Ex-presidente citou na quarta-feira (12) algumas políticas de combate à fome desestruturadas pelo atual governo; programas garantiam um patamar de civilidade ao Brasil
O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário eleitoral deve realinhar as forças da sociedade brasileira, após ele discursar na última quarta-feira (10) tratando da mudança em processos da operação Lava Jato que lhe devolveram os direitos políticos. Movimentos e coletivos, organizações não governamentais, pesquisadores, empresários, agronegócio e mercado financeiro terão os próximos meses para disputar a agenda de prioridades do governo federal a partir de 2022.
No âmbito da alimentação adequada e saudável, qualquer que seja o presidente da República terá pela frente uma agenda de reconstrução – salvo que o vencedor seja Jair Bolsonaro. O retorno do Brasil ao Mapa da Fome, que já era sólido e certo antes da pandemia, acabou se tornando uma questão prioritária.
Em outra frente, as doenças crônicas não transmissíveis, principais responsáveis por mortes no país, demandam a (re)formulação urgente de uma agenda de políticas públicas – ainda mais depois que se mostraram a principal potencializadora dos casos graves de Covid-19. Por fim, o agronegócio está mais forte do que nunca, e representa a maior fatia da nossa balança comercial, com graves impactos socioambientais sobre o Cerrado e a Amazônia.
A seguir, o Joio lista algumas medidas que consideramos como uma agenda mínima de políticas públicas para o país retornar a um patamar civilizatório. Esse é também um convite a ler mais a respeito de cada um dos assuntos.
Alimentação é um tema que atravessa nossas vidas e, portanto, o conjunto de ações governamentais tende ao infinito: emprego, previdência, saúde, educação, tudo isso está conectado com o direito dos brasileiros a uma alimentação adequada e saudável. O fim do teto de gastos, por exemplo, teria impacto direto e indireto sobre a alimentação, do mesmo modo que a demarcação de terras indígenas e a realização de reforma agrária.
Reativar o Consea
Essa medida é, ao mesmo tempo, efetiva e simbólica. O fechamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi o primeiro ato de Jair Bolsonaro à frente da Presidência da República. O órgão colegiado, com maioria de representantes da sociedade, dá assessoramento direto ao presidente. Foi inaugurado por Itamar Franco nos anos 1990 e fechado em seguida por Fernando Henrique Cardoso. Reaberto por Lula, funcionou de maneira ininterrupta até o final de 2018, e foi fundamental na estruturação de políticas públicas que levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome.
Reestruturar a Segurança Alimentar
A reativação do Consea seria um entre muitos passos para fazer voltar a funcionar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, composto por órgãos ligados a vários ministérios. Graças ao governo Bolsonaro, o Brasil está desde 2019 sem um Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ou seja, não existe uma agenda coordenada de governo na promoção desse direito reconhecido pela Constituição desde 2010.
Reativar programas centrais
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é fundamental, ainda mais num contexto de pandemia e fome. De um lado, compra dos agricultores que mais têm dificuldades em acessar o mercado. De outro, distribui às famílias mais vulneráveis na escala de insegurança alimentar e nutricional. O mais importante é que se trata de uma iniciativa relativamente barata: em 2012, ano em que mais se investiu, o total foi de R$ 1,2 bilhão, o que beneficiou 130 mil produtores.
O PAA foi praticamente zerado por Bolsonaro, que só o retomou devido a uma grande pressão de movimentos sociais por causa da pandemia.
O PAA é um dos programas relevantes, também, para reestruturar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Desmontada pela primeira vez no governo Fernando Collor, a Conab sofreu uma nova ofensiva durante os anos Temer-Bolsonaro, com demissão de funcionários e enfraquecimento dos principais programas. Logo de início, Bolsonaro deu sequência ao plano de Temer de desativação dos estoques estratégicos de alimentos – foram vendidas ou fechadas 28 das 92 estruturas.
