Megaencontros realizados em 2018 jogam por terra a ideia de que apenas com dinheiro de corporações é possível fazer eventos na área de saúde
Eventos científicos que mais se parecem shopping centers estão com os dias contados? Difícil dizer. Mas 2018 comprovou que promover grandes encontros na área de nutrição não passa necessariamente por aceitar recursos das corporações alimentícias.
Esse é o principal argumento de quem defende o formato predominante dos eventos da área: não dá para fazer sem parcerias com Nestlé, Coca-Cola, Pepsico, Mondelez, Danone, Mars, Kellog’s e por aí vai.
O Congresso Latino-americano de Nutrição e o Congresso Brasileiro de Nutrição mostram que dá, sim. Mas dá trabalho. E pode custar o espaço de cientistas mais alinhados às corporações.
Essa é uma questão que salta aos olhos. Basta circular por eventos com patrocínio das megaempresas para ver que há interferência na programação científica. Além dos simpósios diretamente bancados pelo setor privado, há temas de interesse da indústria que ganham muito peso nos debates. E outros, que não interessam, desaparecem ou figuram sob um viés favorável a elas.
Esse debate é relevante porque é desses encontros que profissionais de saúde definem muito da conduta que adotarão com os pacientes.
O Congresso Latino-americano de Nutrição, realizado em novembro de 2018 em Guadalajara, no México, abriu espaço cativo ao debate da agenda regulatória em curso na região. A adoção de alertas nos rótulos e de impostos especiais sobre bebidas adoçadas é tema delicado para as empresas – no Congresso Internacional de Nutrição, um ano antes e com farta influência do setor privado, havia aparecido num viés bem mais desfavorável.
“Os congressos de nutrição têm uma importância muito grande. Quando fazemos um congresso patrocinado pela Coca-Cola, estamos transmitindo às pessoas a ideia de que Coca-Cola é nutrição. Naturaliza-se essa ideia absurda”, advertiu o professor Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, durante o Congresso Latino-americano. O encontro foi realizado na Expo Guadalajara, um espaço grande e caro.
Ele foi um dos signatários do manifesto apresentado três anos antes à Sociedade Latino-americana de Nutrição cobrando que se realizasse um evento livre de interferência da indústria. Isso, de fato, se concretizou. Está claro que o eixo central da programação foi preservado.
Teresa Shamah, secretária da Sociedade Latino-americana de Nutrição e uma das responsáveis pelo evento, considera que foi importante evidenciar o problema e cobrar que, se as pessoas querem mudanças, precisam colocar a mão no bolso: o encontro no México foi pago majoritariamente com anuidades e inscrições. “Acreditamos que se assentou o precedente e que agora se deve continuar, sempre e quando os organizadores do congresso tenham as mesmas ideias que nós. Nós sabíamos que poderíamos falhar, mas todos os sócios tomaram consciência de que era importante apoiar.”
Mas nem tudo são flores. Alguns participantes foram pegos de surpresa por um patrocínio da Yakult, fabricante de um produto famoso pelo excesso de açúcar, apesar do esforço incessante de apresentar os “lactobacilos vivos” como substâncias mágicas para o nosso corpo.
A corporação japonesa teve espaço também na programação científica, com um simpósio sobre microbiota, que é, muito grosso modo, a nossa flora intestinal. A abordagem de Elizabeth Tejero Barrera, do Instituto Nacional de Medicina Genômica do México, foi bastante mais cuidadosa que a média desses simpósios patrocinados. Ela falou sobre o estado atual das descobertas nessa área, mas não forçou a mão em termos de otimismo, nem fez qualquer menção ao Yakult.
Ainda assim, bastava dar alguns passos para fora da sala para colher, no estande da empresa, folhetos sobre os benefícios do produto e brindes associados à marca.
Teresa Shamah conta que a solicitação de patrocínio da empresa veio via Ministério da Saúde. O acordo foi de pagar centenas de bolsas para o comparecimento de mexicanos. “Eles dizem produzir saúde com evidência científica, dizem ajudar a saúde digestiva. Têm muita evidência em artigos de alto nível. Dissemos que não poderiam distribuir seus produtos. Mas poderiam distribuir evidências sobre probióticos.” Além dessas evidências, foram distribuídas garrafinhas plásticas com a marca da empresa.
