Dados do IBGE e estudos públicos reforçam que há um grupo social particularmente afetado pela dificuldade de acesso a alimentos saudáveis
Fora do trabalho, a vida de Samira Silva é cuidar da casa e dos filhos. Moradora de Cidade Tiradentes, bairro no extremo leste de São Paulo, Silva é mãe de Rafael, de 9 anos, e de Heitor, de 2. Ela trabalha como atendente de 5 a 6 vezes por semana em uma adega, com uma jornada diária de oito horas. Às vezes faz horas extras que se estendem até 4 da manhã. Sua renda mensal é de cerca de R$ 1.200, já contando R$ 200 de um auxílio dado pelo pai do filho mais novo. “Enquanto eu estou trabalhando tenho que deixar a comida pronta pro mais velho esquentar no microondas. E toda o alimentação do meu bebê, que eu deixo com a minha vizinha”, conta.
A atendente é uma das 54,8 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, de acordo com a Síntese dos Indicadores Sociais, uma publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que avalia, entre outros indicadores, a situação das famílias pobres brasileiras. O estudo revela que devido à crise financeira e ao aumento do desemprego, a pobreza também avançou. Em 2016, o contingente de brasileiros pobres era de 25,7%, chegando no ano seguinte a 26,5% da população, ou cerca de 2 milhões de pessoas a mais.
O IBGE utiliza os parâmetros definidos pelo Banco Mundial, que considera pobre quem vive com menos de U$S 5,5 por dia. Na época do levantamento, o valor correspondia a R$ 406 mensais por pessoa. Segundo a cotação atual, fica em torno de R$ 610. O estudo também faz esta avaliação de acordo com a pessoa de referência do domicílio. Do total de domicílios em que o responsável pela casa é uma mulher sem cônjuge e com filhos de até 14 anos, 56,9% se encontram nesta situação. Entre 2005 e 2015 o Brasil ganhou 1,1 milhão de famílias chefiadas por mulheres.
Para Pedro Rocha, analista do IBGE, as famílias mais vulneráveis são aquelas em que a pessoa de referência é uma mãe sem parceiro ou parceira, pois elas são as principais atingidas pela informalidade no mercado de trabalho. A necessidade de dividir o tempo entre o cuidado com os filhos, o trabalho remunerado e as tarefas domésticas dificulta o acesso à carteira assinada.
“O trabalho não remunerado que as mulheres realizam é um fator determinante à vulnerabilidade do grupo, e elas gastam aproximadamente o dobro do tempo que os homens nessas tarefas”, explica.
Outra pesquisa do IBGE flagra com clareza essa situação. A publicação “Outras formas de trabalho” usa dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, também de 2017. Enquanto 95,7% das mulheres relatam ter responsabilidades de preparar e servir alimentos, essa é uma incumbência para apenas 59,8% dos homens. Entre as mulheres, 90,7% cumprem funções relacionadas a limpeza de roupas e sapatos, contra 56% dos homens (vide detalhes no gráfico). “Isto também traz mudanças significativas na alimentação pois, com menos recursos, a cesta de alimentos a que estes grupos têm acesso também é afetada”, conclui o analista.
Além de mãe, sem cônjuge e moradora da periferia da cidade, um outro fator é comum ao grupo a que Samira pertence: a raça (essa é a expressão usada pelo IBGE). De acordo com o instituto, se a mãe não tiver parceiro ou parceira e for negra, a prevalência da pobreza chega a 64,4% do total de domicílios.
Samira conta que tudo o que consegue fazer é pagar as contas e comprar comida. De família nordestina, tem arroz, feijão e cuscuz como bases da alimentação. “Do hortifruti eu compro mais banana, alface e tomate. Outras frutas e legumes só quando tem alguma promoção.” A mistura é composta preferencialmente por frango e carne de porco, mas, pela praticidade, antes de sair de casa para o trabalho, deixa frito um hambúrguer para o filho mais velho almoçar. O acompanhamento é suco em pó solúvel. “O que eles comem bastante é pão, ovo, leite, bolacha e danone. Às vezes eu compro suspiro. E tomamos refrigerante todo final de semana”, conta.
Para Paulo César Castro, nutricionista e doutor em Ciências da Saúde pela Fiocruz, a má alimentação e a consequente má nutrição dos grupos que estão abaixo da linha da pobreza evidencia a desigualdade alimentar. “Ela é repercussão de outras desigualdades. Os grupos atingidos pela má alimentação são os mesmos atingidos pela falta de acesso à educação, saúde, transporte, acessibilidade e políticas de segurança pública. A desigualdade é um elemento contextual que reflete no campo da alimentação e nutrição.”
