Como a tortilla, item central da alimentação, foi sequestrada por corporações. Avanço do agronegócio e abandono da agricultura camponesa no Brasil nos aproximam das cenário desastroso do país do Norte
Eu estava realmente feliz de poder visitar uma tortilleria de primeira. Sempre fico feliz quando se trata de comida mexicana autêntica. Essa explosão de sabores surgidos da mistura de alimentos frescos me encanta como poucas coisas na vida.
Estava em Coyoacán, na zona sul da Cidade do México, área famosa por abrigar a ex-residência de Frida Kahlo e a casa onde foi morto Leon Trotsky. As pessoas haviam feito parecer que era fácil e rápido chegar à Cal y Maiz.
Como sempre fazem parecer na Cidade do México: tudo parece perto para quem está acostumado a deslocamentos que deixam qualquer paulistano boquiaberto. De fato, olhando no mapa, ainda parece bem perto. Não são mais que algumas quadras. Mas algumas quadras, na capital do país, podem demorar 30, 40 minutos a cruzar. Como de fato demorou.
Ao final, a Cal y Maiz é um lindo estabelecimento onde me deparei com milhos de todas as cores. Milhos nativos, eles dizem. Foi ali que eu comi algumas tortillas maravilhosas. Pretas, laranja, vermelhas, amarelas. Uma delas estava recheada de flor de abóbora, o que é, para mim, um encontro entre duas coisas que jamais podem dar errado.
Mas é um lanchinho com um preço salgado. Um pacote com dez tortillas custou o equivalente a oito reais, enquanto um quilo de tortillas, que é mais ou menos o dobro disso, custa em torno de três reais.
Leia aqui a primeira parte do texto.
Mais cedo, em Coyoacán, eu havia me reunido com várias integrantes da Alianza por Nuestra Tortilla, uma coalizão de movimentos e pessoas. O que me chamou a atenção nesse grupo, ainda em 2018, foi a existência de um decálogo que inclui a preocupação em valorizar a tortilla, mas sem gourmetizar.
A tortilla significa muito mais para os mexicanos que o pão para nós. É o elemento fundamental de cada refeição e a principal fonte de energia. Cada pessoa consome de sete a dez por dia.
O interessante do livro de Kirsten Appendini, professora do Colégio de México e uma importante pesquisadora na área de políticas públicas, que tomamos como uma das bases para essa reportagem é que foi escrito em 1991, quando a agenda de desmonte estava a pleno vapor, e ganhou um capítulo atualizado uma década mais tarde, quando essa agenda havia se consolidado.
A pesquisadora já alertava que em alguns estudos estava ficando claro que “são as unidades domésticas de estratos alto e médio as que em maior medida produzem os próprios alimentos e que, no caso da tortilla, são as primeiras que as elaboram em casa. Assim, inclusive na zona rural, a tortilla de milho crioulo elaborada com massa nixtamalizada pode estar se convertendo em um artigo de luxo!”.
Sim, a tortilla de massa nixtamalizada é um luxo. Hoje, essa massa é a exceção. Embora a indústria de tortillas mexicana ainda seja altamente pulverizada, boa parte dessas tortillas é produzida com farinha, ou com um misto entre farinha e grão. E, de quebra, agora essa indústria concorre com as tortillas de supermercado e com o pão, antes pouco presente na mesa do mexicano.
Para as integrantes da Alianza, não há segredo: o Estado mínimo não será capaz de resolver o problema. “É preciso instalar mecanismos de diferenciação. Se você quer pagar o que custe pela tortilla gourmet e tem possibilidade de fazê-lo, faça, e tenha consciência de que está pagando tudo o que isso representa, porque trouxeram milho da zona mais remota”, opina Mariana Ortega Ramírez, consultora ambiental e membro da coalizão.
“Tem um sabor especial que só você ou poucas pessoas são capazes de identificar. Entende? Hoje, os jovens não sabem diferenciar. É preciso que todas as opções estejam de fato disponíveis. O que se conhece por tortilla, hoje, é o que vende a Maseca. O que o mundo conhece por tortilla é o que vende a Maseca.” Maseca controla boa parte do mercado de farinha.
