Campanha do governo paulista para doações contra o coronavírus arrecada e distribui toneladas de alimentos ligados a problemas de saúde
João Doria (PSDB), governador de São Paulo, embora diga que respalda na ciência decisões para o combate à pandemia de Covid-19, não obedece o mesmo critério para outro tema de saúde igualmente importante. Capitaneada pelo tucano, a chamada “onda de solidariedade” contra o coronavírus, que arrecada doações de empresas e indivíduos no Estado, engolfa uma desatenção, no mínimo, para a qualidade dos alimentos.
Desde o início da crise sanitária, o Poder Executivo paulista tomou a frente de uma campanha para oferecer itens de necessidade básica a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Dentre as doações que recebeu, no entanto, abundam alimentos ultraprocessados, que, segundo evidências científicas, estão relacionados a diversos males de saúde — inclusive, fatores de risco para casos fatais de Covid-19.
Isso é, após a primeira ressaca, a tal “onda solidária” da qual Doria e algumas mega-corporações se jactam revela que é, na verdade, um tsunami de comida-porcaria.
O Joio e O Trigo fez um levantamento dos alimentos obtidos pelo governo estadual até 22 de abril em documentos que divulgam as ações sociais de combate à pandemia. Recebidos à cifra de centenas de toneladas, sobressaem-se achocolatados, bolachas recheadas, carnes processadas, compostos lácteos e sopas instantâneas, entre outros itens cuja recomendação de autoridades sanitárias é não consumi-los.
São alimentos ultraprocessados e devem ser evitados, de acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira. O documento, do Ministério da Saúde, é a principal referência no país com evidências científicas sobre comida saudável. Ele divide os alimentos em quatro grupos conforme o tipo e o propósito do processamento (1. in natura/minimamente processados, 2. ingredientes culinários, 3. processados e 4. ultraprocessados).
Na lista de doadores em São Paulo constam, com destaque, empresas com um portfólio rico em ultraprocessados. Bauducco, Nestlé e Danone entregaram, respectivamente, 80 toneladas de bolachas variadas, 210 toneladas de produtos alimentícios e mais 130 toneladas de itens refrigerados e sem refrigeração, como cereais infantis e um velho conhecido do consumo de açúcar entre as crianças, o Danoninho.
O governo informou que não detalharia todos os produtos que recebeu, já que “os processos são volumosos e estão em constante mudança”. Mas citou, entre as doações, achocolatados Nescau, biscoitos cream cracker e wafer, bolinhos sabor laranja, bolachas Bono, Nesfit e Garoto Cookies, cereais Mucilon e Multinutri, compostos lácteos, como Activia, Danoninho, Danette e Yopro Smoothie, e sopas instantâneas da marca Sopão Maggi.
Na relação, há alguma coisas curiosas, digamos. Por exemplo, lista-se o recebimento de mais de 600 mil unidades de queijos processados do tipo UHT.
Além disso, a Cacau Show ofereceu 32.294 unidades de chocolates em barra. O registro da doação ocorreu 10 dias após o feriado de Páscoa, enquanto São Paulo ainda estava sob quarentena. Procurada, a companhia não respondeu aos contatos desta reportagem. O governo tampouco explicou o destino específico tanto dos queijos quanto dos chocolates. Um fondue, talvez?
As empresas que responderam à reportagem, por seu turno, não detalharam quais —nem em qual quantidade exata— foram os produtos que ofereceram.
Por meio da assessoria de imprensa, a Nestlé disse que “dentre os itens estão principalmente leites, sopas, biscoitos e cafés, entre outros, além de complemento nutricional Nutren Senior para idosos em lares de permanência no estado de São Paulo”.
Em nota, a Danone não respondeu aos questionamentos do Joio e declarou oferecer “suplementação especial para adultos e idosos, iogurtes com probióticos e produtos de origem vegetal”.
Já a Bauducco não deu retorno até a publicação deste texto.
Além dessas companhias, outra grande doadora de alimentos foi a Minerva Foods, com a oferta de 20 toneladas de frango em molho, 20 toneladas de almôndegas e 30 toneladas de carne em cubos. A empresa afirmou que priorizou doações de alimentos “que podem manter a sua qualidade para consumo por um tempo adequado para a distribuição aos beneficiados”.
