Flávio de Souza, vice-presidente da Nestlé, fala em feira de tecnologia de alimentos, ao lado de Walter Faria Júnior, presidente-executivo da J.Macêdo. Crédito: Fispal Tecnologia/Divulgação/Flickr

Executivo da Nestlé diz que ‘não vai aceitar’ alertas nos rótulos de alimentos

O vice-presidente de Assuntos Jurídicos, de Compliance, Assuntos Institucionais e Relações Governamentais da Nestlé, Flávio de Souza, afirmou que a empresa não vai aceitar mudanças no sistema de rotulagem frontal de alimentos. A declaração, um degrau acima do que soa amistoso, uniu-se às seguidas críticas que representantes da indústria têm feito ao padrão de advertência para produtos processados e ultraprocessados proposto pela Organização Pan Americana da Saúde (Opas).

Braço nas Américas da Organização Mundial da Saúde, a Opas recomenda o uso de selos com formato de polígonos pretos, colocados em rótulos, com os dizeres “alto em” para avisar sobre excesso de sal, gorduras e açúcar em alimentos. A ideia é que os alertas auxiliem o consumidor a evitar produtos que fazem mal à saúde. A proposta já está em vigor em países como Canadá, Chile, Peru e Uruguai e tem mostrado resultados. No Brasil, A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estuda adotar um modelo semelhante, com triângulos.

Modelos de rotulagem em discussão no Brasil

Souza é a mesma pessoa que assinou duas cartas se queixando de uma reportagem e uma publicação nas redes sociais de O Joio e O Trigo a respeito da Nestlé. Naquele momento, ele não falava em acionar a Justiça, mas dizia, em tom sugestivo e nada amigável, que nos convidava “a melhor avaliar, daqui em diante, qualquer informação divulgada” sobre produtos da empresa. Ele também mostrava, nas mensagens, rejeição ao modelo de rotulagem.

Segundo o executivo, os selos com polígonos pretos são uma intervenção indevida do Estado na vida das pessoas.

“Não vamos nunca aceitar e vamos até o fim. Vamos fazer o que tivermos que fazer, se o Estado pretender tutelar o consumidor naquilo que ele pode ou não consumir, seja como alimento, seja como bebida. Vamos até o fim.” O vice-presidente da Nestlé fez esta afirmação na quarta-feira (26), durante o fórum da Fispal Tecnologia, uma das mais importantes feiras tecnologia de alimentos e bebidas do Brasil, realizada no Expo Imigrantes, em São Paulo.

Na ocasião, representantes das empresas também criticaram o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.

Em sintonia com os pares da indústria de comida-porcaria, o executivo da Nestlé insinuou que o selo com triângulos provoca alarmismo e disse que é necessário ter “proporcionalidade regulatória”. “Nós estamos falando de um alimento, não estamos falando de um medicamento. Tem alguns modelos de rotulagem frontal que são piores do que tarja preta de remédio ou são piores do que símbolo de perigo em um defensivo agrícola.”

Alimentos ultraprocessados não são remédio nem veneno, no entanto, cada vez mais evidências científicas reforçam que estão associados a males à saúde, tendo relação, inclusive, com o aumento de índices de mortalidade.

Mas não existe bobo no futebol; muito menos, no meio empresarial. O ataque aos polígonos significa, ao mesmo tempo, a defesa do sistema de rotulagem que a indústria de alimentos quer emplacar junto à Anvisa. Embora a agência ainda não tenha decidido qual padrão pretende adotar, deu alguns sinais.

O modelo de triângulos pretos foi o que recebeu mais respaldo por parte das 3.579 pessoas que participaram da mais recente tomada pública de subsídios sobre rotulagem, ocorrida em abril. O último relatório da agência não definiu qual será o padrão adotado, mas o documento anterior a este, que avaliou as propostas de rotulagem com base nas evidências científicas disponíveis, havia se inclinado a favor da adoção dos alertas com polígonos.

As empresas de alimentação estão em campanha aberta para que a Anvisa adote outra rotulagem. Querem um selo em formato de semáforos, que mostra as cores verde (baixo), amarela (médio) e vermelha (alto) para os nutrientes de um produto.

Elas têm seus canais. Dentro da agência, um deles é o diretor-presidente William Dib. O dirigente, além de afirmar que o setor regulado deve participar das discussões sobre rotulagem, já foi publicamente elogiado por representantes da indústria. Para quem está à frente das discussões sobre agenda regulatória no Brasil, o sinal é de uma proximidade muito conveniente para os interesses privados, mas pouco apropriada para a saúde pública.

O modelo de alerta em semáforo, proposto pela Rede Rotulagem

“Nós apoiamos uma evolução [do processo de rotulagem frontal], de modo que os rótulos dos nossos produtos tenham uma rotulagem frontal que informa o consumidor sobre o perfil nutricional, as características nutricionais de cada produto. Mas isso tem que ser feito respeitando o direito do consumidor à informação. É um direito individual, é um direito constitucional”, detalhou Souza.

A campanha pelo modelo semafórico é tocada em frente pela Rede Rotulagem, um compêndio de 22 sindicatos patronais armado para uma ofensiva pública sobre o tema. Com este objetivo, ela reproduz o discurso de que não existe comida boa ou ruim. Repete, com frequência, o bordão de que é necessário se alimentar com equilíbrio, sem, é claro, falar em evitar os itens ultraprocessados.

“Equilíbrio. Tudo que a gente for fazer tem que ter equilíbrio. Na alimentação, não é diferente. Você tem que comer tudo com equilíbrio. Alimentar-se com equilíbrio”, disse Walter Faria Júnior, presidente-executivo da J.Macêdo, empresa que tem entre os carros-chefe as farinhas de marca Dona Benta. Ele também participou do fórum da Fispal.

A estratégia é uma espécie de blitzkrieg da informação. Foi muito utilizada por grandes corporações para conter a agenda regulatória de cigarros. Enquanto pesquisadores independentes chamavam atenção para os males que fumar provocava, a indústria fabricava evidências para lá de suspeitas tentando dizer o contrário. A briga perdurou por algum tempo, mas hoje não há dúvidas sobre os males do tabaco. Se uma proposta de rotulagem eficaz avançar, pode ser a vez dos ultraprocessados.

Por Guilherme Zocchio

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