ponto de destaque foi a apresentação de Brent Loken, que comandou um grupo interdisciplinar da revista Lancet que estudou o que seria a dieta ideal do ponto de vista ambiental e de saúde. A conclusão, publicada também no começo de 2019, foi de que o melhor é uma dieta flexitariana, ou seja, de baixíssimo consumo de carne e açúcar. “Está claro que a mudança para uma dieta baseada em plantas é boa. Não só para você, mas para o mundo.”

Vamos encarar essa constatação de um ponto de vista individual. No Brasil ainda encontramos alimentos frescos a preços baixos, mas já não tanto quanto no passado. Em alguns bairros, em especial de baixa renda e nas grandes cidades, pode ser complicado encontrar frutas, verduras e legumes de qualidade. Então, talvez o Estado precise agir tanto para garantir abastecimento como custos baixos.

Camila Corvalán, da Universidade do Chile, é uma das responsáveis pelo desenvolvimento de alertas nos rótulos para comunicar sobre o excesso de calorias, sal, gorduras e açúcares. “Está claro que um crescimento à custa do planeta, à custa da alimentação, à custa da saúde não é um crescimento sustentável”, avalia. “Sem esse novo olhar teremos medidas isoladas.”

O caso chileno é outro elefante na sala de quem defende que essas empresas serão parte da solução. Nos últimos dois anos foram feitos vários esforços para minar o funcionamento das advertências nas embalagens. Enquanto a Anvisa avalia se adota esse sistema no Brasil, as corporações financiam uma campanha contrária para tentar transmitir a ideia de que não funciona. O problema, para elas, é que as evidências científicas têm mostrado o contrário: produtos foram reformulados, as pessoas mudaram hábitos de consumo.

“Colocam advogados, economistas falando da soberania do consumidor, do livre mercado. Mas perdem no debate científico. A indústria não vai jogar nesse terreno porque sabe que está perdendo”, resumiu Jaime Delgado, congressista no Peru, um dos promotores da Lei de Alimentação Saudável e ativista pelo direito do consumidor.

Em breve o Peru também terá alertas nos rótulos. No Brasil, as empresas chegaram a publicar um estudo falando em uma perda de R$ 100 bilhões decorrente desse sistema. Mostramos aqui no Joio que esse cálculo não tem nenhum fundamento. E é o que coloca no ar outra questão: como pactuar com empresas que têm faltado com a verdade?

“Perdemos muitos amigos. Nesse processo a indústria capturou pessoas altamente qualificadas, capturou instituições, que foram financiadas com muito dinheiro para que mudassem de opinião. Mas finalmente se conseguiu fazer impor a verdade”, continua Jaime Delgado.

Essas empresas são as que nos fizeram acreditar que Danoninho vale por um bifinho. Que basta uma caminhada até a esquina para poder beber refrigerante à vontade. Que leite condensado é alimento para bebês. A arte de criar confusão é tão exitosa que se reflete na divisão da comunidade acadêmica. O que chegará antes ao fim: essa confusão ou a nossa saúde?

Foto em destaque: Giu Levy. Nupens/USP.

Por João Peres

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