Necessidade de limitar ingestão de ultraprocessados é convite para feiras livres, circuitos curtos de consumo e relações diretas com agricultores
Inflação descontrolada, crises de desabastecimento, guerras: carrinhos de supermercado vazios normalmente são vistos como problema. Mas há pelo menos um caso em que podem se transformar em solução.
“Se você pegar o Guia e for ao supermercado, eu convido as pessoas que não são da área, que vão trucar o que eu digo dizendo que eu sou da indústria”, afirmou Raul Amaral, do Instituto Tecnológico de Alimentos (Ital), uma estatal paulista que presta serviços para a indústria de ultraprocessados, durante um de muitos eventos voltados à mesma discussão.
O Ital é uma das pontas de lança contra o Guia Alimentar para a População Brasileira, que recomenda evitar os produtos fabricados com a consultoria do instituto. “Vamos lá ver se eu consigo encher um carrinho de produtos que atendam a todos os critérios considerados nocivos, que vários são muito questionáveis se são nocivos ou não, no supermercado. Na prática. Ninguém fez isso até hoje.”
O Guia, lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde, é bem claro sobre a necessidade de dar preferência a alimentos in natura e minimamente processados. E de limitar a ingestão de ultraprocessados, que são essas formulações feitas a partir de partes de alimentos e marcadas pelo uso de aditivos e por excesso de sal, gordura ou açúcar.
Fracassados os esforços de evitar o lançamento do documento oficial, a indústria de alimentos tem gasto os últimos anos tentando desacreditá-lo ou se apropriando daquilo que eventualmente convenha. Mais recentemente, passou a advogar abertamente pela revogação do Guia ou das partes incômodas.
O Ital, estatal sediada em Campinas, matou no peito essa missão. Lançou uma página na qual ataca o Guia. E fez uma publicação que compila os argumentos contra o documento do Ministério da Saúde.
Assistimos a duas apresentações de Raul Amaral na qual ele buscou convencer os espectadores de que essa história de ultraprocessados é um grande disparate: todos alimentos industrializados são iguais. E resultado de formidáveis avanços tecnológicos.
Uma das apresentações foi em 30 de maio de 2018, na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), durante uma bateria de palestras que buscou desacreditar a classificação dos alimentos segundo o tipo e a extensão de processamento.
Decidimos, depois disso, seguir o conselho de Amaral e tentar encher o carrinho. É, o Guia funciona: você deixa de encher o carrinho de supermercado e passa a encher o carrinho de feira.
No mundo todo, e em especial nos países ricos ou entre as classes médias e altas, há uma corrida em direção a produtos mais saudáveis. Há duas opções macro: buscar alimentos saudáveis dentro do próprio supermercado ou sair para procurar em outras partes.
Se você levar a recomendação do Guia ao pé da letra, além de evitar ultraprocessados, você passa a olhar para os modos de produção e distribuição dos alimentos. E aí é normal que o supermercado não seja a melhor alternativa. Feiras livres, armazéns, sacolões e relações diretas com os produtores tendem a crescer.
Um relatório lançado em junho de 2018 pela organização não governamental Oxfam ajuda a entender o quadro. “Hora de mudar. Desigualdade e sofrimento humano nas cadeias de fornecimento dos supermercados” mostra que as grandes redes concentram cada vez mais lucro e poder, enquanto a fatia dos pequenos agricultores é cada vez menor – 6,6% agora, contra 8,8% duas décadas atrás.
“Esse modelo de negócios proporcionou, a muitos consumidores, preços baixos, opções durante todo o ano e a conveniência de ter os produtos sempre disponíveis. Mas o modelo se baseia no enorme poder de compra dos supermercados, o que lhes permite exercer uma pressão implacável sobre seus fornecedores para que reduzam custos e assumam uma quantidade maior dos riscos da produção agrícola”, resume o relatório, dando mais alguns motivos para fortalecer relações diretas entre agricultores e consumidores.
Tentando encher o carrinho
Vamos pesquisar primeiro dentro do supermercado. É preciso fazer um esforço para separar processados de ultraprocessados. Em especial nas geladeiras é necessário pesquisar os rótulos para encontrar iogurtes, queijos e manteigas de boa qualidade. Comida congelada, via de regra, requer muita atenção, à exceção de algumas empresas que têm começado a se fortalecer com o fornecimento de refeições menos distantes das preparações caseiras.
Não vale a pena perder tempo nas fileiras de salgadinhos, doces, balas. Cereais? Nem: muito açúcar. Macarrão instantâneo? Muito sal.
O que sobra. Algumas carnes, arroz, feijão, farinhas, fubá, macarrão feito de farinha e ovos. Frutas e legumes. Mas, em muitos casos, você pode achar alimentos de melhor qualidade em feiras, sacolões, açougues, armazéns, mercados municipais.