Em grande parte dos casos, estas famílias são moradoras das periferias das grandes cidades, o que se torna mais um agravante no acesso a alimentos saudáveis. “As regiões com piores indicadores de renda são aquelas que possuem menos acesso a alimentos que podem proporcionar uma alimentação saudável. Onde o poder público não chega, a desigualdade alimentar chega”, diz Castro.
O especialista defendeu uma tese de doutorado em 2018 na Fiocruz sobre o ambiente alimentar na cidade do Rio de Janeiro. Cruzando dados públicos, ele chegou a mais de nove mil estabelecimentos que comercializavam alimentos ou refeições. Uma das constatações é de que a distribuição geográfica da oferta alimentar aumenta de acordo com a renda: bairros de classe média e alta, ou seja, a famosa Zona Sul carioca, dispunham de uma maior quantidade de estabelecimentos. Ainda que houvesse uma proporção maior de locais que comercializam preferencialmente ultraprocessados, havia nessas áreas, também, uma oferta de alimentos in natura que raramente se encontra nos bairros de classe baixa.
Castro explica que a alternativa para barrar a crescente má nutrição nestas regiões é através de políticas públicas de abastecimento e de subsídios para pequenos comerciantes de bairros pobres, já que alimentos in natura têm um alto índice de perda. “O pequeno comerciante vai preferir alimentos ultraprocessados porque tem maior margem de permanência, mais tempo de prateleira e não precisa comprar em grandes quantidades.”
Mas não é só a falta de acesso que dificulta o consumo de alimentos saudáveis entre as família pobres do Brasil. O desmonte de políticas públicas que promovem o combate à fome está cada vez mais claro. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) tem sofrido cortes acentuados.
O objetivo é fomentar a produção de pequenos agricultores, de forma a dar estabilidade ao produtor por possuir a segurança do governo como comprador, além de abastecer locais que atendem pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Durante o primeiro mandato do governo Dilma, o governo liberou R$ 839 milhões para a compra de alimentos da agricultura familiar. Em 2016, durante seu segundo mandato, foram R$ 439 milhões. Já em 2017, no primeiro ano do governo Temer, houve uma redução de 66% em relação ao ano anterior, o que totalizou R$ 150 milhões destinados ao programa.
“Observando os cortes de verbas que já foram feitos, e olhando para o governo atual, a expectativa é que a desigualdade alimentar aumente”, analisa Castro. No primeiro dia de governo, o atual presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, que extingue o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
O órgão era um espaço de debate entre sociedade civil e governo, fundamental na estruturação de políticas públicas que levaram o Brasil a deixar, em 2014, o Mapa da Fome. Além do PAA, destaca-se na trajetória brasileira o Programa Nacional de Alimentação Escolar. De um lado, prioriza compras diretas de pequenos agricultores. De outro, garante refeições nas creches e nas escolas públicas.
A alimentação de três dos quatro filhos de Tatiana Balbino Cordeiro, de 35 anos, moradora de uma comunidade no Jardim das Palmas, na zona oeste de São Paulo, depende da creche e da escola. Emmanuel, de um ano, toma café da manhã, almoça e come o lanche da tarde na creche. Richard, de 10, e Ruan, de 16, têm café da manhã e almoço na escola.
Para a mãe, a alimentação dada pelo governo é a certeza de que os filhos estão sendo bem cuidados. “Eu fico aliviada porque, como eles comem na escola, eu acabo economizando nas compras. E, além disso, tanto na escola como na creche, eu sei que eles vão comer bem, pois todo o cardápio é feito por uma nutricionista”, conta.
Ruan, Richard e Emmanuel estão entre os 41 milhões de alunos beneficiados pelo PNAE em 2017, segundo dados do Ministério da Educação. Desde o início do programa, no ano 2000, há uma tendência de crescimento no investimento para a alimentação escolar. Na época, o investimento feito pelo governo era de cerca de R$ 900 milhões. Em 2017 este valor chegou a R$ 4,5 bilhões.
Por lei, todas refeições devem seguir padrões de nutrição estabelecidos pelo PNAE. Embora seja prioritário o consumo de alimentos in natura, não há restrições com relação ao uso de agrotóxicos, defensivos agrícolas ou pesticidas. A única garantia é a compra 30% dos alimentos a partir da agricultura familiar (embora apenas parte dos municípios cumpra essa exigência).
