Tem que mudar ‘isso daí’? Representante da indústria fala em alterar o Guia Alimentar

O presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas, afirmou que o País poderia fazer mudanças no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde. O documento do governo federal, publicado em 2014, classifica alimentos segundo o grau de processamento industrial. É dele que vem o termo ultraprocessados, usado para definir itens alimentícios que estão associados ao desenvolvimento de doenças e a mortes, como vêm mostrando uma série de estudos científicos.

O representante da Abia declarou que as empresas do setor precisam melhorar a comunicação com o governo para induzir alterações em um trecho específico do Guia Alimentar.

“O Guia, em si, tem muita coisa boa, mas exclusivamente o capítulo que fala da escolha dos alimentos passa longe da ciência e da tecnologia. E, aí, nós precisamos nos comunicar melhor com o nosso consumidor, com os nossos entes governamentais, inclusive, para tentar mudar essa ideia”, afirmou Dornellas. Ele fez a declaração na quarta-feira, dia 26 de junho, durante o fórum da Fispal Tecnologia, uma das mais importantes feiras brasileiras de tecnologia de alimentos e bebidas, realizada no Expo Imigrantes, na zona sul de São Paulo.

Apesar de não especificar qual tipo de mudança deseja, a afirmação soa ardilosa. Dornellas se referiu ao capítulo 2 do documento federal, intitulado A Escolha dos Alimentos. É essa passagem que define o conceito de ultraprocessados. O termo se tornou, nos últimos cinco anos, uma pedra no sapato da indústria por trazer à tona as evidências científicas que mostram que os ultraprocessados fazem mal. A Abia sempre foi crítica ao Guia Alimentar, mas nunca havia falado em alterações. Manifestar que quer mudanças pode ser sugestivo.

Como o Joio já mostrou, a indústria de alimentos nunca esteve tão próxima, quanto agora, do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os dois órgãos federais são os principais braços da agenda regulatória sobre alimentação no Brasil.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, abraçou, em maio, um modelo de rotulagem igual ao que corporações italianas defendem — descartado por ser ineficaz em outros países e para lá de camarada com a comida-porcaria. Já o diretor-presidente da Anvisa, William Dib, recebeu em março elogios públicos de um ex-cartola da Abia, Wilson Mello, que hoje está à frente da Investe São Paulo, uma agência de investimentos do Governo do Estado de São Paulo.

Some-se a isso as idas e vindas do governo federal. Somente no tocante à segurança alimentar e nutricional, as políticas públicas do atual ocupante da Presidência da República vão de mal a pior. Conte, para isso: o desmanche das estruturas de combate à fome, a exoneração de servidores experientes e as investidas contra o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Já falamos: não é mais cedo para dizer que Jair Bolsonaro não se importa com a fome ou com a miséria.

Se não for o bastante para soar o sinal de alerta, o evento em que Dornellas fez a afirmação era capitaneado por um dos mais ferrenhos e estridentes críticos ao Guia Alimentar. Trata-se do engenheiro Luis Madi, que é diretor de Assuntos Institucionais do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, um dos apoiadores da Fispal. “Não podemos ter um documento oficial do Brasil —um documento oficial do Brasil— falando ‘não coma isso’”, disse, na ocasião.

Sem meias palavras, ele, no entanto, incorreu em um engano. O Guia Alimentar não prescreve dietas, tampouco faz proselitismo. Não há qualquer passagem do documento cujo tom é proibitivo. Sobre os ultraprocessados, a mensagem ipsis litteris é “evite”, uma expressão que é bem diferente de “não coma”. Quem duvidar, que consulte um dicionário.

O ponto de Madi, de toda forma, não é sem nó. O Ital é um braço auxiliar da indústria de alimentos dentro do governo paulista. Embora integre o setor público, o engenheiro conclamou durante o fórum da Fispal que as empresas privadas de alimentação sejam mais proativos em defender os produtos que fabricam. O instituto de que é diretor, inclusive, mantém uma página na internet (alimentosprocessados.com.br), cujo objetivo é trazer mais informações sobre a fabricação de alimentos. Spoiler: o site alivia bastante a barra dos ultraprocessados.

O engenheiro Luis Madi (à dir.), à frente de executivos das empresas de alimentação (Foto: Fispal Tecnologia/Divulgação/Flickr)

Por que o Guia é importante

O Guia Alimentar da População Brasileira surgiu em um momento oportuno. Quando foi publicado, o Brasil passava por uma fase de transição nutricional da população. A fome estava em vias de ser superada, com a saída do Mapa da Fome, em 2014. Contraditoriamente, porém, os índices de problemas de saúde, como obesidade, hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes, decorrentes da alimentação ruim aumentavam em proporção semelhante.

O documento do Ministério da Saúde foi publicado com o intuito de oferecer orientações para manter, de um lado, o que era conquista e evitar, de outro, um problema que só aumentava. Com esse objetivo, ele dá três letras sobre os tipos de alimento: 1. consuma produtos in natura ou minimamente processados; 2. diminua a ingestão de processados; e 3. evite os ultraprocessados, porque fazem mal.

Velocidade máxima na marcha à ré. Cogitar alterações no Guia seria tocar em um documento que é referência mundial em discussões sobre saúde e alimentação. A classificação NOVA, na qual está fundamentado, quebrou paradigmas na nutrição, entre eles a ideia da Pirâmide Alimentar, que está para lá de ultrapassada. O capítulo 2, alvo das críticas da indústria, descreve os grupos de alimentos de acordo com os níveis de processamento e tratamento a que são submetidos.

O trecho em questão define quatro tipos. Primeiro, aqueles in natura ou minimamente processados, como frutas, verduras, leites pasteurizados e carnes. Depois, os ingredientes culinários, utilizados para temperar e cozinhar, como óleos vegetais, sal e açúcar. Em terceiro, os processados, fabricados com alimentos in natura adicionados de ingredientes para torná-los mais duráveis ou saborosos, tais como pães, queijos, geleias, comidas em conserva ou alguns enlatados.

Finalmente, o documento explica o que são os ultraprocessados. Trata-se de itens feitos a partir de complexas técnicas industriais, misturados a aditivos, alguns obtidos de petróleo e carvão, para disfarçar aparência, textura e sabor. Em geral, esses produtos contam cinco ou mais ingredientes na composição. Alguns exemplos são biscoitos,  sorvetes, balas e guloseimas, cereais açucarados para desjejum, bolos e misturas para bolo, barras de cereal e sopas, macarrões e temperos instantâneos.

Os produtos são desbalanceados nutricionalmente, não raro, extrapolam os patamares saudáveis de sal, gorduras e açúcar. Além disso, são comprovadamente nocivos. Para ficar no que há de mais recente, vejamos. Nos Estados Unidos, uma pesquisa mostrou que o consumo deles está associado ao ganho de peso, mesmo com a ingestão durante curtos períodos de tempo. Na França, novas evidências científicas reforçaram o elo dos ultraprocessados com o desenvolvimento de fatores de risco à saúde. Na Espanha, estudos chegaram a encontrar maior risco de morte relacionado à ingestão desses produtos.

(Foto do destaque: João Dornellas (à dir.), ao lado de executivos das empresas de alimentos.
Crédito: Fispal Tecnologia/Divulgação/Flickr)

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