A situação é um bocado diferente quando se olha para supermercados localizados em bairros de classe alta. Ali fica mais fácil encontrar alimentos minimamente processados e processados de boa qualidade. O problema é o preço.
Aí é que entra um enorme porém das mudanças de hábito de consumo a que assistimos nos últimos anos: está claro que as empresas podem fazer melhor do que vêm fazendo. Ultraprocessados se tornaram extremamente baratos justamente porque são formulações nas quais as empresas podem usar uma infinidade de ingredientes que saem a preços módicos. São ingredientes baratíssimos extraídos de soja, milho e trigo, mais um monte de aditivos.
A melhoria da qualidade tem, portanto, um custo. Será cruel se mantivermos a tendência de “salve-se quem puder”, porque significará prover alimentação de alta qualidade aos ricos e de péssima aos pobres. É claro o movimento de redução do consumo de refrigerantes entre as classes mais altas.
Demanda e oferta
Essa situação pode ser revertida por políticas públicas e por ação direta da sociedade. Impostos podem encorajar o consumo de alimentos saudáveis e desencorajar o consumo de alimentos não saudáveis. A distribuição é uma conhecida dificuldade de agricultores familiares. O acesso, em especial na periferia de grandes cidades, é outro obstáculo. Refeitórios comunitários, estímulo a feiras livres em áreas de baixa renda e compras coletivas são saídas possíveis. O fortalecimento de políticas de alimentação escolar é uma necessidade. E por aí vai.
“A canetada não resolve o comportamento do consumidor e do mercado. O sujeito vende essas coisas porque as pessoas compram”, resume Raul Amaral. Mas a própria apresentação dele mostrou sinais em contrário. Uma publicidade do Toddy em 1934 falava no “alimento mais completo e integral da natureza”, fundamental para estimular o crescimento saudável das crianças.
O poder da publicidade em moldar hábitos de consumo é autoexplicativo: não fosse assim, as empresas não gastariam milhões ao ano. As pessoas compram, mas por que compram?
O resultado pode ser aferido de várias maneiras. Embora a pesquisa lançada pelo Ital diga que os ultraprocessados não competem com outros grupos de alimentos, as evidências vão no sentido contrário. Poderíamos apenas olhar o carrinho de supermercado das pessoas.
Mas, se você quiser um pouco de ciência, seguidos levantamentos do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens) têm mostrado um crescimento desses produtos na fatia correspondente à ingestão diária. É o caso do Brasil, mas também de Canadá, Estados Unidos e vários países da Europa. O Nupens é o alvo preferencial do Ital.
O passo seguinte é óbvio: nossos corpos têm espaços limitados, apesar dos esforços constantes em promover o crescimento do sistema digestivo. Se alguma coisa entra no cardápio, outra tem de sair.
Conformismo
“Por mais que o preparo e realização de refeições na companhia de parentes e amigos possa promover o bem-estar comum, existem limitações de tempo, dinheiro, conhecimento, espaço e estado de ânimo, entre outros fatores comuns nas sociedades modernas, que levam as pessoas a optarem por refeições prontas e semiprontas, de forma esporádica ou habitual”, diz a publicação do Ital.
Raul Amaral vai além e considera que mudanças só seriam possíveis se as pessoas pudessem ir para casa usando teletransporte. Ele se valeu de uma enquete de internet que supostamente nos leva à conclusão de que os brasileiros não gostam de cozinhar. Certo conformismo com as condições de vida é uma constante entre pesquisadores alinhados à indústria: o mundo é assim e assim ficará.
“As jornadas de trabalho exaustivas e as longas horas para o retorno aos lares comprometem a disposição para preparar uma refeição fresca, por melhor que esta possa ser em relação às refeições prontas”, continua a publicação. “Existem milhares de pessoas que moram sozinhas, pessoas sem habilidades culinárias, sem condições financeiras de manter ingredientes em estoque para preparar refeições completas, que preferem usar o tempo para lazer ou para outras atividades em vez de cozinhar, e outras várias situações que dificultam a meta de preparar uma refeição no ambiente doméstico. Para essas pessoas, a recomendação de preparar a tomar refeições em casa torna-se quase uma utopia.”
Sim, é uma utopia. Das boas. A partir da alimentação podemos discutir uma série de questões. Se todo mundo estivesse felizão, seria o caso de deixar quieto. Quem tá feliz aí levanta a mão.
A ênfase em soluções individuais não é um acaso: se o problema é seu, não precisamos de políticas públicas que regulem a atuação dessas empresas. Mas, quando a alimentação se transforma num dos grandes problemas de saúde pública do século 21, não há como não abordar a questão coletivamente.
É claro que quem leva uma vida do cão não vai gostar de cozinhar, ainda mais quando carrega o fardo sozinho.
Um dos primeiros passos é liberar tempo. Precisamos trabalhar menos e ter acesso a um sistema de transporte que funcione.
