Readaptação foi ligeira: com a ajuda da publicidade e dos “marketplace” – como Magalu, Amazon, e Casas Bahia – que se apropriaram do nicho, vende-se de tudo sem respeitar nada
Um monitoramento feito durante a pandemia, pela Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan), encontrou 390 infrações, em lojas físicas e online, à Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCal), conjunto de dispositivos legais considerado modelo para outros países quando o assunto é proteger a prática de amamentar. O estudo realizado entre julho e outubro de 2020 só será publicado nos próximos dias, mas a reportagem do Joio teve acesso aos dados inéditos.
O monitoramento é feito anualmente e conta com a parceria do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Em 2020, além das visitas a lojas físicas, priorizou a internet, sobretudo pela pandemia. Por isso, a maior parte das infrações foram encontradas no meio virtual. Dessas, aproximadamente 60% são promoções comerciais proibidas.
Os outros 40% são promoções que, apesar de permitidas pela norma, estavam em desacordo com a exigência de expor frases de advertência do Ministério da Saúde. É o caso do composto lácteo, produto ultraprocessado campeão de infrações nessa categoria, com 64 na internet e 15 em lojas físicas.
O monitoramento analisou mais de 80 páginas eletrônicas, incluindo redes sociais, sites de farmácias, supermercados, fabricantes e os “marketplace”, que reúnem na mesma plataforma produtos de diferentes lojistas e que, segundo a Ibfan, normalmente não comercializavam os produtos de abrangência da NBCal, mas, agora, o fazem. A exemplo do Magalu, Havan, Dafit Group, Mercado Livre, Casas Bahia, Submarino e Amazon.
“Percebemos que houve um incremento nas informações disponíveis na internet (sites e redes sociais) e na apresentação dos produtos como o melhor e mais apropriado para a alimentação infantil, ou comparado, similar, ao leite, ou ao seio materno”, diz a Ibfan por meio de nota. O próximo passo do monitoramento é notificar a indústria e o comércio sobre as infrações.
No site do Magalu, por exemplo, há uma ferramenta para interação com o consumidor chamada “Lu Explica”. Na aba dedicada às fórmulas infantis, os inúmeros benefícios do leite materno são ignorados e, com apenas um clique, no primeiro parágrafo, o consumidor é direcionado à aba de compras, que tem fórmulas para todas as idades e de variados preços, além de compostos lácteos. Nenhum dos anúncios exibe as advertências do Ministério da Saúde que são exigidas pela legislação.
O descumprimento da NBCal constitui infração sanitária e tem penalidades previstas na Lei 6.437, de 1977. Incluem multas que podem chegar até a R$ 1,5 milhão, apreensão do produto, suspensão das vendas ou da fabricação. A fiscalização cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e aos órgãos estaduais e municipais de vigilância sanitária.
Segundo a agência, entre dezembro de 2019 e setembro de 2020, a Coordenação de Inspeção e Fiscalização Sanitária de Alimentos (Coali) recebeu 60 denúncias relacionadas à NBCal, das quais 52 dizem respeito à divulgação de produtos na internet, especialmente em redes sociais.
Duas delas se converteram na criação de dossiês de investigação sanitária na Anvisa. Uma alegava propaganda irregular em um evento dito “técnico-científico”: o lançamento da fórmula infantil para lactentes NAN Supreme, da Nestlé, que aconteceria em uma live com a presença da cantora Maria Rita. A Anvisa solicitou uma série de documentos à empresa e concluiu que não havia irregularidade, por isso, arquivou o caso, sem justificar a nossa reportagem o porquê da conclusão.
Enquanto isso, a pressão da sociedade civil se organizava em uma mobilização online, usando a hashtag #DesisteMariaRita. No frigir dos ovos, a live aconteceu, mas sem a cantora, que acabou decidindo não participar.