Blanca Mejia, diretora do Conselho Reitor da Tortilla Tradicional Mexicana, quis se somar à Aliança exatamente porque viu que a tortilla da infância se perdeu. Ficou caríssima. Ela mesmo produz uma tortilla mista de grão e farinha. “Essa tortilla gourmet me parece algo discriminatório. Eu decidi me integrar à Aliança com essa inquietude. Com vontade de apoiar porque, como parte da indústria, quero que os milhos nativos cheguem a todas as pessoas, que é um direito constitucional. Que não se tenha de pagar um sobrepreço por elas.”
A corrupção dos outros
Blanca é testemunha de muitas das mudanças que esse alimento tradicional sofreu ao longo de décadas. Ela cresceu na tortilleria da família, que até hoje administra. No México, como no Brasil de Jair Bolsonaro, a corrupção foi o pretexto para o desmonte das políticas públicas. Havia ineficiências, de fato. Havia desvios, de fato. E há que se perguntar se um controle absoluto do Estado é o melhor caminho para garantir políticas de produção, distribuição e consumo de alimentos. Os sinais indicam que não.
Mas, como defende Kirsten Appendini, o contrário tampouco é solução. A visão de que apenas o poder público é corruptível soa pueril. O que aconteceu, como no Brasil de 2020, foi o benefício de uns poucos grupos econômicos enquanto corria solta a ladainha de combate à corrupção e salvação da pátria.
Uma das invenções do governo foi a criação de tortibonos, ou seja, de cupons que eram trocados por tortillas. Inicialmente, as pessoas mais pobres compravam usando esses cupons. O tortilleiro tinha de repassá-los aos responsáveis pelos moinhos, que por sua vez o trocavam por dinheiro em sindicatos e em outras organizações ligadas ao partido do poder, o PRI. Depois de um tempo esses subsídios passaram a ser das fabricantes de farinha. No caso, especialmente uma, a Maseca, que até hoje reina absoluta no mercado de farinha de milho mexicano.
É uma história que arrepia Blanca. “Cria-se esse subsídio às farinheiras de seis pesos e 50 por cada quilo de farinha. Quando o quilo de farinha estava em seis pesos. O que quer dizer? O governo comprava a farinha diretamente para que as farinheiras transferissem a nós esse benefício – porque isso era o negociado. Mas isso jamais aconteceu. Nunca vi um peso desse dinheiro.”
Ao mesmo tempo, as farinheiras foram adaptando o maquinário para que a tortilla feita com farinha fosse mais fácil e barata de fazer. Há dois tipos de tortilla. A tradicional passa por um processo de nixtamalização: o grão é fervido em água e cal de cozinha e repousa durante 24 horas até que possa ser moído e transformado numa massa bem macia.
“O grão, ao ter contato com a água, o calor e um meio alcalino, o que faz é aumentar em 30 vezes a quantidade de cálcio que há no produto final”, explica Julieta Ponce, nutróloga e uma das integrantes do Sin Maiz no Hay País, uma coalizão de dezenas de movimentos que se juntaram na primeira década do século sob o mote de que os camponeses já não aguentavam mais.
Ela pode passar minutos listando benefícios da nixtamalização para o organismo. E de fato fez isso enquanto conversávamos num hotel no Zócalo, a praça central da Cidade do México. “O crescimento de volume, a nível de intestino grosso, o que faz é alimentar bactérias boas que favorecem uma estabilização da microbiota a favor dos processos de controle de obesidade, controle de diabetes, prevenção de certos tipos de câncer.”
A tortilla de farinha é simplesmente farinha e água. Em muitos casos, as tortillerias misturam os dois métodos para aumentar o rendimento.
“Não era muito prático fazer a tortilla de farinha porque você tinha que investir, tinha que mudar os modos de produção. Saía totalmente da sua dinâmica”, recorda Blanca. “Então, o que fizeram as farinheiras foi dar de presente. Isso é um ditado das feministas: quando você recebe algo de graça, o presente é você. Eles davam as máquinas, pintavam os locais, mudavam tudo.”
A produção de farinha foi de 745 mil toneladas em 1978 para 2,3 milhões de toneladas em 1989, segundo dados de Kirsten Appendini. A promessa era de uma melhor administração dos recursos públicos, o que nunca se provou verdadeiro. Os tortibonos tampouco resolveram o problema da fome: apenas 1,3 milhão de famílias eram beneficiadas em 1989.
Como a ideia é comparar, no Brasil de hoje, a fila de pessoas à espera do Bolsa Família foi do praticamente zero, em 2018, a 3,5 milhões ao final de 2019.
