Agência usou pesquisa para alegar que os consumidores sentiriam “medo” dos alertas nos rótulos de alimentos, mas autoras do estudo discordam
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) distorceu evidências científicas fundamentais para a definição de um novo modelo de rotulagem de alimentos industrializados. A informação-chave para que a agência decidisse adotar uma lupa na parte frontal das embalagens foi tirada de contexto pela Gerência-Geral de Alimentos do órgão.
O processo se arrasta desde 2014 na tentativa de encontrar um sistema visual que melhor informe os consumidores sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas nos produtos. A Anvisa rejeitou o modelo de alertas, adotado de forma exitosa no Chile, alegando que causava “medo” na população. Esse argumento apareceu tanto no discurso da gerente-geral de Alimentos da agência, Thalita Antony de Souza Lima, como no relatório final que avaliou evidências científicas.
“Medo” também é um elemento central na forte campanha que empresas como Nestlé, Coca-Cola, Danone, Bauducco e Unilever fazem contra os alertas. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) diz que esse elemento apareceu numa pesquisa encomendada por ela, mas nunca nos permitiu acesso aos dados completos.
Agora, pesquisadoras responsáveis pelo trabalho utilizado pela agência para embasar a medida rejeitam essa conclusão. Integrantes do Núcleo de Estudos em Epidemiologia e Nutrição da Universidade de Brasília (Nesnut-UnB) se manifestaram na consulta pública aberta em outubro pelo órgão regulador. E declararam apoio aos alertas.
“Em relação ao item ‘a presença desse selo me causou medo’, esclarecemos que a pergunta, por sua simplicidade, não permite, de forma alguma, qualificar ou discriminar essa emoção básica, de sentidos e intensidade variados segundo a psicologia. Nossos resultados preliminares apontaram que, exceto em relação ao semáforo nutricional, não há diferença de média entre o triângulo, o painel (lupa), octógono ou círculo para essa pergunta.”
O relatório final publicado no início de outubro mostrava como o argumento da Anvisa era vago e não permitia concluir que o “medo” relatado por algumas pessoas fosse relevante ou reduzisse o impacto da colocação de alertas nos rótulos.
Medo é uma questão de extrema subjetividade. É algo que poderia levar a pessoa a evitar os produtos com alertas. Ou causar indiferença e fazer com que as pessoas continuassem consumindo.
Sistemas de rotulagem frontal são uma das medidas à disposição dos governos na tentativa de frear o crescimento dos índices de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer – 55,2% da população brasileira apresenta excesso de peso, segundo o último inquérito telefônico do Ministério da Saúde, divulgado em julho.
Todas as evidências científicas produzidas até hoje mostram que os alertas são o sistema que melhor cumpre o objetivo de desencorajar o consumo de ultraprocessados, como biscoitos, refrigerantes, salgadinhos, macarrão instantâneo etc. É, portanto, o modelo mais coerente com a mensagem-chave do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, que recomenda evitar a ingestão desses produtos.
O modelo foi criado no Chile e implementado em 2016. De lá para cá, Peru e Uruguai seguiram o mesmo caminho. No Brasil, esse sistema é defendido por uma coalizão de organizações da sociedade civil e pesquisadores reunidos na Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável.
A agência regulatória alegava, porém, que era preciso produzir estudos avaliando a percepção do consumidor brasileiro. Em 2017, lançou uma chamada pública em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) prevendo um gasto de até R$ 212 mil. Ao final, foram selecionadas duas linhas de trabalho. Uma, da Embrapa. Outra, do Nesnut-UnB.
O setor privado defende a adoção de um semáforo que exibe as cores verde, amarelo e vermelho para cada nutriente-chave. Não há evidência científica que mostre um melhor funcionamento desse sistema em comparação aos demais.
Assim se deu com as pesquisas encomendadas pela Anvisa. Tanto o estudo conduzido pela Embrapa como o realizado na UnB mostraram que os alertas são a melhor ferramenta para comunicar a necessidade de evitar certos produtos. A diferença é que o estudo realizado pelo Nesnut ainda não tem resultados publicados. Os dados foram coletados em agosto e estavam em fase preliminar de análise quando a agência tomou a decisão pelas lupas, alegando “medo” relacionado aos alertas.