Esses estoques servem para regular preços de mercado, diminuindo a vulnerabilidade dos produtores e da população. Por exemplo, o Estado pode guardar arroz para ser usado em situações emergenciais ou quando os preços estão muito altos. Atualmente, estão praticamente zerados.
Uma outra frente importante é a construção de cisternas no semiárido nordestino, também fundamental na trajetória que fez o Brasil deixar o Mapa da Fome.
Revigorar a agricultura familiar
Em maio de 2017, o então presidente Michel Temer promulgou um decreto que estabelecia modificações na aplicação da lei da Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais (Pronaf). Na prática, a medida de Temer tornou os critérios do programa mais estritos e restringiu o acesso de muitos agricultores aos benefícios concedidos pelo Pronaf.
Isso se traduziu não só na queda de empreendimentos rurais familiares como na diminuição da mão de obra do setor, como mostram informações coletadas no Censo Agro de 2017, do IBGE. A agricultura familiar perdeu um contingente de 2,2 milhões de trabalhadores e reduziu em 9,5% o número de áreas nesta categoria em relação a 2006.
Flexibilizar os critérios exigidos pelo Pronaf e aumentar o orçamento do programa são duas ações essenciais tanto para proteger um contingente maior de agricultores, que empobreceram nos últimos anos, quanto fortalecer a produção de alimentos frescos — somente hoje a agricultura familiar responde por 48% do valor da produção de café e banana no país, 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão, segundo o Censo.
Retomar a reforma agrária
A desaceleração começou ainda com Dilma Rousseff e intensificou-se com Michel Temer, mas a puxada do freio de mão aconteceu nas mãos de Jair Bolsonaro, que paralisou a reforma agrária no país. Um indicativo é o número de áreas desapropriadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra): entre 1995 e 2002 (FHC) foram 3530 áreas desapropriadas; entre 2003-2010 (Lula), 1988; entre 2011 e 2016 (Dilma), 237; entre 2017 e 2018 (Temer), 4; e de 2019 até aqui, 0 (Bolsonaro).
A forte desigualdade social no Brasil, além de ter relação com concentração de renda, decorre também da má distribuição de terras. Estima-se que, atualmente, a posse de áreas rurais no país tem índice Gini —um coeficiente que mede a concentração de riquezas em um escala de 0 a 1, no qual 0 corresponde à total igualdade e 1 à apropriação de riquezas por uma única pessoa— de 0,73, de acordo com um relatório publicado pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (IMAFLORA) em 2020.
Essa desigualdade no acesso à terra afeta a produção de comida no país. Grandes proprietários rurais tendem a priorizar o uso de suas terras para a produção de commodities agrícolas destinadas à exportação. Em outra ponta, pequenos proprietários rurais, que respondem por uma quantidade significativa dos alimentos mais consumidos no Brasil, dispõem de uma quantidade muito menor de terras para desempenhar suas atividades.
Revitalizar a alimentação escolar
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é responsável pela oferta de comida a todos os estudantes da educação básica pública do Brasil. Atende cerca de 41 milhões de jovens, com repasses financeiros aos 27 Estados e 5.570 municípios que chegam à ordem de R$ 4 bilhões anuais. Para muitos desses brasileiros, a refeição que se faz na escola é a única ou a principal do dia.
A pandemia de Covid-19, no entanto, levou o PNAE a enfrentar um dos seus momentos mais difíceis. Com escolas fechadas país afora, por decorrência das medidas tomadas para garantir o isolamento social e frear a disseminação do vírus, a alimentação de milhões de estudantes brasileiros foi largamente prejudicada. Governantes da educação tentaram substituir o fornecimento de refeições completos por tíckets com um valor em dinheiro que não deram conta de garantir a mesma quantidade e qualidade dos alimentos. Some-se a isso a chegada de novos gestores às prefeituras não habituados com o programa.