Do milho ao milho
Em 1982, o livro Milho, fundamento da cultura popular mexicana alertava que a relação de diálogo entre a cultura mexicana e o milho ia mal. A atuação de megacorporações na engenharia genética, no controle de mercado e na perda de diversidade estava começando a se fazer sentir com força.
“Pouco a pouco o milho é menos camponês e mais industrial. Menos popular e mais produto transnacional.”
O livro notava o crescimento do milho, ou de fragmentos do milho, em cada vez mais produtos industrializados do outro lado da fronteira. Eram 200 produtos desse tipo nos supermercados de Washington, capital dos Estados Unidos, em 1962. Em 1975, já eram um quarto dos produtos com algum derivado de milho. Um milho que pode piorar à vontade de qualidade porque já não é usado para comidas, para preparações culinárias, mas para produtos padronizados e consumidos em larga escala. Para xarope de alta frutose, que substitui o açúcar em produtos ultraprocessados.
Isso acendeu o sinal de alerta entre movimentos sociais. Dezenas deles se juntaram no Sin Maiz no Hay País, que buscava defender o milho mexicano da concorrência desleal com o alimento que vinha do outro lado da fronteira.
Eram duas lógicas totalmente diferentes colocadas para competir sob a batuta do livre mercado. Enquanto o milho mexicano tinha a qualidade como referencial, o dos Estados Unidos buscava produtividade. E contava com fartos subsídios (ou seja, nada de Estado mínimo). O resultado foi um atropelo brutal.
Mas a mobilização social conseguiu evitar uma perda ainda maior. Freou-se o cultivo de milhos transgênicos. E tenta-se hoje em dia aprovar uma legislação que defina a proteção ao milho crioulo, ou seja, ao milho tradicional.
A luta, porém, não é nada fácil. Se você gosta de Estado mínimo, é bom lembrar que ele pode andar de mãos dadas com a milícia. Porque, onde falta poder público, surge um poder privado ainda pior. No caso do México, foi o narcotráfico. No caso do Brasil, bom, estamos pagando pra ver. Quem sobreviver, verá.
Julieta Ponce conta como isso afetou a mobilização em prol de algo tão básico quanto a alimentação em meio à ameaça a algo ainda mais básico. “Era muito cansativo sustentar o movimento. Porque, quando começa a criminalidade e a guerra contra o narcotráfico, toda a luta se atomizou, porque era mais importante defender a vida. Porque já não podíamos lutar pelo milho quando estão matando as mulheres, quando começaram a desaparecer pessoas.”
O preço a pagar
Saber o preço da tortilla é importante. Porque é o tipo de coisa que pode levar a convulsões sociais. Mas, em 2011, em meio a uma subida de preços, o então candidato à presidência Peña Nieto disse desconhecer a quantas andava: “Não sou a dona de casa [da minha casa].”
Já eleito, Nieto aprendeu rápido um outro preço.
A Coca-Cola é um sinônimo de eficiência no México. Ela está em todos os lados. Há uma loja exclusiva num calçadão a poucos metros do palácio presidencial. O refrigerante se entranhou nos hábitos familiares. Nas zonas rurais. Em rituais religiosos.
A ponto de o presidente López Obrador haver declarado que, se a corporação chega a todos lugares, também a medicina terá de chegar. Há 1,5 milhão de pontos de venda, segundo a ONG El Poder del Consumidor, criada justamente quando ficou claro que a água havia batido na bunda.
“Talvez o alarme tenha soado em 2006, com a Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição”, conta Alejandro Calvillo, da ONG El Poder del Consumidor. “A anterior havia sido feita em 1999. Então, em sete anos, esse relatório informou que havia crescido muito o sobrepeso entre crianças e que a obesidade em crianças de 5 a 11 anos avançou 40%.”
No Brasil, o alarme soou na mesma época. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE mostrou um aumento rápido no consumo de ultraprocessados. Até então, a comunidade científica se perguntava por que diabos a obesidade vinha avançando de maneira assustadora. Começava a surgir uma resposta.
Mas as soluções tardaram a chegar. O México conseguiu na década seguinte aprovar um imposto especial sobre refrigerantes e companhia. Em 2020, regulamentou a adoção de alertas para informar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras, além de avisar sobre a presença de adoçantes e gorduras trans.