Cordeiro trabalha como diarista e babá cerca de quatro vezes na semana. A renda mensal de R$ 2.000 precisa pagar aluguel e o sustento de três dos quatro filhos, além de ajudar a filha Tamires, mãe de dois meninos. “Ela era casada, mas se separou e agora está desempregada. Então eu ajudo em tudo o que eu posso, inclusive, na criação dos meus netos”, conta.
Nem a mãe, nem a filha contam com pensão dada pelos pais das crianças. A diarista pediu o divórcio por sofrer violência doméstica. Entrou na Justiça para que possa receber pensão dos pais dos meninos, e aguarda pelas audiências. O auxílio de R$ 200 que recebe do Bolsa Família é o que a ajuda a fechar o mês com as contas pagas e os filhos bem alimentados.
O objetivo dela para 2019 é melhorar a alimentação. Após a chegada de Emmanuel, a diarista desenvolveu trombose, que requer uma alimentação adequada durante o tratamento. “Eu preciso comer coisas mais saudáveis, e, além disso, meu filho tá acima do peso. Então precisa ser uma mudança geral na casa”, conta. A base é o arroz e o feijão. Ao lado disso, alguma mistura. Na maioria das vezes algum tipo de carne, mas também carnes processadas, como linguiça, frango processado empanado e salsicha.
Legumes e vegetais não são os alimentos preferidos da família. “Tomate e alguma folha sempre tem, mas nem todos comem.” Questionada se conseguirá fazer as mudanças necessárias para a melhora da sua saúde e a dos filhos, ela diz não ter certeza. “Eu não sei se o dinheiro vai ser suficiente. Eu queria dar para os meus filhos as frutas que eles gostam, mas eu não tenho dinheiro para isso. Acho que é um pouco de falta de costume, mas também é dinheiro. Para ter uma alimentação saudável você tem que ter dinheiro”.
O Ministério do Desenvolvimento Social, extinto por Jair Bolsonaro, publicou ao final de 2018 um primeiro mapeamento nacional de desertos alimentares. A ideia era entender de que maneira renda, região e tipo de estabelecimento influenciam na oferta de alimentos. O levantamento esbarra na falta de dados mais completos, em especial nos municípios médios e pequenos, mas, em linhas gerais, há uma constatação que não falha: quanto maior a cidade, menor a disponibilidade de alimentos frescos e maior a aquisição de ultraprocessados. Em linhas gerais, o trabalho contribui para expor que há um modelo de urbanização muito problemático, com impacto direto sobre a saúde das pessoas.
Ao analisar os dados sobre 21 capitais, os pesquisadores encontraram que em boa parte delas havia uma relação direta entre renda mais baixa e menor acesso a alimentos frescos. E em todas essas cidades se deu o fenômeno flagrado por Paulo César Castro no Rio de Janeiro: quanto maior a renda de uma área, maior a oferta de alimentos em geral, saudáveis ou não.
Se alimentação saudável for prioridade e a pobreza uma realidade, não sobra dinheiro para mais nada. É o caso de Luciana Pereira dos Santos, de 43 anos, moradora do Jardim Curuçá, na zona leste de São Paulo. Santos é mãe de seis filhos – quatro deles ainda moram com ela. A filha Ketlyn dos Santos, de 16 anos, possui leucemia mielóide crônica, um câncer raro de progressão lenta que requer tratamento e cuidados diários, especialmente na alimentação. Por isso, dificilmente entram enlatados, refrigerantes e outros tipos de alimentos processados em casa. “Meus filhos acabam comendo bem por causa dela. Tenho que comprar coisas específicas para ela, mas, no final, todos acabam comendo”, conta.
A renda da casa é de cerca de um salário mínimo, valor do benefício que a mãe recebe por causa da doença rara da filha. Ela conta que com esse dinheiro consegue pagar o financiamento do imóvel, que custa R$ 50 ao mês, e cerca de R$ 250 em água, luz e gás de cozinha.
Todo o restante é revertido para a compra de alimentos. Entre os processados, somente iogurte. Chocolate e outros doces, poucas vezes no ano. Lazer é palavra fora do seu vocabulário. “É muito caro”, afirma. “Lazer nem em sonho. Não sei quando foi que eu levei meus filhos para passear, alguma coisa assim. O dinheiro é muito curto e não tem condição nenhuma de fazer nada. É cobrir num canto e descobrir no outro. É mesmo só para alimentação. Mal consigo pagar as contas.”