Ah, tá, você quer dizer que meu chefe vai topar me liberar umas horas para poder cozinhar? Você, sozinho, não. Mas coletivamente é possível. Não só é possível, como é preciso: essa situação está atentando contra nossa saúde.
Nas duas apresentações a que assistimos, Raul Amaral fez uma “brincadeira”: mostrou uma foto de um casal cozinhando. E disse, ironicamente, que as mulheres sabem que a vida real é exatamente assim – algumas risadas surgiram.
Muitas décadas atrás, a indústria de alimentos apresentou duas teses centrais. Precisamos desse sistema alimentar, baseado em concentração de terra e alta tecnologia, para resolver a fome. E precisamos dele para resolver a divisão de tarefas dentro de casa.
Como sabemos, no século 21 não há nem fome, nem machismo. Só que não.
Há várias cartilhas, peças publicitárias, revistas que abordaram esse assunto desde a segunda metade do século. A demanda mais do que legítima das mulheres por igualdade de condições foi apropriada pelas empresas. Acontece que quem ficou à frente da cozinha é um desastre no sal, no açúcar e na gordura. A obesidade explodiu. E o problema da divisão de tarefas continua por aí.
Se você adotar o Guia, vai gastar mais tempo na cozinha, na feira, na seleção de ingredientes? Bem provável. É divertido? Muitas vezes, sim. Algumas vezes, não. Normal. Fica mais fácil quando você vê no seu entorno os efeitos do outro padrão alimentar, contrário às diretrizes oficiais do Brasil.
Sim, quem escreve esse texto é um homem branco de classe média. É muito mais difícil para uma mulher que trabalha doze horas por dia e gasta mais quatro no transporte. Quando chega em casa, às vezes carrega sozinha o peso de cuidar da molecada, da limpeza, do rango.
É aí que precisam entrar as políticas públicas. Além da desigualdade no transporte e no trabalho, há uma assimetria na informação. Muitas pessoas de classe alta se deram conta de que os ultraprocessados causam danos e decidiram procurar alimentos saudáveis.
Os produtos de melhor composição nutricional são caros. Assim como os alimentos frescos ficam cada vez mais caros à medida em que monocultivos vão avançando. Os dados preliminares do Censo Agropecuário do IBGE, divulgados em julho de 2018, mostraram avanço no cultivo de grãos que servem como base para alimentos ultraprocessados, concentração da terra e redução no número de pessoas que trabalham na área rural.
A reversão dessa tendência demanda políticas públicas articuladas para produção, transporte e distribuição. Algumas já existem, mas precisam ser fortalecidas. São os casos do Programa de Aquisição de Alimentos e do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Se esses projetos não forem incentivados, consolidaremos de vez o cenário em que ricos comem bem e pobres são obrigados a adoecer com a alimentação.
“Não é na canetada. Esse é o problema que precisa ser visto. É a lógica do mercado. Se você força a barra, a empresa sai do mercado. Muda. O capitalismo não acaba”, argumenta Raul Amaral.
Depende de qual canetada estamos falando. As empresas buscaram a canetada para impedir a Anvisa de adotar alertas na parte frontal dos rótulos.
Insiste-se que tudo passa por uma questão de educação: as pessoas é que não sabem comer. O alto lucro das corporações permitiria investir em programas de educação massivos. Mas tudo o que existe é tímido ou tem por finalidade divulgar a marca, e não resolver o problema. Já mostramos aqui no Joio como um projeto da Danone em escolas tentava estimular o consumo de iogurtes.
Aliás, vamos falar um pouco sobre iogurtes. A publicação do Ital se vale do iogurte para dizer que a classificação de alimentos como ultraprocessados não se sustenta. A única diferença do produto industrializado para o feito em casa seria o momento em que se coloca o açúcar.
Hum… Na sua casa tem amido modificado? Acidulante ácido cítrico? Conservador sorbato de potássio? Espessante goma xantana? Preparado de morango? Se você fizer iogurte em casa, provavelmente usará apenas leite. Os iogurtes vendidos no supermercado têm mais de uma dezena de ingredientes, e muitas vezes o açúcar aparece como segundo mais importante.
É verdade que o açúcar e o sal são abundantes historicamente na dieta dos brasileiros. O ônus do bônus de viver num país agrícola e com um litoral extenso. Mas os índices de obesidade explodiram nas últimas décadas, e não nos últimos cinco séculos.
Vamos pegar os dados que a Abia gosta de usar, dando conta de que produtos industrializados respondem por menos de 40% do consumo de açúcar. Há consenso de que a obesidade é causada principalmente por pequenos acréscimos de energia mantidos ao longo do tempo. É por isso que uma latinha de refrigerante por dia faz, sim, a diferença. Adicionados a qualquer dieta, esses 20% são o suficiente para causar estrago.