Denise Matsumoto/O Joio e O Trigo

Covas e Doria deixam legado de incertezas na alimentação escolar em São Paulo

Após farinata, vaquinhas e terceirização de compras, herança tucana é de desafios e interrogações quanto à garantia de comida para 1 milhão de crianças e adolescentes

Com o palco montado, o então prefeito da cidade de São Paulo, João Doria Jr. (PSDB), preparou um grande anúncio, pouco tempo após tomar posse, em fevereiro de 2017: cortaria pela metade o Leve Leite, um dos principais programas municipais de combate à desnutrição infantil. Dita e feita sob a justificativa de economizar recursos públicos, a medida foi só a primeira que ele e o atual mandante Bruno Covas (PSDB) tomaram para mudar o caráter da alimentação escolar na capital paulista.

Foi o começo de uma série de problemas que levariam à carência de alimentos vivida pelos mais de 1 milhão de estudantes matriculados na rede pública municipal. Uma situação construída por decisões ora equívocas ora obscuras e pelos efeitos trazidos pela pandemia do coronavírus. A partir do legado da última gestão, o próximo prefeito a tomar posse na mais populosa cidade do Brasil terá na alimentação escolar um desafio a enfrentar.

Atualmente, a cozinha das escolas se tornou um espaço alheio aos servidores municipais. Na prática, empresas terceirizadas, que fazem a gestão de alimentos e refeições das escolas, não costumam permitir a entrada de funcionários que não sejam aqueles contratados para a prestação de serviços. 

O fenômeno se repete em diversas instituições de ensino municipais, segundo o relato de professores e diretores ouvidos por esta reportagem —e que não quiseram se identificar por medo de represálias por parte da Secretaria Municipal de Educação.

Além disso, com o início da quarentena, a situação chegou ao ponto de docentes terem que tirar recursos do próprio bolso para garantir a comida de seus alunos. Desde março, a professora de geografia Graciana Brune, de uma escola na zona oeste de São Paulo, é uma entre muitos que começou a reunir dinheiro para distribuir alimentos.

“A escola está fazendo, como outras, uma vaquinha para comprar cestas básicas para os estudantes que estão sem merenda. O fato é que estamos há sete meses em casa e temos essa preocupação, e a situação apertou bastante”, ela conta.

“O poder público tem dificuldade de entender que a alimentação escolar não é uma política de assistência social, e sim um direito universal”, acrescenta Ana Carolina Schwan, coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. 

Procurada por esta reportagem, “a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Educação, informa que possui um dos maiores programas de alimentação escolar do mundo, fornecendo cerca de 2,5 milhões de refeições por dia para mais de um milhão de estudantes da rede”.

Do tutor para o pupilo

No início de um processo de quatro anos, os cortes no Leve Leite em 2017 fizeram com que crianças de até 16 anos matriculadas na rede pública deixassem de receber dois quilos de leite ou fórmula infantil mensais. O número de destinatários do Leve Leite passou de 916 mil, em 2016, para 430 mil, após a chegada de Doria e Covas à prefeitura. O par de tucanos também diminuiu porções: de dois quilos, os donativos passaram a ser de um quilo e 200 gramas de lácteos. 

Para um gestor público que apenas vê planilhas, tratava-se de reduzir números. Mas, para as famílias que dependiam do auxílio, o corte no Leve Leite pesou nas despesas. Avó de três alunos da rede municipal de ensino, Marli Santos, 57, afirma que teve de começar a ajudar a filha com as contas da casa desde que um dos netos parou de receber o benefício.

“Ficou apertado para a minha filha, porque ela é mãe e pai ao mesmo tempo. Ela trabalha e paga aluguel. Quando o leite foi cortado, ela começou a dar um jeito naquela época. Mas agora em especial, com a pandemia, está difícil, porque está tudo muito caro”, disse-nos a avó, moradora de Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital paulista. 

