Durante feira em São Paulo, Tereza Cristina expõe visão contrária a tendências e evidências em prol de circuitos curtos de consumo de alimentos frescos
A ex-deputada federal Tereza Cristina, no comando do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, afirmou nesta terça-feira (12) em São Paulo que “segurança alimentar não é sinônimo de autossuficiência e é um tema que não pode se limitar às fronteiras nacionais”. Em uma palestra em um painel sobre o assunto durante o congresso da ANUFOOD Brazil, uma das principais feiras mundiais de alimentos, a ministra relacionou as discussões de segurança alimentar à derrubada de imposições alfandegárias.
“Infelizmente no caso da agricultura ainda existem restrições significativas ao comércio exterior, na forma de tarifas, subsídios e todas as formas de barreiras não tarifárias. As restrições ao comércio estimulam a produção onde às vezes não é eficiente produzir e isso sobrecarrega o meio ambiente. Não há como solucionar os desafios globais de segurança alimentar e sustentabilidade mantendo pesadas restrições ao comércio”, ela declarou.
Cristina trouxe uma visão reducionista do assunto, discursando, nas entrelinhas, contra dificuldades impostas às exportações do agronegócio brasileiro — essas restrições decorrem com frequência de problemas trabalhistas e ambientais relacionados às atividades agropecuárias. “Ao fazê-lo, os países condenam os seus consumidores a comprar produtos mais caros”, disse. A feira em que ela se apresentou reúne representantes de diversas nacionalidades e tem entre os organizadores a empresa Koelnmesse, da Alemanha, um importante destino de produtos do Brasil.
A afirmação de Cristina vai na contramão de tendências e evidências científicas. Organizações sociais e pesquisadores têm apostado com cada vez mais frequência que circuitos curtos de consumo de alimentos frescos são a melhor solução para a saúde e o ambiente. Uma proposta bem diferente daqueles advogam enviar toneladas de soja, milho e açúcar para o exterior.
“As restrições ao comércio impedem melhor uso de recursos naturais, já que a maior parte da população mundial se concentra em regiões cujos recursos estão se exaurindo. Isso sem contar o risco de graves problemas de abastecimento alimentar por conta de pragas e doenças e mudanças climáticas que possam reduzir a oferta de um país fechado ao comércio”, declarou a ex-deputada.
A ministra, na palestra, manteve um traço característico: a defesa intransigente, muitas vezes ufanista, do agronegócio brasileiro. Antes de assumir o cargo no governo federal, ela presidiu a Frente Parlamentar da Agropecuária, também conhecida como Bancada Ruralista, um grupo de deputados e senadores que se destacam por seus esforços para manter o status quo no meio rural brasileiro.
A articulação em prol do Pacote do Veneno lhe rendeu o apelido de “Musa do Veneno”, entre os próprios ruralistas, e o cargo de ministra.
Os ruralistas são comumente contra a reforma agrária, contra a redução do uso de agrotóxicos e costumam propor ou votar em prol de projetos desfavoráveis à defesa de indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais.
Ao mesmo tempo em que acusa países de colocar restrições ao Brasil, Cristina atua para defender o uso mais intensivo de agrotóxicos. Para isso, compara commodities agrícolas a mercadorias não perecíveis. “Carros, produtos eletrônicos, celular e a grande maioria dos bens que chegam aos consumidores globais circulam com menores restrições do que os produtos agropecuários”, disse a ministra.
À frente da Agricultura, uma das marcas de sua gestão tem sido liberar indiscriminadamente a licença para venenos. Nos primeiros 45 dias desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República, o ministério dela publicou a autorização de 57 novos produtos elaborados com agrotóxicos, segundo levantamento da ONG Repórter Brasil em conjunto com a Agência Pública. Entre as substâncias autorizadas, pelo menos 12 foram classificados como extremamente tóxicas – que é o maior grau toxicológico possível.
O Brasil é, desde 2016, o terceiro maior consumidor de agrotóxicos do mundo, segundo levantamento baseado em dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Está apenas atrás da China e dos Estados Unidos. Por aqui, consome-se algo em torno de 4,1 milhões de toneladas anuais dos produtos. O país é ainda o maior importador mundial, gastando anualmente em torno de 2,4 bilhões de dólares (cerca de R$ 9,13 bi) para comprar venenos.
Entre algumas das principais barreiras à agropecuária do Brasil estão imposições sanitárias. A União Europeia, por exemplo, proíbe pelo menos 60 ingredientes ativos de agrotóxicos que são permitidos por aqui, segundo a investigação nas prescrições da Comissão Europeia feita pela pesquisadora Karen Friedrich, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde.
Além disso, aceita-se, no Brasil, uma quantidade de resíduos de venenos muito maior do que as permitidas no Velho Continente. Nos alimentos, o limite de glifosato permitido na soja brasileira é 200 vezes maior do que além-mar; no feijão a quantia de malationa é 400 vezes superior e, na alface, 16 vezes. As informações são do atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”, da professora do Departamento de Geografia da USP Larissa Bombardi
Visão limitada
Abordar a segurança alimentar como um problema de barreiras comerciais tem os seus entusiastas. Um deles é o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, embaixador especial da FAO para o cooperativismo, que palestrou após Cristina na ANUFOOD Brazil. Os dois ainda foram acompanhados pelo argentino Manoel Otero, diretor Geral do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, que trouxe um panorama geral da América Latina para a oferta de alimentos ao mercado global.
Rodrigues, ex-ministro da Agricultura de Lula, fez declarações que costuma repetir em suas aparições públicas. Apresentou um dado da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo o qual a oferta de alimentos no mundo precisa crescer 20% nos próximos dez anos para que não a população mundial não seja atingida pela fome. Para que isso aconteça, de acordo com a OCDE, é necessário que a capacidade de crescimento a agricultura do Brasil, na próxima década, seja de 41%.
O embaixador da FAO é também um ferrenho defensor das exportações do agronegócio, referendando que o Brasil seja uma espécie de celeiro — ou fazendão — planetário. “Precisamos crescer [a produção agropecuária] para assumir a responsabilidade que o mundo está nos oferecendo”, afirmou na última terça.
Segundo ele, os conflitos mundiais decorrem da persistência da fome em alguns territórios. Se o país atingir a meta da OCDE, poderá se tornar “o campeão mundial da paz”, evitando, com a exportação de alimentos, o surgimento de novas disputas.
Rodrigues reduz, como fez Cristina, a discussão sobre segurança alimentar. De acordo com o ex-ministro, o assunto se trata de ganhar clientes e aumentar exportações. “O fato é que nós estamos em uma disputa de mercados gigantesca”, afirmou.
Não à toa, enquanto ganha força o discurso de que o agronegócio brasileiro é uma atividade econômica miraculosa, capaz de oferecer leite e mel de pedras, assiste-se no governo federal ao desmanche de duas das principais estruturas que foram responsáveis por favor o Brasil deixar o Mapa da Fome da FAO em 2014. A saber, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, extinto no primeiro dia do governo Bolsonaro, e a Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.