Cestas básicas
Um dos destinos das doações de ultraprocessados, segundo o governo do Estado, são as cestas básicas distribuídas pela Secretaria de Desenvolvimento Social. Destinadas às famílias com renda per capita mensal de até R$ 89,00, elas são projetadas para durar um mês para grupos de até quatro pessoas.
O kit contém velhos conhecidos da dieta brasileira, como o arroz (5kg), o feijão (3kg) e o fubá (500g). Mas, sob a justificativa de priorizar alimentos não perecíveis, também entrega alguns jabutis. São pelo menos três itens ultraprocessados na cesta: 2 kg de composto lácteo, 1,9 kg de linguiça e 400g de biscoito maisena.
A secretaria diz que “os alimentos contidos na cesta são de longa vida útil, possibilitando o armazenamento antes e depois da distribuição”.
O governo paulista não diz considerar o Guia Alimentar para a organização do kit, mas encontra respaldo em outro documento sobre alimentação no Brasil. Em geral, o conteúdo de uma cesta do tipo é montado de acordo com o que diz uma metodologia do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para cálculo de itens básicos.
O Dieese toma como padrão os produtos listados no decreto que instituiu o cálculo para salário mínimo no país. A regra, oriunda do Estado Novo de Getúlio Vargas, discrimina uma série de alimentos que servem como parâmetro de consumo mínimo, mas também admite que alguns itens podem ser substituídos por outros de valor nutricional equivalente, o que dá margem para trocar, por exemplo, carnes frescas por embutidos.
Farinata, graças a Deus
Não é de hoje que as políticas de segurança alimentar e nutricional sob as mãos de Doria buscam destinar ultraprocessados aos mais pobres. Em 2017, quando prefeito de São Paulo, ele sugeriu distribuir um composto industrializado formado com alimentos próximos ao vencimento ou descartados para a população em situação de rua.
O composto foi batizado de farinata, e a proposta de entregá-lo pela capital paulista provocou duras críticas da sociedade civil. Mais tarde, o tucano abandonou a ideia.
No entanto, na mesma época, ganhou notoriedade um vídeo de 2011, no qual ele, então à frente do programa de televisão “O Aprendiz”, dizia que gente pobre não tem cultura alimentar.
“Hábitos alimentares?”, afirmou Doria a um participante do reality show. “Você acha que gente humilde, pobre, miserável, lá vai ter hábito alimentar? Você acha que alguém pobre, humilde, miserável infelizmente pode ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que dizer graças a Deus. ”
Instado, à época, a se posicionar sobre o conteúdo do vídeo, o tucano declarou não se lembrar do que disse. “Desconheço esse vídeo. Não assisti a esse vídeo, desconheço. Não posso nem comentar sobre isso”, afirmou em uma entrevista coletiva em outubro daquele ano.
Na mesma ocasião, no entanto, repetiu o teor do que havia dito na televisão. “O pobre tem fome, não tem hábito alimentar. Por que essa insistência em um tema como esse?”, afirmou, de acordo com reportagem do portal UOL.
Um exemplo celeste
Ainda dá tempo de mudar. Se o governador de São Paulo quiser dar à segurança alimentar o mesmo rigor que dá às decisões sobre a quarentena, pode se aproveitar de um exemplo celeste. No Uruguai, o Ministério do Desenvolvimento Social decidiu centralizar as doações de alimentos para evitar que ultraprocessados fossem entregues a crianças e a grupos de risco. E criou um protocolo para avaliar cada doação tomando como base o Guia Alimentar para a População Uruguaia, inspirado no modelo brasileiro.
O documento cita explicitamente que boa parte dos uruguaios sofre de doenças crônicas e que um alto consumo de ultraprocessados coloca em risco a saúde. Com isso, esses produtos, quando doados, são submetidos à análise de um comitê técnico. Exige-se “a intervenção de uma equipe de apoio de nutricionistas para definir a aceitação, condições, quantidade de uso e possíveis destinos”.
Colaborou João Peres