Questionado sobre o Leve Leite, Covas afirmou que o benefício hoje atende a 320 mil crianças e que pretende ampliar a oferta em uma eventual nova gestão. “Entendemos que o programa faz uma diferença na vida das famílias e seremos incansáveis na busca de adaptações para melhor atender a todos”, declarou por meio da assessoria de imprensa de sua campanha eleitoral.

Marli, por sua vez, não só viveu as consequências do corte no fornecimento de leite. Ela é merendeira em um Centro de Educação Infantil (CEI) e, de dentro da cozinha de uma creche municipal, assistiu de camarote às outras decisões da gestão tucana em São Paulo.

O então prefeito João Doria Jr., ao fundo, junto com secretários municipais durante o anúncio da farinata (Foto: Ballarini – 18.out.2017/SECOM-PMSP)

“Um alimento abençoado por Deus”, conforme descreveu Doria em outubro de 2017, seria o novo capítulo de uma tragédia anunciada: um composto sólido formado da farinha produzida pela mistura de alimentos prestes a vencer. 

Era a farinata. Dois coelhos em uma só cajadada: um ultraprocessado miraculoso, que seria agradável tanto à indústria de alimentos brasileira —que encontraria um destino para os seus dejetos— quanto para resolver uma demanda por assistência social na cidade a partir de uma ótica elitista: a consideração de que, para dar comida aos mais pobres, basta qualquer coisa.

O composto sólido seria distribuído pela prefeitura a entidades de assistência social, centros de acolhida e —por que não?— escolas públicas municipais, de acordo com o anúncio do prefeito naquele momento.

O milagre caiu por terra, no entanto, após uma chuva de críticas vindas de acadêmicos, chefs de cozinha, entidades da sociedade civil, nutricionistas e profissionais da saúde. De alimento providencial, uma espécie de cloroquina para o problema da fome em São Paulo, a farinata passou a ser chamada de ração humana, e a repercussão negativa esbarrou nas pretensões políticas de Doria, que desistiu da ideia por querer ser candidato em 2018.

Para reverter o desgaste trazido pela farinata, o tucano passou então a defender a pauta da comida saudável. Pouco tempo depois, ele abriu uma chamada pública para a compra de alimentos oriundos da agricultura familiar e da orgânica. O plano, entretanto, não se sustentou, como já mostramos aqui no Joio.

Doria deixou a prefeitura em abril de 2018 para concorrer ao governo do Estado de São Paulo, sendo eleito. Primeiro na linha de sucessão, o vice Bruno Covas foi um pupilo à altura das ambições do tutor, mas com um jeito próprio de fazer as coisas. O novo prefeito manteve-se aliado ao novo governador e, com menor alarde, implementou outras medidas deletérias à alimentação adequada e saudável em escolas do município. 

Terceirização de compras

Em 11 de abril de 2019, o agora prefeito Covas compareceu ao Fórum de Educação Infantil, um evento organizado pelas organizações sociais (OS) mantenedoras de escolas infantis conveniadas com a prefeitura. Ali, ele anunciou que iria atender a uma demanda antiga das OS: a “descentralização” do sistema de aquisição de alimentos nas unidades conveniadas.

Antes da mudança, as compras públicas destinadas aos centros de educação infantil conveniados eram regidas pela lei federal 11.947/2009, que determina a aquisição de 30% de gêneros alimentícios da agricultura familiar, quando feitas com recursos distribuídos pelo Fundo Nacional de Educação, e pelo decreto municipal 56.913/2016, que estipula a inclusão gradual de produtos orgânicos na merenda.

Com a chamada descentralização, as organizações sociais teriam também a prerrogativa de determinar onde e quais alimentos comprar, sem ter que cumprir com as obrigações que regem as compras públicas. 

Com o aumento de responsabilidades, aumentou também a verba destinada pela prefeitura a essas entidades. Cada uma delas recebeu reajuste de 3,85% nos repasses já realizados antes da alteração. 

