Coca-Cola abandona o filho ILSI à própria sorte

Corporação anuncia saída de organização criada por ela em 1978 e envolvida em acusações de manipulação de evidências científicas em prol dos financiadores

A Coca-Cola decidiu abandonar uma de suas mais férteis criações. Calma, meu amigo, nenhum refrigerante está saindo de linha. Tudo como antes. O que muda é a participação numa das maiores organizações de lobby científico do mundo: o International Life Sciences Institute (ILSI).

Poderia ser uma notícia sem grande relevância, não fossem o papel do ILSI na definição de políticas públicas sobre alimentação e o fato de a Coca-Cola ser a grande fundadora da organização. Foi Alex Malaspina, então vice-presidente da companhia, quem decidiu criar o ILSI em 1978.

Durante quase quatro décadas, o ILSI cresceu e atraiu dezenas de fabricantes de ultraprocessados e empresas do agronegócio. Financiou pesquisas científicas, no geral favoráveis aos pontos de vista dos patrocinadores. Moldou ou enfraqueceu políticas públicas e orientações nutricionais.

Mas, desde 2015, não há bebida colorida que dê conta do problema de desidratação do ILSI. Pesquisadores e jornalistas passaram a limpo a história da organização, mostrando como a fachada de um fórum neutro de convívio entre ciência, governos e empresas não fica em pé. Em 2018, a Mars, uma das maiores corporações de ultraprocessados do mundo, retirou-se do instituto. No ano passado, foi a vez da Nestlé.

Agora, a saída da Coca-Cola soa como uma sentença de morte antecipada para o ILSI. A criatura pode até encontrar uma maneira de sobreviver sem o criador, mas seguramente terá uma vida limitada. 

Discreta, a decisão não veio acompanhada de qualquer explicação sobre os motivos. Não é difícil, porém, entender o pano de fundo. A própria Coca se viu sob crescente escrutínio em torno da política de financiamento de pesquisas científicas. A ênfase na falta de atividade física como causa de obesidade e doenças crônicas, em detrimento de análises sobre o papel dos refrigerantes nessa equação, foi motivo para dezenas de reportagens – como esta, que fala sobre a articulação aqui no Brasil

E para mudanças nas decisões da Coca em torno do financiamento da ciência. Hoje em dia, por exemplo, a empresa declara não financiar mais do que 50% dos gastos com determinado estudo. A decisão sobre o ILSI é, assim, parte de um contexto mais amplo. 

Em razão da notícia, separamos alguns momentos-chave para o ILSI no Brasil e no mundo.

Um prato cheio de polêmicas

Se você quer um passo a passo da história do ILSI, nosso podcast, Prato Cheio, oferece um episódio inteirinho. Em “Um ilustre desconhecido”, contamos por que o instituto deveria receber mais atenção.

Por debaixo do jaleco

O ILSI brasileiro é bastante discreto. É raro que alguém se apresente como integrante do instituto em reuniões e eventos científicos. Como em toda relação marcada por conflito de interesses, a filiação à organização costuma aparecer em segundo plano. A alma do negócio é se apresentar como representante de uma universidade de renome. 

Nossa reportagem mostrou, por exemplo, como um comitê da Anvisa a respeito de alimentos funcionais parecia ter sete integrantes de organizações diferentes, mas, na prática, pelo menos quatro eram quadros do ILSI. 

Portas abertas

Mundo afora, o ILSI foi se deparando com cada vez mais portas fechadas, um motivo central para que o instituto esteja em processo de desidratação. Diante de tantas denúncias, agências de saúde e pesquisadores de renome decidiram manter distância. 

Mas, no Brasil, a Anvisa estendeu tapete vermelho para o ILSI. Um documento que obtivemos mostra que as duas organizações chegaram a discutir um termo de cooperação para o compartilhamento de evidências científicas produzidas pelo ILSI. 

“Um dos pontos destacados pelo instituto é que, por ser um fórum com distribuição mundial, pode potencializar trabalhos que tenham repercussão mais ampla e trabalhar de forma convergente”, registra a ata.

Relação simbiótica

Em outubro, a Anvisa decidiu adotar um sistema de rotulagem para avisar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. O modelo adotado recebeu aplausos da indústria de alimentos – como as evidências científicas mostram, não é o mais eficiente no sentido de desencorajar o consumo de alimentos ultraprocessados. 

Logo em seguida, a gerente-geral de Alimentos da agência, Thalita Antony de Souza Lima, concedeu uma entrevista ao boletim mensal editado pelo ILSI. “Entendo que há uma relação simbiótica entre a Agência e o ILSI Brasil, em que ambas as instituições se beneficiam do trabalho conjunto. A Anvisa, com sua agenda de prioridades, sinaliza para a sociedade os temas que precisam ser objeto de pesquisas e estudos. De outro lado, organismos como o ILSI ajudam a preencher essa lacuna, provendo a Agência com subsídios científicos importantes para a tomada de decisão.”

“Integridade científica”

Apesar de laços claros com o favorecimento de empresas privadas, representantes do ILSI negam publicamente o envolvimento do instituto em conflito de interesses. A discrição não é a única estratégia adotada para afastar a imagem de que a entidade é um braço do mundo corporativo. Outra é mostrar que a ética é uma preocupação fundamental e recorrente para o ILSI. 

No congresso do instituto realizado em 2019 no Brasil, a integridade de pesquisas científicas era o mote principal que reuniu dezenas de associados convidados para a ocasião. Entre os eventos da programação, estava uma palestra exclusivamente dedicada à discussão do tema “ética”, apresentada pelo escritor, jornalista e frade dominicano Frei Betto.

O então diretor-presidente do ILSI, Franco Lajolo, concedeu-nos uma entrevista à época, enfatizando a negativa de conflito de interesses. Ele disse que todo integrante deve obedecer a um código de conduta da instituição e que, além dele, todos os cientistas associados precisam respeitar outras prescrições existentes sobre pesquisas. Não detalhou quais.

Por João Peres

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