Fechado em meio a desmonte, instituto de saúde analisou lobby da indústria de alimentos na América do Sul

Documento de órgão da Unasul identifica ações comuns das corporações em países da América Latina que adotaram sistemas de informação

Antes de anunciar o fechamento, o Instituto Sul-americano de Governo em Saúde publicou um estudo no qual analisa estratégias da indústria de comida-porcaria para evitar a adoção de alertas nas embalagens. Foi uma das últimas produções da organização, sediada no Rio de Janeiro e aberta em 2011 para assessorar a União de Nações Sul-americanas (Unasul).

Como notaram nossas parceiras do Outra Saúde, era uma vez um sonho de integração. “A organização intergovernamental, que tinha um foco menos comercial (por isso se distinguia do Mercosul) e mais desenvolvimentista, está sob ataque desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência. Em abril, o Brasil formalizou a decisão de sair da Unasul – numa debandada que incluiu a saída de Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. Os governos desses países querem criar um novo fórum, chamado Prosul, que também pretende abordar a saúde, mas de ‘forma flexível’.”

O instituto fechará as portas de vez em 30 de junho. Vale a pena ler o que foi produzido ao longo dessa década.

“Interferência da indústria de alimentos nas políticas de etiquetagem de alimentos processados na América do Sul” analisa as estratégias em cinco países que estão em implementação desses sistemas de rotulagem: Chile, Peru, Bolívia, Equador e Uruguai. Esses modelos surgiram como uma entre várias tentativas de frear o aumento nos índices de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, enfermidades cardiovasculares, hipertensão etc).

Como recorda o estudo, na América Latina essas doenças são responsáveis por ao menos 23% das mortes. E os índices de sobrepeso e obesidade avançaram 27,5% para os adultos e 47,1% para as crianças entre 1980 e 2013. Nenhum país sabe como frear essa escalada.

Embora a América Latina não tenha sido a primeira a adotar esses sistemas, foi pioneira na obrigação de que as empresas coloquem essa informação na parte frontal do rótulo. Também saiu na frente na criação de sinais exclusivamente negativos, caso dos alertas implementados no Chile desde 2016, e adotados no ano passado por Peru e Uruguai.

O Brasil discute essa possibilidade no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A expectativa é de que até setembro o órgão anuncie se pretende adotar de fato os alertas e quais as condições para isso.

Isso se o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deixar. Ele tem se declarado a favor do modelo defendido pela indústria de alimentos, numa investida que não chegou a ser captada pelos pesquisadores, já que se deu depois da produção do relatório. O político demonstra, inclusive, intenção de desconhecer as evidências científicas que mostram um melhor funcionamento dos alertas.

As estratégias mencionadas no estudo são rotina para quem acompanha os debates no Brasil. As mesmas corporações atuam com as mesmas artimanhas para tentar evitar ou enfraquecer a ação do Estado. Os pesquisadores dividiram essas ofensivas em cinco tópicos.

1) Negação da necessidade e da utilidade. Em todos os casos, a indústria argumentou que a informação disponível nos rótulos já é suficiente. A criação de um novo campo é, portanto, desnecessária e pode levar a confusões.

No Brasil, a maioria das pessoas que participaram da primeira fase de consulta pública na Anvisa opinou em contrário: as informações hoje existentes causam confusão e um sistema em destaque, com aval do Estado, e não das empresas, poderia ser útil.

2) Questionamentos técnicos. Essa é famosa: jogar com o regulamento debaixo do braço, procurando qualquer motivo. São tantos que o pessoal agrupou em cinco vertentes.

a) Tentativa de excluir algum grupo (refrigerantes, bebidas, lácteos).

b) Localização fora da parte frontal. Essa aí rolou no Equador: as empresas conseguiram autorização para colocar o semáforo nutricional em outras partes da embalagem. Você que se vire para encontrar.

c) Critérios para estabelecimento dos limites. O tamanho das porções e os limites adotados para classificar um produto como “Alto em” são questões que fazem toda a diferença. No Brasil, as empresas tentam mexer em ambos. Discordam da ideia da Anvisa de que as porções devam ser calculadas por 100 gramas ou 100 mL, o que facilita a comparação de produtos. A alegação é de que as pessoas, no geral, comem porções menores.

d) Questionamento de evidências. Desacreditar a ciência é tarefa antiga de qualquer setor industrial, a começar pela turma do cigarro.

e) Apresentação de evidências questionáveis. Essa é consequência da anterior. Se você quer confundir os tomadores de políticas públicas, é importante apresentar evidências científicas que vão no sentido contrário. No geral, são de má qualidade.

3) Consequências econômicas catastróficas são a regra. Talvez o Brasil tenha sido o caso mais escandaloso, mas não foi o primeiro. No Chile, as empresas previram que a adoção dos alertas causaria redução do consumo, perda massiva de empregos, aumento no custo de produtos, travas ao comércio exterior e perdas de arrecadação.

Já mostramos no Joio como ocorreu o contrário. A indústria gráfica teve de empregar mais gente para dar conta da demanda pelos selos de “Alto em”. Alguns segmentos industriais ganharam força. E ninguém ficou sem emprego.

De outro lado, o estudo ressalta que invariavelmente as empresas ignoram nessa conta os custos que obesidade e doenças crônicas causam para as pessoas e os sistemas de saúde. No Brasil, além de ignorar esse aspecto, o relatório encomendado pela indústria ignorou que as pessoas continuariam comendo: é como se elas entrassem em greve de fome permanente por ficarem com medo dos alertas.

4) Mídia. Em todos os países estudados, as empresas realizaram campanhas midiáticas tentando desacreditar a medida. Seja por publicidade, seja por artigos encomendados a “especialistas”, as empresas têm nessa via uma estratégia relevante.

5) Outras estratégias. Algumas das pessoas entrevistadas relataram suspeitas de corrupção. Outras falaram sobre conflito de interesses. Essa é mais fácil de identificar que aquela: há vários pesquisadores e organizações convocados a socorrer a indústria nessa hora.

No Brasil, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) articulou uma rede que reúne uma sociedade de nutrição, uma organização de defesa do consumidor, uma organização sobre consumo consciente e uma entidade pública de engenharia de alimentos. Todos têm histórico de relações econômicas ou com a Abia, ou com corporações específicas.

Por João Peres

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