Segundo a atual gestão da prefeitura, a medida “visa melhorar o serviço” da alimentação escolar. “Estamos comprometidos em oferecer uma alimentação saudável e variada”, declarou a assessoria de imprensa de Covas, em nota a esta reportagem.

No entanto, a mudança nas compras afetou a qualidade dos alimentos na merenda, segundo representantes da sociedade civil. “Na verdade eu não vejo como uma descentralização, vejo como uma terceirização”, disse ao Joio Maíra Pinheiro, integrante do Conselho de Alimentação Escolar (CAE) paulistano. “O que acontece é que você está centralizando [a compra de alimentos] no interesse da entidade.”

Na cidade de São Paulo, já não existem mais merendeiras contratadas pela prefeitura. Em todas as regiões do município, o preparo da alimentação escolar é regido por empresas detentoras de “lotes” regionais, ou diretamente pelas organizações sociais que administram escolas de educação infantil. 

O sistema de lotes vale para as escolas mantidas diretamente pela prefeitura e funciona em duas modalidades. Na categoria mista, as empresas recebem os alimentos adquiridos pela prefeitura e são responsáveis apenas por prepará-lo nas escolas. Na categoria terceirizada —que abrange a maior parte da cidade— as empresas são responsáveis também pela aquisição dos alimentos. 

Dificuldades de fiscalização

Até abril do ano passado, as escolas de manutenção indireta —que só existem na educação infantil— também eram regidas pelo sistema misto no qual a prefeitura adquiria os alimentos conforme os parâmetros definidos em lei e, depois, distribuía nas unidades. Quando a comida chegava à escola, as merendeiras contratadas pela entidade mantenedora preparavam e serviam as refeições. 

Após a mudança anunciada, as organizações sociais passaram a ter a prerrogativa de comprar o chamado FLVO: frutas, legumes, verduras e ovos. A partir daí essas unidades conveniadas começaram a receber da prefeitura apenas gêneros não perecíveis, como arroz, farinha de mandioca e sucos.

O prefeito Bruno Covas com o governador João Doria em evento no Palácio dos Bandeirantes (Foto: Governo do Estado de São Paulo)

Os cardápios da merenda servida nas escolas conveniadas continuam regidos pela Secretaria Municipal de Educação, mas há dificuldades para fiscalizar a qualidade das refeições sob o novo sistema.

A prefeitura afirma que “a Coordenadoria de Alimentação Escolar acompanha a compra e distribuição de alimentos nas unidades educacionais de ensino por meio das equipes de nutrição e supervisão escolar das Diretorias Regionais de Educação, que verificam in loco o consumo dos gêneros alimentícios”.

Empresas terceirizadas, no entanto, não costumam apresentar notas fiscais e, não raramente, dificultam a inspeção dos alimentos comprados. A constatação é do CAE, que visitou cerca de 150 CEIs conveniados no ano passado e constatou problemas com a alimentação fornecida em 80% das unidades de ensino. Entre os mais graves, estavam condições sanitárias inadequadas e quantidade insuficiente de comida.

“A maior parte das reclamações [sobre alimentação] vêm dos CEIs indiretos. Em algumas dessas escolas, temos ouvido relatos de redução no número de refeições diárias, em função da diminuição na quantidade de alimentos adquiridos”, diz Maria Angélica Oliveira, integrante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comusan).   

A mudança tomada pela prefeitura vêm no bojo de uma expansão da rede municipal cuja ponta de lança é, justamente, o modelo de CEIs conveniados. De quatro anos para cá, o número de escolas públicas com gestão terceirizada foi de 1663 para 2008, um aumento de 25%. 

A medida também levanta dúvidas quanto aos interesses de aliados políticos de Covas. Conforme mostrou uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, o candidato a vice-prefeito ao lado do tucano nas atuais eleições municipais, o vereador Ricardo Nunes (MDB), representa entidades gestoras de creches e fornecedoras delas.