O caso é um dos exemplos citados pela rede de repórteres latino-americanos Bocado em uma reportagem sobre a estratégia preferida das grandes corporações durante a pandemia, conhecida como socialwashing ou nutri-washing – ou seja, a tentativa das corporações de “limpar” a imagem. O Joio citou aqui outros exemplos desse tipo de estratégia, encontrados por um monitoramento feito pela Global Health Advocacy Incubator (Ghai).
O outro dossiê que circula na Anvisa também diz respeito ao lançamento de uma fórmula infantil, dessa vez, no YouTube. A empresa foi notificada, encaminhou parte dos materiais solicitados pela agência, que verificou o descumprimento de exigências legais. O processo foi encaminhado ao setor de autuação da agência, mas ainda não foi encerrado e a Anvisa não forneceu detalhes da denúncia.
Outras quatro denúncias, das 60, foram encaminhadas a órgãos locais de vigilância sanitária e a Anvisa não tem documentação sobre as ações adotadas. Todas as demais não se converteram em fiscalização. Segundo a agência, não havia elementos suficientes para configuração de irregularidade.
Por e-mail, a assessoria de comunicação da Anvisa afirmou que “há dificuldade em atuar junto às redes sociais, principalmente em contas de pessoas físicas, por ser difícil caracterizar a divulgação como ‘promoção comercial’, conforme definido em lei”.
O desafio é real. Tanto é que virou pauta da 73ª Assembleia Mundial da Saúde (parte da Organização Mundial da Saúde – OMS), que ocorreu em novembro. Países, principalmente da África, como Quênia e Zâmbia, relataram um aumento do uso de estratégias online e dificuldades em responder à incidência da indústria nesse meio.
O diretor da OMS chegou a recomendar, em um relatório preliminar, que os países monitorem de forma mais rigorosa a comercialização desses produtos, mas demonstrou preocupação com a situação.
“Os métodos de marketing modernos, que ainda eram desconhecidos quando o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno foi adotado pela primeira vez, agora são usados regularmente para alcançar mulheres jovens e as famílias, com mensagens que normalizam a alimentação artificial e prejudicam a amamentação”, diz no relatório.
A advogada especializada nos programas de Alimentos e de Saúde do Idec, Mariana Gondo, diz que são urgentes ações dos órgãos públicos para garantir a aplicação da legislação. “Por exemplo, que a Anvisa passe a divulgar e cobrar das as instâncias estaduais e municipais métricas e resultados com relação a fiscalização dessa lei”.
Como vimos, grande parte das denúncias referentes à NBCal acabaram engavetadas e a agência sequer sabe o que ocorreu com as encaminhadas aos órgãos locais. A postura da Anvisa demonstra sintomas de paralisia que muito interessam à indústria. E se você é um leitor cativo do Joio, já viu que as grandes corporações tem facilidade em encontrar as portas da agência abertas (falamos sobre isso aqui e aqui).
O que diz a NBCal
Não há dúvidas: o leite materno é o melhor alimento para recém nascidos e crianças de primeira infância. Até os seis meses de idade, é recomendado que seja a única fonte de nutrição, porque possui todos os micro e macro nutrientes necessários à formação e à proteção da criança em inúmeros aspectos físicos, mas, também, sociais e emocionais. É por meio da amamentação que o vínculo entre mãe e bebê é fortalecido.
Esse é um consenso científico mundial, reforçado, no Brasil, pelo Guia Alimentar para Crianças Menores de 2 Anos, produzido pelo Ministério da Saúde. A recomendação, inclusive, permanece forte na pandemia.
É para proteger a amamentação das investidas constantes da indústria, que tenta a todo custo convencer o consumidor de que seu produto é idêntico ao leite materno ou até “superior”, que surge a NBCal.
Ela proíbe a promoção comercial das fórmulas para crianças de até um ano, em quaisquer meios de comunicação. Estabelece regras para a rotulagem e exposição dos produtos no ponto de venda, distribuição de amostras grátis e brindes. As embalagens não podem ter, por exemplo, imagens de crianças, bebês ou figuras humanizadas. Nem frases e termos que sugerem forte semelhança do produto com o leite materno.