Apesar dos pesares, a feira comercial do Congresso Latino-americano de Nutrição diferia bastante da média. No Congresso Internacional de Nutrição, realizado em 2017 em Buenos Aires, as corporações tinham os maiores espaços. Água gratuita só estava disponível na geladeira delas, com a marca delas. Havia brindes aos montes para quem preenchesse o cadastro colhido por elas. E enormes logotipos davam o tom visual.
Em Guadalajara, em compensação, boa parte dos estandes era ocupado por coalizões de organizações da sociedade civil, poder público e empresas de equipamentos clínicos. Os logos eram bem mais discretos. E a comida distribuída eram frutas frescas em vez de salgadinhos, biscoitos, chocolates e barrinhas de cereal. Mas havia um logo da Bonafont, da Danone, com um agradecimento expresso pelo fornecimento de água.
Porta entreaberta
Os organizadores do evento latino-americano claramente fixaram um limite mais baixo que os do Congresso Brasileiro de Nutrição, o Conbran. A política de conflito de interesses estabelecida pela Sociedade Latino-americana era menos explícita que a brasileira. Entre outras, deixava a porta aberta para uma decisão unilateral dos organizadores do evento caso julgassem necessário equilibrar as contas, como no caso do Yakult.
Já a Associação Brasileira de Nutrição tem uma política clara e pública, definida depois de protestos de nutricionistas contra a interferência da indústria. As duas últimas edições do Conbran, em Porto Alegre e em Brasília, foram realizadas sob as novas regras.
“Toda diretoria aprendeu muito com esse processo. Fomos os primeiros a colocar no papel. Uma vez que está regulamentado, você minimiza as brechas. Tanto aquele que quer participar como aquele que está dentro sabe quais são os critérios”, diz Carolina Chagas, que comandou a captação de recursos nas duas últimas edições.
O Conbran se ancorou em patrocínios de órgãos públicos, organizações da sociedade civil e pequenos empreendimentos. Em Brasília, vários produtores rurais e artesanais comercializaram. Quem quer oferecer alimentos durante o congresso, porém, precisa passar pelos critérios nutricionais estabelecidos pela associação.
Carolina conta que uma produtora de geleias investiu na reformulação do produto para poder participar do evento, garantindo uma redução substancial no uso de açúcar. “Brasília mostrou que não só deu certo uma vez, como pode ser replicado. Você pode fazer várias vezes um congresso dessas dimensões sem precisar se render ao capricho das corporações.”
Mas há questões para se manter atento. A interferência de um órgão público pode ser tão nociva quanto a interferência de uma empresa. Várias pessoas da associação de nutrição garantem que a programação científica está protegida e é fechada com antecedência exatamente para evitar que os laços comerciais tenham alguma influência.
Outro tópico importante diz respeito a fabricantes de produtos saudáveis. Se uma empresa de amêndoas decidir fazer uma palestra sobre os benefícios para a saúde, isso é mais legítimo que a palestra do Yakult ou da Coca-Cola? Esse debate daria margem a múltiplas interpretações. O mínimo que podemos dizer é que essa empresa teve a chance de influenciar a conduta de profissionais de saúde, em detrimento de produtos ausentes ou que não tenham uma empresa com força suficiente para bancar um simpósio – por que a amêndoa, e não o abacate, a castanha de caju, a laranja?
Foi o que ocorreu no evento latino-americano, que teve não só uma sessão sobre amêndoas como uma exposição da Bimbo, fabricante de pães nada saudáveis (no Brasil, a empresa produz os bolinhos Ana Maria e os pães Pullman).
Mas, como sabemos bem, tudo pode piorar. O comentário geral nos bastidores é de dúvidas sobre a disposição dos organizadores do próximo evento, no Paraguai, em fechar as portas a interferências das empresas. Tentamos contato com o novo presidente da Sociedade Latino-americana de Nutrição, Rafael Figueiredo Grijalba, mas não obtivemos resposta.