Na prática, quem se beneficiou da mudança na alimentação escolar foram justamente as organizações sociais mantenedoras. As alterações trouxeram uma verba extra desejada e, como é de praxe, condições mais precárias de fiscalização. Por exemplo, se uma nutricionista vinculada à prefeitura tinha 100 escolas para visitar antes da mudança, o número subiu para 180 após o aumento das unidades conveniadas com o setor privado.

Pandemia do coronavírus

Pouco menos de um ano depois da descentralização, estourou a pandemia do novo coronavírus, e com ela veio o fechamento de escolas, no final de março deste ano. Sem merenda, crianças e adolescentes matriculados na rede municipal perderam a principal fonte de alimentos do dia a dia. Ainda que a alimentação escolar seja um direito universal garantido por lei, as medidas adotadas pela prefeitura não estiveram à altura do sarrafo. 

O Cartão Merenda, um repasse financeiro direto cujo intuito era compensar o fim das refeições na escola, teve início nos primeiros dias de abril, mas contemplava apenas 270 mil alunos, registrados no Cadastro Único para Programas Sociais, do governo federal. O total de matriculados na rede municipal de ensino é de 1.056.310 estudantes, segundo informações da prefeitura

O alcance do cartão foi gradualmente sendo expandido, é verdade, mas apenas em julho atingiu todos os alunos da rede municipal.

Schwann diz que, ainda em abril, a Defensoria e o Ministério Público do Estado obtiveram uma liminar determinando a universalização imediata dos programas de auxílio-merenda dos ensinos estadual e municipal. Mas a decisão foi derrubada em abril pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Até a publicação desta reportagem, a ação tramitava no Superior Tribunal de Justiça. 

Em termos de recursos repassados, a política de vale-alimentação do prefeito Bruno Covas também foi insuficiente. O valor é de R$ 101, destinados todo mês pelo Cartão Merenda às famílias de crianças matriculadas em creches, inferior ao gasto médio por refeição por estudante antes do início da pandemia.

Nos CEIs, o valor unitário por refeição era de R$ 185 mensais por estudante de tempo integral e de R$ 116 mensais por estudante de meio-período, considerando um mês com 22 dias letivos.

Para alunos do ensino fundamental o valor atual do cartão é de R$ 55, que corresponde a menos da metade do que era gasto mensalmente antes da pandemia. Naquele momento, o gasto era de R$ 120 mensais para matriculados no período matutino e R$ 107 para matriculados no vespertino.

As estimativas foram feitas levando em conta todas as prestadoras de serviço na modalidade de gestão alimentar terceirizada, cadastradas junto à Secretaria Municipal de Educação.

“Nossa prioridade, diante dessa grave crise sanitária, social e econômica, é continuar atendendo essas famílias com o Cartão-Alimentação enquanto perdurar a situação de emergência”, afirmou Covas, via assessoria de imprensa. “Agimos rápido, na Prefeitura de SP, implantando esse benefício já em abril, no início, portanto, desta grave crise sanitária”, acrescentou.

A Secretaria Municipal de Educação, por sua vez, diz que já universalizou o a acesso ao vale entre os estudantes da rede pública e que “optou, no inicio da pandemia de Covid-19 e da suspensão das aulas presenciais, em contemplar os estudantes mais vulneráveis e das faixas socioeconômicas mais baixas. O valor é com base no custo da merenda escolar, priorizando a primeira infância com um valor mais alto”.

Texto atualizado às 16h45 de quarta-feira, 4 de novembro de 2020. A redação do texto dava a entender que havia uma nutricionista na Prefeitura para cada 100 escolas municipais. Na verdade, o número é um exemplo. O trabalho dos servidores de fiscalização aumentou, mas não na escala indicada anteriormente.

Nova atualização no texto às 8h15 de quinta-feira, 5 de novembro de 2020. Foram incluídas as respostas enviadas pela assessoria de imprensa da campanha à reeleição do prefeito Bruno Covas.

Outra atualização às 9h38 de sexta-feira, 6 de novembro de 2020. Foram incluídas as respostas enviadas pela assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Educação.

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