A norma estabelece as mesmas exigências para os rótulos de fórmulas para crianças de primeira infância (de um a três anos de idade), para as quais a promoção comercial é permitida, desde que constem frases de advertência do Ministério da Saúde nos pontos de vendas. Regra que também se aplica à categoria de “alimentos de transição, apresentados como apropriados à lactentes ou crianças de primeira infância”, como papinhas prontas e leites em pó, na qual o composto lácteo é enquadrado.
No entanto, a indústria segue com as estratégias para escapar da legislação. Por exemplo: se precisa inserir uma advertência, dizendo ao consumidor que aquele produto deve ser usado somente com recomendação médica, coopta pediatras e nutricionistas para fazerem o “meio de campo”, como já mostramos aqui.
Por outro lado, parte do setor regulado e dos consumidores desconhecem a norma, o que torna a aplicação da lei um desafio ainda mais complexo. Um estudo realizado há três anos no Rio de Janeiro avaliou mais de 300 estabelecimentos que comercializavam produtos cuja promoção é proibida pela NBCal. Os responsáveis pelos pontos comerciais foram entrevistados e mais da metade relatou não conhecer a lei.
Mariana Gondo ressalta a responsabilidade que as corporações têm nesse cenário: “É compreensível que a farmácia ou o mercadinho do bairro, por vezes, não saiba da existência desse tipo de legislação, mas, no nosso entender, é inadmissível que as corporações desconheçam e descumpram [a NBCal], porque elas têm estruturas jurídicas para observar as legislações dos países onde atuam”.
Há, inclusive, na Lei nº 11.265, de 2006, parte da NBCal, um parágrafo que estabelece como dever do fabricante, distribuidor ou importador informar aos representantes comerciais e às agências de publicidade contratadas sobre o conteúdo da lei.
Porém o estudo feito no Rio indica que isso não é levado a sério pelas maiores corporações do setor, já que mais de 75% dos representantes de estabelecimentos comerciais entrevistados relataram receber visitas periódicas, às vezes até diárias, de representantes da Nestlé. Pouco menos da metade citou, também, visitas da Danone.
Vende-se gato por lebre
No ano seguinte à publicação da Lei nº 11.265, a indústria colocou no mercado um produto novo, o polêmico composto lácteo. Ultraprocessado que precisa conter, no mínimo, 51% de leite e derivados lácteos, e o restante da composição pode ter adição de açúcar e aditivos químicos. Apesar de não ser recomendado para crianças, é a esse público que os fabricantes direcionam o produto.
A partir daí, as estratégias que a indústria adotou – e ainda adota – para promover a fórmula infantil foram estendidas ao composto lácteo. A promessa é reforçar as vitaminas e proporcionar os nutrientes necessários. Fibras, minerais e tudo o mais que couber no rótulo ou propaganda. Os produtos são apresentados como aliados das famílias, tanto na “promoção da saúde” quanto no quesito “praticidade”.
Segundo relatos de profissionais responsáveis pelo monitoramento da Ibfan, normalmente os fabricantes desses produtos respondem à notificação de infração dizendo que o composto lácteo não é abarcado pela NBCal, já que só surgiu no mercado depois dela.
Contudo a advogada Mariana Gondo ressalta que o composto lácteo é um produto que está abarcado pela legislação, na categoria de alimentos de transição. Ela explica que a NBCal, assim como o Código de Defesa do Consumidor, é um dispositivo que tem incisos gerais, que contemplam situações que surgem depois da publicação da lei.
Fato é que o composto lácteo entrou de vez na competição do mercado de substitutos do leite materno, inclusive com o uniforme do time. Não é por acaso a semelhança entre os rótulos de compostos, fórmulas infantis e leites em pó. E o “ouro” não está em nenhum deles.