O Brasil, pelo contrário, ainda subsidia pesadamente a produção de refrigerantes com um esquema de tributação envolvendo a Zona Franca de Manaus – ao menos R$ 7 bilhões ao ano, caso você queira conversar um pouco mais sobre Estado mínimo.
México e Brasil caminham de mãos dadas no que diz respeito à inflação de alimentos básicos. Como nota Gerardo Otero, em The Neoliberal Diet, em especial as camadas mais pobres da população são afetadas pela alta de preços desde que os mexicanos mergulharam no acordo com Estados Unidos e Canadá. O Brasil, ainda segundo o levantamento dele, tem o pior índice de inflação de alimentos básicos.
A crença de que o livre mercado dará conta de regular os preços não tem sobrevivido à realidade. No último trimestre do ano passado, o Brasil teve uma amostra nada grátis. Um problema sanitário na produção chinesa levou o país asiático a demandar carne em gigantes quantidades. No ano, as carnes subiram 32,4%, sendo 27,61% apenas em novembro e dezembro.
Na visão da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, algo normal e que não demanda intervenção do poder público: com o tempo, as coisas se ajeitam. Até agora, em cinco meses fechados de 2020, não se ajeitaram.
No primeiro bimestre de 2020, o preço do feijão carioca subiu 23,35%. O principal motivo é uma quebra de safra por razões climáticas, mas, como temos mostrado, a área destinada à produção de alimentos básicos é cada vez menor.
Enquanto o país bate mais um recorde de safra de soja e milho, com previsão de 251 milhões de toneladas que serão majoritariamente exportados, os itens do dia a dia ficam mais caros, mais escassos, mais gourmetizados. A área cultivada com feijão equivale a 2,5% do território tomado pela soja.
Tereza Cristina repete o México dos anos 1990 ao dizer que não há separação entre agricultura familiar e agronegócio. Para ela, os pequenos produtores devem ser uma cópia em miniatura dos grandes. A diferença é que os maiores acessam bilhões ao ano e conseguem pressionar o presidente da República a adotar uma série de medidas que vão da infraestrutura ao (não) combate ao desmatamento, passando pelas leis trabalhistas.
Como sempre, a visão neoliberal ignora que há vários mercados dentro do mercado. E que há vida para além do mercado. Há muitos arranjos possíveis. De novo, olhar para o México ajuda a entender a treta.
Entre os ejitadários, aqueles que controlavam as terras comunitárias, havia gente produzindo para subsistência e gente com boa possibilidade de comercialização. Para além deles havia uma agricultura comercial. Uma agricultura comercial que sempre soube migrar rápido para culturas rentáveis.
A superfície agrícola mexicana perdeu 3,6 milhões de hectares entre 1983 e 1989, o que correspondia a mais ou menos um sexto do total. Milho, feijão, arroz e trigo responderam por boa parte desse recuo, o que fez com que a produção fosse de 19,6 milhões de toneladas em 1981 para 16 milhões ao final da década. Com isso, as importações subiram.
“Ao final da década, mais da metade da produção de milho não era rentável”, assinala Kirsten Appendini. “Os apoios à produção haviam se desmantelado e a abertura comercial anunciava que os produtores deveriam ser competitivos, eficientes – agora em padrões internacionais – e deixar de depender de subsídios estatais.” Como de praxe, os produtores de médio porte com alguma inserção no mercado foram os mais penalizados pela retirada do Estado. Na época, pequenos e médios respondiam por 85% da produção de milho.
López Obrador tem por hábito dar uma entrevista coletiva todos os dias muito, muito cedo. Quando eu estava lá, em dezembro de 2019, uma dessas entrevistas foi para anunciar a criação de um programa que garantirá preços mínimos aos produtores de alimentos básicos. A ideia é formar estoques públicos a serem distribuídos entre a população de baixa renda e dificultar a vida de atravessadores, que acabam encarecendo o preço final.
Mais ou menos nos moldes do que fazia a Conasupo, ainda que com um poder bastante reduzido. Mais ou menos como fazia a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no Brasil, até o início de uma agenda de desmonte que está cortando drasticamente os programas de compra de alimentos e os estoques estratégicos.
No Brasil, o Estado mínimo convive tranquilamente com subsídios máximos ao agronegócio. Enquanto isso, definham os incentivos aos pequenos e médio. Não é difícil entender onde acabaremos.