Crônica | A pandemia para expiar algumas culpas

Todo esse tempo de isolamento social levou a refletir; as dores na lombar, a louça para lavar ou a comida que já acabou poderiam nos conduzir a rever certas atitudes

As dores na lombar que o digam. Todo esse tempo de isolamento social me levou a refletir. Depois de nove meses em casa, saindo muito raramente, eu sei: vir querer tirar lição de um período contaminado por incertezas, angústias e muita muita raiva —sobretudo de nossos governantes— pode soar um tanto pedante. Mas, creio eu, é do conflito —interior ou exterior, não importa— que costumamos tirar algumas boas lições para a vida.

Mais louça para lavar que me lembre. Esse longo período distante da vida que já tivéramos talvez tenha algo de produtivo. Tempo para reflexão não faltou, afinal. Ou melhor, não faltaram os motivos para reflexão. Que o digam não só as dores na lombar, mas a poeira pela casa ou a fome que bate agora, justo no momento em que toda a comida que preparei para os últimos dias já acabou.

Alguém aqui já percebeu o quanto dói nas costas ter que esfregar, toda semana, o piso do banheiro? Ou aspirar a casa? Ou só passar um pano no chão? 

Lá vou eu, outra vez, torcer o esfregão no balde. E lá vai a minha lombar, novamente, recordar-me que, não adianta observar a postura, alongar, fazer ioga, ginástica ou o exercício que for, ela vai doer depois de limpar a casa.

Há algo de intencional nessa lembrança. Claro, antes do início da pandemia, não era eu quem fazia o serviço. Privilégio de homem, branco, ensino superior, heterossexual, cis… Eu sei, eu sei, eu sei… Aquela carga de culpa individual decorrente da diversidade de problemas estruturais. 

Mas o que vamos fazer com isso da pandemia em diante?

Tenho um amigo convicto: ele não vai terceirizar para mais ninguém. É um trabalho muito pesado e que exige certa intimidade até, segundo ele me contou; além disso, ninguém além de si é responsável pela própria sujeira. Do coronavírus para frente, é ele, e ninguém mais, que limpa a própria casa. 

Achei o gesto bonito, embora eu não tenha uma posição fechada sobre a questão. Isso não me impediu, por outro lado, de rever algumas coisas: melhores ferramentas para faxina, menor obsessão com uma ordem impecável, menos produtos tóxicos para a limpeza… Um pouco aqui, outro acolá, e aos poucos a gente vai revendo algumas coisas. Mas penso seriamente em seguir o mesmo caminho que o meu amigo.

De uma culpa, aliás, eu estou livre desde antes do início da pandemia. Na minha casa não existe aquele fatídico quarto, a reinvenção da senzala, fruto da nossa herança, também estrutural, escravista.

Outras, continuo tentando expiar.

O desperdício é o novo alvo do exorcismo da minha vida pequeno-burguesa. A motivação é menos nobre do que parece, no entanto. Fui um dos atingidos por comportamentos obsessivos nesses tempos de poucos meios para extravasar e acúmulo crescente de neuroses. Poucas coisas, em casa, começaram a me incomodar mais do que mexer no lixo. Qual a solução? Produzir menos resíduos.

Um tanto curioso e um tanto com o incentivo da minha companheira, aprendi algumas coisas. Cascas de banana fazem uma carne de panela ótima. Sementes de mamão podem se tornar um tempero bastante interessante. O bagaço da maçã se transforma em um vinagre caseiro. Aos poucos, dois sacos de lixo na semana se tornam um, e aquele saco semanal vai embora a cada dez dias.

Aos poucos, a gente vai mudando algumas coisas. E também repensa certos privilégios.

Se serei incluído na fila da vacina no ano que vem, pouco me importa a essa altura, francamente. Eu sei que é lá no fim. Jovem, sem problemas de saúde, magro, branco, homem etc. etc. e etc. Mas, se tem algo que desejo após este sofrido 2020, é tirar algumas lições de um período tão cheio de angústias. Gostaria, de verdade, que nem tudo seja como antes.

É uma esperança. Mas estamos no Brasil, onde aglomerações, pessoas sem máscara, um monte de gente nem aí —governantes, principalmente— proliferam-se aos montes. Frente a isso, repita-se o mantra. Paciência. Tudo bem. Não importa. A esperança costuma ser triste.

Por Guilherme Zocchio

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