O governo federal de Jair Bolsonaro, é claro, omitiu-se de propor outras formas de execução do PNAE, principalmente durante o contexto da pandemia, com o objetivo de garantir a comida no prato dos estudantes brasileiros. Cartilhas para distribuição de recursos, garantir condições para oferecer as refeições nas escolas, orientações de logística são algumas medidas que poderiam garantir o melhor funcionamento do programa no atual momento vivido no país.
Combater as doenças crônicas
O Plano de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis tem vigência até 2022. A exemplo do Plano Nacional de Segurança Alimentar, trata-se do conjunto de iniciativas desenvolvidas por vários ministérios na tentativa de conter o crescimento dos índices de doenças cardiovasculares, diabetes e câncer (entre outros) – algo que nenhum país no mundo conseguiu. Boa parte dessas frentes de atuação tem sido abandonada pelo governo Bolsonaro, que demorou nove meses para criar um simples protocolo sobre doenças crônicas e Covid-19.
Mirar nos ultraprocessados
Uma iniciativa fundamental para desestimular o consumo de ultraprocessados é a difusão do Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014. O documento do Ministério da Saúde vive sob ataques da indústria, que já fez lobby junto a vários ministros. Parte desse trabalho de divulgação é feita no Sistema Único de Saúde (SUS); a capacitação de gestores e profissionais de saúde é fundamental e pode ser ampliada.
No mesmo sentido, a Anvisa adotou lupas na parte frontal das embalagens de alimentos processados e ultraprocessados, numa tentativa de avisar sobre o excesso de sal, açúcares e gorduras. A decisão final da agência contrariou as melhores evidências científicas e, portanto, poderia ser revista ou ao menos aprimorada.
Acabar com a fraude da Zona Franca
Iniciado no governo Collor, o esquema da Zona Franca de Manaus drenou dezenas de bilhões de reais ao longo dessas três décadas (nunca teremos um número exato). Fabricantes do concentrado de refrigerantes contam com um pacote de incentivos federais e estaduais para se instalar na região. Mas, não satisfeita, a indústria cobra créditos em cima de impostos que nunca foram pagos – só em Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) o Brasil perderá quase R$ 600 milhões apenas este ano.
Além de acabar com o esquema, o governo federal pode adotar uma tributação especial sobre bebidas adoçadas. A medida tem sido adotada por cidades, estados e países mundo afora como parte do pacote para desestimular o consumo de ultraprocessados e tentar conter os índices de doenças crônicas.
Regulamentar o trabalho em aplicativos
Aplicativos de transporte se transformaram num dos maiores (sub)empregadores do Brasil. iFood, Uber Eats e Rappi são centrais nesse combo, e particularmente nas ocupações pior remuneradas e mais arriscadas surgidas da chamada “economia dos bicos”. Aos poucos, em outros países, Judiciário, Legislativo ou Executivo têm reconhecido o vínculo trabalhista entre essas empresas e os entregadores.
Enfrentar desafios regulatórios
Ao longo dos últimos anos, cresceu o volume de evidências científicas que expõem como transformações no ambiente alimentar têm um forte impacto nas escolhas alimentares. Uma oferta excessiva de ultraprocessados, em detrimento de alimentos frescos, pode ser causadora de problemas de saúde.
Um futuro governo pode retomar o primeiro levantamento nacional sobre desertos e pântanos alimentares, realizado ao final do governo Dilma. A partir disso, o Executivo federal pode tanto criar políticas públicas como pode induzir municípios a regular a densidade da oferta de ultraprocessados e aumentar o acesso a alimentos frescos.
Regular a publicidade infantil
Outro tópico a ser retomado é a discussão sobre a regulamentação da publicidade direcionada a crianças e adolescentes. Também ao final do governo Dilma, o Ministério da Justiça realizava estudos que poderiam resultar em um projeto de lei.
Entre as políticas públicas disponíveis, a regulação da publicidade é aquela que apresenta o maior volume de evidências científicas do ponto de vista da efetividade. E, no entanto, é uma questão de honra para a indústria de ultraprocessados. Um projeto de lei nesse sentido está parado no Congresso Nacional há duas décadas.