As pesquisadoras ouviram 2.400 pessoas das cinco regiões do país por meio de uma plataforma online, na qual os participantes eram apresentados aos diferentes modelos de rotulagem frontal. Eles tinham de dar notas de um a cinco a uma série de questões.
Obtivemos acesso a dados da pesquisa. Em relação ao quesito “medo”, apesar de pequenas diferenças estatísticas entre os modelos analisados — triângulo, octógono, círculo vermelho e lupa — em nenhum dos casos a nota média ultrapassou 2,75. A nota um significa que a pessoa não concorda que cause medo. A nota cinco, que a pessoa concorda totalmente que cause medo.
Metodologicamente, isso quer dizer que as divergências são insignificantes e, portanto, insuficientes para justificar o argumento adotado pela Anvisa de que os alertas provocam medo nos consumidores.
Ainda que a agência decidisse que esse fator é relevante, a pesquisa quantitativa em si é insuficiente para a tomada de qualquer decisão. O passo seguinte deveria ser a realização de um estudo qualitativo no qual se pudesse entender o que causa medo e qual o resultado desse medo.
Perseguição aos alertas
A espera pelas pesquisas foi um dos motivos pelos quais o processo se arrastou ao longo de 2019. Foi só no começo de outubro que a agência abriu consulta pública, em novembro prorrogada por mais 30 dias. Com isso, uma definição sairá apenas em 2020, ainda sem previsão exata.
Mesmo com as pesquisas em mãos, a Gerência-Geral de Alimentos decidiu descartar as evidências e apegar-se a um aspecto específico para tirar do jogo os alertas. “Para identificar a opinião, preferência e atributos como confiança, desconforto e medo dos participantes em relação aos modelos de rotulagem nutricional frontal, cada participante respondeu ainda outras perguntas. O único atributo que apresentou diferença significativa entre os modelos testados foi ‘a presença desse selo me causou medo’, com um escore médio mais elevado no grupo do triângulo preto em relação ao grupo do semáforo nutricional.”
As lupas foram aprovadas inicialmente no Canadá, que promoveu uma adaptação do modelo chileno. Mas as pesquisas conduzidas pelos canadenses mostraram que os alertas funcionaram melhor que as lupas.
A Anvisa alega no relatório final que as lupas são o sistema que melhor cumpre o objetivo de informar. Não há evidência que embase essa afirmação. Além disso, as lupas não foram testadas quanto à legibilidade, ou seja, quanto à maneira como são vistas em pacotes reais de produtos. Em embalagens muito pequenas, as informações da lupa podem ficar simplesmente ilegíveis, o que não acontece com os alertas octogonais.
Isso é tão relevante quanto a percepção da população sobre cada sistema. É o motivo pelo qual o Chile adotou alertas pretos e não vermelhos: muitas embalagens são vermelhas. Por ora, entretanto, isso não entrou no radar da agência.
Anvisa: resumidíssima
Em nota, a Anvisa, que raramente retorna os questionamentos da equipe do Joio, foi breve ao responder as perguntas relacionadas a esta reportagem. A assessoria de imprensa da agência argumentou que “a consulta pública sobre a proposta de rotulagem nutricional ainda está em andamento e as contribuições ainda estão sob análise pela agência. Assim, não é possível comentar contribuições específicas e de forma individual, pois este não é o objetivo da consulta pública”.
Veja a íntegra da nota:
“A consulta pública sobre a proposta de rotulagem nutricional ainda está em andamento e as contribuições ainda estão sob análise pela Agência. Assim, não é possível comentar contribuições específicas e de forma individual, pois este não é o objetivo da Consulta Pública.
Em relação à pesquisa conduzida pelo Nesnut-UnB e suas eventuais limitações, objetivos e achados, é importante esclarecer que esta pesquisa não é a única fonte científica que compõem o conjunto de documentos e dados analisados pela Anvisa.
Dessa forma, o trabalho em questão não pode ser olhado de forma isolada, afinal não constitui o único dado disponível e analisado no contexto da investigação da Anvisa pelo modelo de rotulagem nutricional mais adequado à população brasileira.”