Foto: Erasmo Salomão/Ministério da Saúde

Ministro da Saúde abraça modelo ineficaz de rotulagem de alimentos e irrita organizações

Enquanto recusa diálogo com representantes da sociedade civil, Mandetta adere a sistema descartado por evidências científicas e ameaça atropelar Anvisa 

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, surpreendeu e causou polêmica ao indicar que pode virar a mesa do debate que se desenrola na Anvisa desde 2014 sobre um novo modelo de rotulagem de alimentos.

Como de praxe no atual governo, a explicação dada em entrevista à rádio CBN foi breve e sem embasamento científico. O ministro declarou que está amadurecendo dentro do ministério a ideia de adotar um modelo conhecido como “GDA italiano”.

“Há um grupo maior dentro do ministério, eu estou deixando eles debaterem, indo em direção ao informativo. Eu acho que é um modelo mais italiano, onde a Itália tem sido a maior protagonista.”

GDAs são sistemas de rotulagem que colocam na parte frontal da embalagem informações nutricionais-chave, como calorias, sódio, açúcar e gorduras saturadas. Esse modelo, criado na década passada, já havia sido descartado até mesmo pela indústria, que advoga por um sistema que coloca as cores do semáforo sobre cada um desses nutrientes.

Nesse debate, à diferença do que diz o ministro, a Itália não é protagonista.

O modelo de alerta em semáforo, proposto pela Rede Rotulagem

Pressões constantes

A intervenção do Executivo tem sido recorrente. Os dois ministros anteriores a Mandetta, Ricardo Barros e Gilberto Occhi, da gestão Temer, frequentemente se posicionavam sobre o tema. Em maio de 2018, em Genebra, Occhi chegou a apresentar uma proposta de modelo de rotulagem, também de maneira superficial e também causando reações negativas.

Responsável legal por regulamentar o tema, a Anvisa vem conduzindo as discussões sobre rotulagem nutricional há quase cinco anos, quando foi criado um grupo de trabalho técnico no órgão. A previsão é que o Relatório Final de Análise do Impacto Regulatório (AIR) e da minuta de resolução para Consulta Pública estejam disponíveis para deliberação da Diretoria Colegiada somente no segundo semestre de 2019.

Em meio a crescentes pressões da indústria, a Anvisa já teve de lidar com ameaças de atropelo do presidente Michel Temer, do ex-ministro Occhi e até do atual diretor-presidente, William Dib. Após assumir o cargo, em setembro do ano passado, Dib se alinhou aos desejos da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), posicionando-se contrário aos alertas.

Em nota, a agência informou que o Ministério da Saúde tem participado das discussões desde o início do processo, mas que o momento atual é de refinamento e avaliação das alternativas, levando em consideração ainda “a necessidade de observar os trâmites administrativos para deliberação de cada etapa do processo.”

“É preciso esclarecer que, contra o modelo italiano, pesam as diversas evidências científicas já disponíveis que indicam que o GDA (Guidelines Daily Amount) é um modelo que não auxilia os consumidores na compreensão das informações nutricionais, quando comparado a outros modelos, como de ranqueamento de alimentos, semáforos nutricionais e modelos que divulgam o alto teor de nutrientes”, diz a nota enviada à reportagem pela agência.

Recentemente, a área técnica da Anvisa publicou um relatório no qual consolida as contribuições apresentadas durante a primeira fase de consulta pública. Ao todo foram mais de 33.500 sugestões apresentadas por 3.579 pessoas. A maior parte se colocou a favor da adoção de alertas nos moldes do sistema criado e implementado no Chile em 2016. A expectativa é de que no segundo semestre a agência se posicione sobre um modelo, os pontos de corte para cada nutriente e um prazo de implementação.

A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), juntamente com outras 22 organizações empresariais que formam a Rede Rotulagem, propõe um modelo no qual as informações nutricionais são apresentadas na parte frontal das embalagens, “de forma clara e objetiva, com destaque em cores para as quantidades de açúcares, gordura saturada e sódio”.

Mais uma vez, as áreas técnicas do ministério e da Anvisa foram pegas de surpresa. Uma pessoa que acompanha as discussões diz que há uma mobilização em curso para responder ao ministro internamente e por meio de esforços com a sociedade civil.

A fim de entender melhor o posicionamento do ministro, a reportagem solicitou uma entrevista com o titular da pasta. Sem sucesso. A assessoria de imprensa do órgão também não respondeu aos questionamentos por e-mail.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que defende o sistema de alertas, publicou em seu site resposta à declaração do ministro da Saúde e afirmou que a autoridade demonstra desconhecimento sobre o processo técnico em andamento na Anvisa. “A fala do ministro diverge do que pesquisadores, profissionais de saúde pública nacionais e internacionais, além de entidades médicas e organizações internacionais, já apresentaram de evidência científica para o processo de aprimoramento da rotulagem no Brasil. Além disso, desconsidera a experiência dos países que já adotaram a rotulagem nutricional de advertência, como é o caso do Canadá, Israel, Peru, Uruguai.”

A Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, da qual o Idec faz parte, emitiu em seguida uma carta de repúdio. A coalizão de organizações e pesquisadores classifica o modelo do GDA como ultrapassado. “Não aceitamos que os interesses comerciais e econômicos interfiram no processo regulatório, ainda mais vindo na forma de conflito de interesses”, pontua trecho da nota.

Segundo a Aliança, diversos pedidos de audiência foram feitos ao Ministro da Saúde para tratar de políticas de controle de obesidade, entre elas a revisão da rotulagem nutricional, mas os pleitos não foram atendidos.

“É comprovado cientificamente que os rótulos frontais estão diretamente ligados ao aumento da informação, compreensão, uso e compra de produtos rotulados, particularmente entre os consumidores que estão atentos a sua saúde. Os consumidores preferem mensagens frontais simples e diretas que permitem visualização e compreensão rápidas.”

Ofensiva internacional

O assunto ainda vai render. Desde segunda-feira, 13, países-membro da Organização Mundial de Saúde (OMS) estão reunidos em Ottawa, no Canadá, para encontro do Codex Alimentarius sobre rotulagem. O Codex é um organismo conjunto da OMS e FAO, a organização das Nações Unidas para a alimentação, que tem a responsabilidade de definir normas comuns para as nações importadoras e exportadoras de alimentos e produtos comestíveis. Os acordos servem de baliza para a Organização Mundial de Comércio.

Existe uma queda de braço para evitar que o Codex crie uma definição que barre a adoção de alertas por outros países. Uma das propostas sobre a mesa tenta fazer com que qualquer sinal isolado com a inscrição “Alto em” seja vetado com base na alegação de que não ajudam o consumidor a aumentar a compreensão sobre a composição nutricional de produtos.

No final do mês, uma comissão do Ministério da Saúde irá a Genebra, na Suíça, para participar da Assembleia Mundial da OMS, espaço em que devem ser tratadas questões relativas à rotulagem.

A agenda no exterior motivou uma ofensiva global da Itália. O país publicou em sua página na internet um documento expressando insatisfação com a forma como a OMS tem lidado com a discussão sobre rotulagem de alimentos. “A Itália tem pedido repetidamente por mais transparência e participação dos países-membros”, expõe trecho do texto.

Ao que tudo indica, a principal força por trás desses argumentos é a gigante italiana Ferrero, especializada em doces, que recentemente adquiriu a divisão de biscoitos da Kellogs. Em movimentos semelhantes sobre rotulagem em outros países, a empresa também fez lobby para aprovar um modelo mais light de alerta nas embalagens. Foi o caso do Chile.

Em vigor desde 2016, a lei chilena restringiu as fotos e informações marqueteiras em embalagens de comida, proibiu a venda de produtos com alertas em escolas e não permite mais a exibição de publicidade dos mesmos na programação televisiva entre 6h e 22h.

No caso específico da Ferrero, o governo chileno proibiu a venda casada do chocolate Kinder com uma “surpresa”. A empresa defende o brinquedo como parte do produto, e não como um adendo promocional.

Curiosamente o modelo que a indústria italiana defende é o GDA, que aqui no Brasil já havia sido dado como superado por quem acompanha o assunto. Até o ministro da Saúde desenterrar na semana passada essa opção. Mas nem tudo é explicado pela coincidência do destino, não é mesmo? Pelo menos não em Brasília.

Por mais pressão que exerça – tanto no Chile quanto em outros países ainda sem legislação aprovada – a Itália não tem um modelo próprio de rotulagem, como é o caso de Chile, França e Austrália, atores importantes no debate internacional. É surpreendente que a Itália tente assumir protagonismo nessa questão.

No dia 10 de abril, o Consulado da Itália em São Paulo realizou um evento sobre os benefícios da dieta mediterrânea com apoio da Ferrero. A programação do evento incluía especialistas de nutrição para falar sobre a importância de uma dieta balanceada, sem restrições especificas a qualquer alimento, além do deputado Luis Roberto Lorenzato, representante da América Latina no parlamento italiano.

E por falar em Congresso, há algumas propostas sobre rotulagem de alimentos em discussão na Casa também. Agora basta saber quem vai conseguir fazer o lobby mais forte para aprovar as mudanças da forma como deseja: Anvisa, Ministério da Saúde, sociedade civil ou a indústria?

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